Quando a conversa resvalava para a rábula do seu aniversário, nascida a 1 de julho mas apenas registada a 23, Amália Rodrigues chutava para canto, como tantas vezes fazia, respondendo com humor que tinha nascido "no tempo das cerejas". E foi uma noite digna desse tal tempo das cerejas, tórrida na temperatura, mas também na emoção, a que se viveu quinta-feira, durante o concerto comemorativo dos 100 anos de Amália Rodrigues..Inicialmente previsto para os jardins da Torre de Belém, para encerrar em grande as Festas de Lisboa, foi entretanto transferido para o Castelo de São Jorge, onde, devido à pandemia, se realizou sem público, mas foi registado pelas câmaras da RTP, que o irá transmitir em horário nobre na noite de quinta-feira, 30 de julho. Um momento bizarro, mas ao mesmo tempo tão comovente, que juntou naquele cenário tão simbólico, com Lisboa aos pés, três das maiores vozes do fado, Ana Moura, Camané e Ricardo Ribeiro, acompanhados pela Orquestra Metropolitana de Lisboa dirigida pelo maestro Rui Pinheiro, pelo trio de fado composto por José Manuel Neto (guitarra), Pedro Soares (viola) e Daniel Pinto (baixo) e ainda pelos convidados Ricardo Toscano (saxofone), Gaspar Varela (guitarra portuguesa) e Mário Laginha (piano). .Um verdadeiro elenco de luxo, portanto, a tocar para ninguém, ou antes, talvez, a tocar para Amália, que a espaços surgia projetada nas muralhas do castelo, embora tal nem fosse necessário, pois a sua presença era sentida a cada nota tocada e verso cantado. Com direção artística de Luís Varatojo e produção da Câmara de Lisboa e da EGEAC, o espetáculo, com cerca de duas horas, recorda os fados tradicionais e as canções orquestradas de Frederico Valério, mas também os grandes poetas cantados por Amália Rodrigues (David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Mello ou Manuel Alegre) e, claro, a parceria com Alain Oulman, num repertório escolhido a dedo, que contou com as orquestrações de um trio composto por Filipe Raposo, Mário Laginha e Pedro Moreira..O primeiro a subir ao palco foi Ricardo Ribeiro, para um primeiro bloco de quatro temas, composto por Fado Português, O Fado em Cada Um, Sabe-se Lá e Gaivota. Apenas com os simbólicos (e quase silenciosos) aplausos da orquestra, o fadista lisboeta deu então lugar a Ana Moura, que, acompanhada pelo saxofonista Ricardo Toscano, interpretou Maldição, Cansaço, Anda o Sol na Minha Rua e Estranha Forma de Vida, esta última bastante aplaudida por Camané e Mário Laginha nos bastidores. A dupla subiria em seguida ao palco, para aquele que, caso este fosse um concerto normal, mereceria o título de "momento da noite" - ou um dos, vá -, com a interpretação, apenas a piano e voz de Com que Voz e Abandono, dois temas também presentes no disco conjunto Aqui Está-se Sossegado, editado no final do ano passado..Camané daria ainda voz, mas agora já acompanhado pelos restantes músicos, a Não Sei Porque te Foste Embora e Madrugada de Alfama - esta última já com Gaspar Varela, sobrinho-neto de Amália, em palco. O jovem músico brilharia também no instrumental Fado Amália, que antecedeu a segunda metade do espetáculo nova entrada de Ricardo Ribeiro, para uma sentida interpretação de Foi Deus, seguida de Trova do Vento que Passa, Meu Amor e Povo que Lavas no Rio, tema que já por diversas vezes cantou, como deu para perceber, ao transformar tão simbólico clássico em algo tão seu. "Isto é quase como estar numa casa de fados", comenta-se em surdina, junto ao palco, "em que as vozes vão melhorando com o avançar da noite"..Volta entretanto Ana Moura, com um trio de ases composto por Há Festa na Mouraria, Barco Negro e Vou Dar de Beber à Dor, cuja performance até levou Mário Laginha a ensaiar uns passos de dança nos bastidores. Serviu de aquecimento, pois logo depois o pianista voltaria a subir ao palco para novamente acompanhar Camané em Asas Fechadas, a primeira de nova sequência de luxo, composta por Primavera, Zanguei-me Com o Meu Amor e Maria Lisboa, a dar razão a quem um dia disse um que o sucessor natural de Amália talvez seja, afinal, um homem. Seria um bom final, mas ainda há tempo para uma espécie de desgarrada a três vozes, a som do popular Fadinho Serrano: "Muito boa noite, senhoras, senhores, lá na minha terra há bons cantadores, há bons cantadores, boas cantadeiras". Sim há, como se tão bem se ouviu aqui, no Castelo de São Jorge..Já Amália Rodrigues houve só uma, faria cem anos agora, por estes dias com aroma a cereja e também por isso esta noite soou tão estranha, sem público nem aplausos..No Tempo das Cerejas - Concerto Comemorativo dos 100 Anos de Amália Rodrigues.30 de Julho, quinta-feira, RTP 1