Alterações climáticas agravam episódios de "acqua alta" em Veneza

80% de Veneza ficou inundada no episódio de <em>acqua alta</em> (maré alta) nesta quarta-feira, o mais grave do último meio século. O vento soprou forte, mas com a subida do nível do mar, a mudança climática também já anda ali.
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Com a maré a altear-se até aos 187 centímetros (cm), o mais recente episódio de acqua alta em Veneza, ocorrido nestas terça e quarta-feira, foi o mais grave dos últimos 53 anos, apenas suplantado por um que ocorreu em 1966, em que a subida das águas atingiu os 194 cm - em média, a maré alta na lagoa de Veneza não excede os 80 cm. Quando passa dos 90 cm cerca de 2% da cidade já é afetada, mas com mais 50 cm acima disso um terço da cidade fica inundado.

Desta vez, a maré atingiu uma dimensão extraordinária, ficando apenas a 7 cm do recorde de 1966, mas com as previsões da meteorologia de mais chuva e vento para os próximos dias, a expectativa de que a situação possa ainda agravar-se neste final de semana não deixa os venezianos descansados. As marés excecionais destes dias deixaram duas vítimas mortais e um rasto de estragos materiais que ainda estão a ser contabilizados nesta altura.

O fenómeno da acqua alta não é estranho à vida em Veneza. Pelo contrário. Desde o século V pelo menos, de quando data o primeiro relato de inundação da cidade causada pelas marés, que a capital do Veneto sofre inundações que aparentemente já foram mais esporádicas, embora os registos só se tenham tornado mais fiáveis no final do século XIX e, sobretudo, no século XX.

Um dos fatores que se sabe que agravou o episódio agora ocorrido foi a velocidade do vento que ali sopra de sul, o Siroco, que chegou atingir os cem quilómetros por hora na terça e na quarta-feira. Mas a subida global do nível do mar, devido ao aquecimento global, também desempenha aqui um papel decisivo, já que induz níveis altos de marés.

A Lua cheia, o vento Siroco e a mão humana

"O fenómeno da acqua alta é complexo e resulta de um conjunto de fatores naturais e induzidos pelas atividades humanas", explica ao DN o investigador italiano Andrea Zille, do Centro de Ciência e Tecnologia Têxtil da Universidade do Minho, que para a sua tese de licenciatura, em Ciências do Ambiente, fez um estudo aprofundado sobre a hidrogeologia da região de Veneza.

Nesse conjunto de fatores está em destaque, desde logo, o regime de marés e de ventos da região.

Ligada ao mar Adriático, protegida apenas por uma barreira de ilhas e línguas de areia, a lagoa de Veneza sofre a influência das suas marés. Estas, por sua vez, são condicionadas também pelos ventos característicos da região: o Bora, que sopra de norte, e o Siroco, que sopra de sul. É este último que, empurrando as águas para norte, funciona como um travão ao fluxo da água da lagoa para o mar Adriático, o que, em situação de acqua alta, não ajuda nada, como agora se viu uma vez mais.

Quando tudo coincide com dias de Lua cheia, ou com os momentos equinócios, quando a Lua passa no ponto da sua órbita em que está mais próxima da Terra, que como se sabe influenciam as marés, o fenómeno tende a ser mais intenso ainda.

"Este fenómeno sempre existiu, mas agravou-se nos últimos 150 anos devido às alterações introduzidas na lagoa pelas atividades humanas", afirma Andrea Zille.

Entre essas alterações contam-se a destruição de zonas húmidas junto à costa para a sua utilização na agricultura. "Na maré alta, essas zonas absorviam a água em excesso, e isso agora já não acontece", explica o investigador.

Mas essa não foi a única mudança importante. A exploração industrial na zona - a atividade portuária e as indústrias químicas que existem na parte continental - utilizaram durante décadas a água de um aquífero sob os sedimentos da lagoa, e isso acabou por alterar o equilíbrio hidrogeológico da zona. "Durante muito anos foi utilizada essa água subterrânea e parte do espaço que ela ocupava ficou vazio", conta Andrea Zille.

​​​​​Em consequência disso, as ilhas da região, Veneza incluída, começaram a afundar-se mais depressa. É o fenómeno da subsidência, o movimento do solo para baixo, o que implica uma descida em relação ao nível do mar. Com a proibição pelas autoridades locais da utilização daquelas águas subterrâneas, há cerca de 20 anos, a velocidade da subsidência da ilha de Veneza já diminuiu, estando agora estabilizada entre 1,2 e 1,5 milímetros por ano.

A subida do nível do mar

Dados do Centro de Previsão e Sinalização das Marés de Veneza mostram que, "face a 1897, a quota altimétrica de Veneza desceu 26 cm", cita Andrea Zille. "Desses 26 cm, 12 são atribuídos ao abatimento do solo tanto por causas naturais como antrópicas, e 14 à subida do nível do mar. Destes 14 cm, nove são diretamente atribuídos à subida global dos oceanos e cinco estão relacionado com subida local do nível da água do marl",adianta o investigador.

Como se vê, as alterações climáticas já passaram também a fazer parte desta complexa equação: isso está desde logo na subida do nível do mar, que é da ordem dos 3,1 milímetros ao ano nesta altura. No último século essa subida já soma um total de 20 cm.

Isso também ajuda a explicar por que motivo os episódios de acqua alta em Veneza estão a tornar-se mais frequentes e aparentemente mais intensos. "Com o nível do mar mais alto, torna-se também mais fácil que a maré alta ultrapasse os 90 cm", conclui Andrea Zille.

Os números parecem confirmar isso mesmo: dos dez episódios mais intensos deste fenómeno de que há registo, cinco aconteceram nos últimos 20 anos. E um deles ocorreu precisamente no ano passado, por esta altura, quando a maré ultrapassou os 150 centímetros.

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