Apesar de ser um cineasta da geração de John Ford, Howard Hawks e Frank Capra, o nome de Allan Dwan (1885-1981) não suscita o tom coloquial com que muitos cinéfilos se referem, por exemplo, a uma ou outra obra-prima daqueles realizadores. Quer dizer, não falamos deste americano nascido no Canadá como o "realizador de" mas como um dos mais produtivos da história do cinema, se não o mais produtivo, a quem se credita cerca de 1600 títulos, entre as décadas de 1910 e 1960 - uma curiosidade que, até agora, quase não passava disso. O ciclo que a Cinemateca apresenta neste mês, com continuação em janeiro do próximo ano, surge assim como a grande chance de tirar os filmes de Allan Dwan de uma zona vaga e estática para lhes dar o devido contexto de apreciação. E perante a impossibilidade de cobrir toda a sua obra (naturalmente, alguns dos filmes estão perdidos e outros têm circulação limitada), os cerca de sessenta títulos disponíveis na sala da rua Barata Salgueiro fazem desta retrospetiva a mais ampla alguma vez dedicada à sua obra, em qualquer lugar do mundo, oferecendo uma visão criteriosa das diferentes fases do seu trabalho e respetiva variedade de géneros..Com formação em engenharia, e iniciando a carreira numa altura em que as questões técnicas do cinema eram ainda território bravio, Dwan - que inclusive colaborou com D.W. Griffith - foi também um dos pioneiros da indústria americana. Só nesses anos 1910, o próprio contabilizou 400 filmes, muitos deles de uma ou duas bobinas, produzidos a um ritmo semanal. Adaptou-se depois, com agilidade, ao cinema falado, mais tarde ao cinema a cores, e ao longo de meio século explorou praticamente todos os géneros, saindo de cena quando se começavam a sentir os últimos estertores da Hollywood clássica; data de 1961 a estreia do seu derradeiro filme, O Mais Perigoso Homem Vivo (na realidade rodado em 1958), que é justamente a longa-metragem que abre o ciclo nesta quinta-feira (19h00)..Most Dangerous Man Alive é uma ficção científica, com traços de film noir, sobre um gangster fugitivo que se encontra no local errado à hora errada: a exposição a um teste nuclear torna-o, como o título indica, um homem invencível que, enquanto procura vingança por uma traição de outros mafiosos, vai lidando com a estranheza do seu "corpo de aço", sujeito a mutações. Um filme que funciona como uma boa síntese da perícia do realizador, que soube como poucos trabalhar com baixos orçamentos, sem desvirtuar a arte da narrativa visual..Isso mesmo se confirma noutras produções de série B - da fase em que assinou contrato com pequenos estúdios, no caso, a Republic -, como o belíssimo Driftwood (1947) e a comédia ao estilo de Capra The Inside Story (1948), ambos escritos pelo casal de argumentistas Mary Loos e Richard Sale, que foram exímios a traduzir nas suas histórias algo dos bons sentimentos e otimismo natural de Allan Dwan. Driftwood é, de resto, um dos filmes mais admiráveis desta primeira parte da retrospetiva, centrado no talento luminoso de uma pequena Natalie Wood, que interpreta Jenny, uma menina órfã acompanhada por um cão (espécie de Lassie) na sua viagem iniciática dentro da civilização. Tudo se passa numa pequena cidade do interior da América, onde o médico que acolhe Jenny está a desenvolver uma vacina contra a febre da carraça. E neste quadro de bonomia Dwan revela aquilo que Jacques Lourcelles, autor de um volume do Dictionnaire du Cinéma, chamou de "génio da gentileza." Por sua vez, The Inside Story usa o tópico da economia para ilustrar uma vivência de comunidade: através do trajeto de uma certa quantia de dinheiro (mil dólares) que passa de mão em mão, vamos conhecendo os dramas das personagens. Um conto moral e otimista, pois claro, que é também um jogo cómico inteligente, a mostrar os benefícios da circulação do dinheiro (e das ideias, porque não?)..De entre as propostas, destaque igualmente para o filme de guerra O Inferno de Iwo Jima (1949), que valeu a John Wayne a sua primeira nomeação para o Óscar, no papel de um sargento, e para o western Montana Belle (1952), um dos vários que Dwan realizou com mulheres protagonistas, neste caso, Jane Russell. Na segunda parte da retrospetiva, em janeiro, haverá outro, A Rainha da Montanha (1954), com Barbara Stanwyck e o futuro presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Note-se que, apesar de se ter convertido num artesão independente do poder das vedetas, Allan Dwan dirigiu, nos anos 1920, estrelas maiores como Douglas Fairbanks e Gloria Swanson..Dessa fase do mudo, um dos filmes que vai valer muito a pena redescobrir no grande ecrã, numa sessão acompanhada ao piano por Filipe Raposo (dia 9, 19h00), é A Cidade Gigante (1927). Uma carta de amor a Nova Iorque que retrata a prosperidade de um jovem de origens modestas, entre desventuras amorosas e laços de família ocultos. Uma personagem que, na sua força bruta (a certa altura distingue-se como pugilista), não está longe do homem de aço de Most Dangerous Man Alive....Repescado nas últimas décadas por historiadores e críticos, o extenso e eclético percurso de Allan Dwan na indústria cinematográfica vai ser finalmente contemplado, para além da retrospetiva, numa pequena edição da Cinemateca, que marca o início de uma nova coleção dedicada a autores estrangeiros. Até à data, a literatura à volta do cineasta resume-se, em substância, ao livro Allan Dwan, La Légende de L"Homme aux Mille Films, dos Cahiers du Cinéma, editado por ocasião de um ciclo no Festival de Locarno, que inclui a entrevista de Peter Bogdanovich ao realizador. É caso para dizer: vem aí o homem dos mil filmes..dnot@dn.pt