Populações inteiras foram devastadas pela fome, em consequência da seca e de furacões que afetaram países como Etiópia e Haiti. Mas nenhuma destas graves crises humanitárias gerou mais de mil notícias globais. Esta é a conclusão de um relatório da organização não governamental (ONG) Care International, intitulado "Sofrer em silêncio", que analisou mais de um milhão de notícias online em inglês, alemão e francês em todo o mundo..Só em Madagáscar, em 2018, mais de um milhão de pessoas passaram fome, uma consequência do fenómeno climático El Niño, que secou as plantações de milho, mandioca e arroz. Quase metade das crianças deste país africano adoeceu. Este é apenas um dos exemplos de uma grave crise alimentar provocada pelas mudanças climáticas e que não teve repercussão nas notícias mundiais.."Situações repetitivas de insegurança alimentar devido à seca crónica no sul de Madagáscar reduzem significativamente os meios de subsistência e a capacidade das famílias para lidar com os efeitos das alterações climáticas", diz Andriamiarinarivo Rajaonarison, diretor da Care Madagáscar. Para este responsável, é importante "que esta questão não caia" no esquecimento público. "A mudança climática não vai esperar", avisa. Uma situação dramática que não deve ficar na sombra das notícias internacionais para "garantir que os mais vulneráveis não sejam deixados para trás"..Afinal, "não só as pessoas que vivem nos países mais pobres do mundo estão mais vulneráveis às mudanças climáticas, mas também são as menos equipadas para enfrentar os seus impactos crescentes", afirma Sven Harmelin, da política mundial da Care International. E deixa um alerta: "Os media não podem fechar os olhos perante estas crises e o papel das alterações climáticas.".Até porque, como defende, a atenção dos media mundiais "pode ajudar a impulsionar os tomadores de decisão" a implementar "medidas de longo alcance que a crise climática exige"..O relatório faz a ligação direta entre as mudanças climáticas e desastres humanitários no Sudão, República Centro-Africana, Níger, Etiópia (surge repetido no relatório por ter problemas com a fome e com os deslocados), Chade, Filipinas, República Democrática do Congo, Madagáscar e Haiti..Mais de um milhão de artigos online, publicados entre o início de janeiro e o fim de novembro do ano passado, serviram de base à Care International, que destacou dez crises que o mundo praticamente ignorou..Haiti.Uma das tragédias humanitárias que o relatório refere é a que se passou no Haiti, a grave crise alimentar causada por uma seca no início de 2018, que originou atrasos nas colheitas. No total, diz a ONG, cerca de 2,8 milhões de pessoas precisam de assistência humanitária face à situação dramática, que ainda assim teve pouca atenção dos media internacionais. A ONG sublinha que, enquanto o terramoto de 2010 no Haiti (e que terá feito 160 mil mortos, segundo dados da Universidade do Michigan - o governo do Haiti fala em 300 mil) apareceu nas manchetes de todo o mundo, a crise alimentar que este país caribenho sofreu quase não surgiu nas notícias internacionais. Apenas 503 artigos abordaram este problema humanitário. No Índice Global de Risco Climático de 2019, o Haiti surge em quarto lugar nos países mais afetados pelas mudanças de clima extremas..Etiópia.Apenas 986 artigos abordaram a grave situação que a população da Etiópia enfrenta. Depois de dois anos consecutivos de seca, em 2018 a chuva que caiu em determinadas zonas do país não foi suficiente. Cerca de oito milhões de pessoas necessitam urgentemente de assistência alimentar no sul da Etiópia. Mais de 80% da população etíope tem como fonte de subsistência trabalhos relacionados com a agricultura. A deslocação de centenas de milhares de pessoas, por causa da violência étnica, leva a que o país apareça por duas vezes na lista da Care International. Num segundo momento, a ONG destaca o drama dos deslocados internos, com mais de um milhão de pessoas obrigadas a deixar as suas casas devido à violência intercomunal..Madagáscar.É um dos países mais afetados pelas mudanças climáticas e, só em 2018, o El Niño levou a uma seca muito severa que destruiu as plantações de arroz, milho e mandioca. Seguiram-se novas tempestades tropicais que obrigaram mais de 70 mil pessoas a fugir das suas terras e a fome ameaça 1,3 milhões, segundo a ONU. Além disso, as epidemias de sarampo e peste abalaram o país localizado na costa de Moçambique. Só de sarampo estavam contabilizados 6500 casos até final de dezembro do ano passado e a epidemia da peste bubónica vitimou 200 pessoas. Mas os relatos sobre a situação vivida em Madagáscar foram muito raros..República Democrática do Congo.A imprensa também não tem dado muita atenção à República Democrática do Congo, apesar de ser considerado um país dominado pelo "ciclo vicioso de violência, doenças e subnutrição". A Care diz que há 12,8 milhões de congoleses ameaçados de fome, 4,3 milhões de crianças subnutridas, 500 casos de ébola que levaram à morte de 280 pessoas e quase 763 mil refugiados devido a conflitos entre milícias. A violência sexual também é uma constante nesta antiga colónia belga. A ONU estima em mais de 200 mil o número de vítimas de violações..Filipinas.A 14 de setembro de 2018, o mundo soube de toda a catástrofe que atingiu a costa leste dos Estados Unidos, após a devastação do furação Florence. Mas no dia seguinte, a 14 mil quilómetros de distância, uma tempestade mais forte fustigou o litoral da ilha de Luzon, a principal das Filipinas. A uma velocidade de 200 quilómetros por hora, o tufão Mangkhut afetou 3,8 milhões de pessoas, matou 82 e feriu 130. Apenas um mês depois, um novo tufão devastou várias comunidades já destruídas pelo Mangkhut. Destes acontecimentos pouco foi noticiado, apesar de as Filipinas ser dos países asiáticos mais expostos a riscos geológicos como terramotos e erupções vulcânicas..Chade.Pobreza crónica, fome e deslocados em massa deixaram cinco milhões de pessoas no Chade a lutar pela sobrevivência. Em 2018, quatro milhões tiveram apenas acesso limitado a alimentos - um resultado direto das alterações climáticas das últimas décadas, que reduziram as plantações. A situação de instabilidade devido ao conflito entre rebeldes e forças governamentais torna o acesso a serviços básicos quase impossível. Além disso, mesmo sendo um dos países mais pobres do mundo, o Chade acolhe 450 mil refugiados de países vizinhos..Níger.Enclave no Sahel, o Chade há muito sofre com a desertificação, insegurança alimentar e, mais recentemente, com os deslocados internos e a chegada de refugiados. O número dos que lutam para cumprir as suas necessidades alimentares passou de meio milhão para 1,4 milhões em 2018. Segundo a ONU, cerca de 16 mil crianças abaixo dos cinco anos estão em risco de morrer de malnutrição. Muitas mulheres e raparigas estão sujeitas a violências sexuais, enquanto os rapazes são muitas vezes recrutados por grupos armados..República Centro-Africana.Rica em recursos naturais, a República Centro-Africana continua maioritariamente subdesenvolvida. Grupos armados e confrontos políticos alimentam tensões intercomunais. Cerca de 2,9 milhões de pessoas, ou 60% da população, precisam de ajuda e de alimentos - um número que cresceu 16% em relação ao ano anterior. 40% das crianças abaixo dos 5 anos sofrem de subnutrição. E raparigas com apenas 13 anos vendem o corpo por 50 cêntimos..Sudão.Nos últimos 15 anos, conflitos, pobreza crónica e mudanças climáticas deixaram 5,5 milhões de pessoas no Sudão à beira da morte. Uma em cada seis crianças do país sofre de subnutrição. Uma situação agravada pelas inundações e chuvas fortes que afetaram o país em 2018. Os quase um milhão de refugiados que o país acolhe colocam as autoridades sudanesas sob ainda mais pressão, num país onde a taxa de inflação anda nos 70%.