Estranha forma de vida... Citemos dois filmes recentes, mais ou menos marginais, com o seu quê de esotérico: Os Olhos da Minha Mãe (2016) e Convidado de Honra (2019). O primeiro, assinado por Nicolas Pesce, é um típico projeto independente dos EUA, apostado em reinventar algumas matrizes do género de terror, a começar pelo metódico tratamento das imagens a preto e branco; o segundo ilustra mais uma variação dos temas obsessivos do canadiano Atom Egoyan, cruzando a desagregação dos laços familiares com a omnipresença da tecnologia e a proliferação de mensagens por telemóvel. Que pode unir dois objetos tão diferentes e, na atual produção cinematográfica, tão solitários? Pois bem, a resposta é: Amália Rodrigues. Escutada nas respetivas bandas sonoras, a voz da fadista empresta peculiares pontuações dramáticas às atribulações das personagens..Dir-se-ia que, cinematograficamente, Amália passou a existir menos como uma referência enraizada na nossa memória coletiva e mais como um património disperso cuja energia, dramática e simbólica, se mantém disponível para ser apropriada pelos autores mais diversos. Em boa verdade, no seu caso, a afirmação artística e a trajetória cinematográfica foram divergindo, nunca conseguindo desenhar um mapa comum..E, no entanto, no começo da sua carreira, como se diz na gíria política, pareciam estar reunidas as condições para que a Amália do fado e a Amália do cinema fossem uma só entidade, uma verdadeira estrela, nacional e internacional. Pode mesmo dizer-se que a definição icónica de Amália e, mais do que isso, o conhecimento da sua imagem num tempo pré-televisão são indissociáveis dos dois primeiros títulos que protagonizou: Capas Negras, de Armando de Miranda, e Fado, História de Uma Cantadeira, de Perdigão Queiroga, ambos de 1947. Curiosamente, envolvem dois polos emblemáticos da história do fado. Em Capas Negras, a sua personagem chama-se Maria de Lisboa, mas o cenário é a cidade de Coimbra, com os estudantes e as suas repúblicas; em Fado, História de Uma Cantadeira, Amália interpreta Ana Maria, uma fadista de Alfama..Os filmes foram, à época, dos maiores sucessos de sempre da produção portuguesa, cada um deles a conseguir cerca de 200 mil espectadores. Em qualquer caso, o fenómeno está longe de poder ser reduzido à "dimensão" fadista. Desde logo, pela popularidade que Amália já granjeara como figura dos palcos, em particular no teatro de revista - em 1946, tivera dois sucessos no Teatro Apolo com a revista Estás na Lua e a opereta Mouraria. Amália contracenava com dois "galãs" do cinema português, vedetas afinal efémeras de uma produção que nunca conseguiu gerar, muito menos manter, a consistente galeria de estrelas: eram eles Alberto Ribeiro, em Capas Negras, e Virgílio Teixeira, em Fado, História de Uma Cantadeira..Em 1949, interpretando "o seu próprio papel", Amália surgiu em Sol e Touros, de José Buchs, tentativa falhada de transpor a popularidade do toureiro Manuel dos Santos para cinema, agora na condição de intérprete. Ainda no mesmo ano, surgiu naquele que seria, na altura, um dos mais ambiciosos projetos de toda a história do cinema português: Vendaval Maravilhoso, de Leitão de Barros..De forma esquemática, porventura sugestiva, vale a pena lembrar que, desde os tempos heroicos do período mudo, Leitão de Barros se impôs como um realizador vocacionado para conciliar a abordagem de temas populares com uma refinada exigência artística e alguma grandiosidade dos meios de produção. Títulos como Lisboa, Crónica Anedótica (1930), A Severa (1931), As Pupilas do Senhor Reitor (1935), Inês de Castro (1944) ou Camões (1946) atestavam a seriedade e a versatilidade, do seu estatuto..Vendaval Maravilhoso nasce de um típico projeto de produtor (que Leitão de Barros também era), na procura de uma conjugação ideal de fatores de sucesso "garantido"... Que é como quem diz: de um lado a figura de Amália, já não uma "curiosidade" fadista, mas um nome vocacionado para repetir no cinema o sucesso já obtido como "cantadeira"; do outro, a história épica e romântica de Castro Alves (1847-1871), poeta brasileiro, antiesclavagista, apaixonado por Eugénia Câmara (1837-1874), atriz e poetisa portuguesa..A aposta de As Ilhas Encantadas.Amália era Eugénia Câmara, estando o papel de Castro Alves entregue ao brasileiro Paulo Maurício. Leitão de Barros apostou numa grandiosa coprodução com o Brasil, gastando a módica quantia de seis mil contos. No livro O Cinema Português Nunca Existiu (ed. CTT), João Bénard da Costa lembra que, no ano da respetiva publicação, 1996, esse era um valor próximo dos 800 mil contos... Um verdadeiro luxo. E acrescenta, inventariando as agruras de Vendaval Maravilhoso: "Virou tufão e não houve maravilha nenhuma. Houve foi um défice de cerca de quatro mil contos e pateadas no Rio e em Lisboa. Consequência: Leitão de Barros arrumou as botas (nunca mais fez um filme de fundo) e o 'sonho brasileiro' ficou décadas a lembrar pesadelos." Isto sem esquecer que a censura do Estado Novo impôs vários cortes ao filme, transformando-o num objeto retalhado e raro, a circular em cópias amputadas, só tendo sido restaurado pela Cinemateca Portuguesa em 2004..Será, por certo, exagerado considerar que o desastre comercial de Vendaval Maravilhoso afetou a carreira de Amália. Até porque, como bem sabemos, ela se afirmava já como personagem e símbolo do universo do fado, tanto a nível nacional como internacional (nomeadamente no Brasil). O certo é que em 1954, com Os Amantes do Tejo, surgiu aquela que foi a mais internacional das performances cinematográficas de Amália (mesmo se no cartaz original o seu nome surge claramente secundarizado)..Realizado por Henri Verneuil, funcionário tão competente quanto previsível da indústria francesa, Os Amantes do Tejo encena o drama passional de um par (Daniel Gélin-Fraçoise Arnoul) num tom revelador de uma certa visão paternalista do nosso país: Lisboa, em particular, não passa do cenário pitoresco que acolhe o elenco estrangeiro, com Amália, afinal, a desempenhar o seu próprio papel. Quatro anos depois, o regresso ao grande ecrã deu-se com Sangue Toureiro (1958), de Augusto Fraga, mais uma aposta anódina de "cruzamento" do universo dos toureiros com o fado - contracenava, agora, com Diamantino Viseu..Ao chegarmos à década de 1960, poderíamos supor que, uma vez mais, estavam reunidas as condições para que o destino cinematográfico de Amália se cruzasse com o que de mais essencial estava a acontecer na nossa sempre tão frágil produção. A saber: o movimento do Cinema Novo, com autores como Ernesto de Sousa, Paulo Rocha ou Fernando Lopes a reinventarem, de facto, as imagens e os sons do nosso país, repensando-o num misto de mágoa e esperança..Ora, que aconteceu em 1964? Fernando Lopes assinava Belarmino, sobre o pugilista Belarmino Fragoso, arriscando uma experimentação documental que colocava o filme na linha da frente das vanguardas europeias. E Amália? Filmava Fado Corrido, sob a direção de Jorge Brum do Canto, um dos mais talentosos cineastas da geração anterior. Baseado num conto de David Mourão-Ferreira, executado com o rigor de uma gramática "saudosista", o filme era, afinal, um ovni orgulhosamente anacrónico no meio de títulos como Os Verdes Anos (1963), de Paulo Rocha, Acto da Primavera (1963), de Manoel de Oliveira, ou Domingo à Tarde (1965), de António de Macedo..Seguiu-se a derradeira aposta internacional de Amália, As Ilhas Encantadas (1965), esta, por assim dizer, indiretamente ligada ao Cinema Novo. Isto porque resultou do empenho de António da Cunha Telles, nome fundamental na dinâmica de produção da década (realizaria a sua primeira longa-metragem, O Cerco, em 1970), cuja atividade envolvia laços importantes com França. Em 1964, tinha mesmo trazido François Truffaut a Lisboa para a rodagem de uma parte de La Peau Douce/Angústia, com Françoise Dorléac, um dos seus filmes mais belos e também mais esquecidos..Com assinatura do luso-francês Carlos Villardebó, tendo por base Les Encantadas, a célebre narrativa de Herman Melville sobre as Galápagos (a rodagem decorreu na Madeira), As Ilhas Encantadas apresentava-se como um objeto assumidamente fora do seu tempo. Contracenando com Pierre Clémenti, jovem fetiche do cinema europeu da época, Amália vivia uma parábola poética que, para alguns, ficou como o sintoma mais exemplar das suas capacidades de representação face a uma câmara. Mas o desastre comercial foi devastador. João Bénard da Costa resume a situação com contundente sarcasmo: "Navio almirante e porta-aviões ao fundo, com o Tivoli às moscas e as gentes a perguntarem a Amália quem é que a tinha convencido aos encantos de Porto Santo.".Amália ainda participou, de novo em nome próprio, em Via Macau (1966), policial francês dispensável, rodado no Estoril (com muitos atores portugueses). E foi desaparecendo dos ecrãs de cinema. Como, em grande parte, desapareceu do nosso imaginário cinéfilo. Na verdade, através de momentos de glória e também de capítulos falhados, essa é uma memória que merecia ser conhecida de outro modo, para lá dos rituais aconchegantes das efemérides. Assim é o nosso fado. Ou o fado do nosso cinema.