Água engarrafada vale 266 mil milhões de euros no mundo

A água passou, em poucas décadas, de um produto essencial, sem marca, a um produto premium, gourmet, com o marketing a dar tudo por tudo para o valorizar. O mercado está a crescer em todo o mundo, apesar de a água da torneira, em muitos países da Europa e do mundo, ter muito boa qualidade para consumo. Em Portugal produzem-se cerca de mil milhões de embalagens destinadas à comercialização de água, provocando elevado impacto ambiental. Escolha está do lado do consumidor.
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O consumo de água engarrafada tem aumentado significativamente em todo o mundo, e a tendência de crescimento parece que veio para ficar. Segundo dados da Statista, multinacional especializada em estudos de mercado, o volume de negócios global desta indústria rondará os 300 mil milhões de dólares (aproximadamente 266 mil milhões de euros) no final de 2021, sendo o mercado norte-americano aquele que arrecada maior fatia deste negócio: qualquer coisa como 80 mil milhões de dólares (cerca de 71 mil milhões de euros). O crescimento anual previsto pela Statista para este segmento é de 6,9% ao ano até 2026. Este volume de vendas equivale a um consumo médio de 62,6 litros por pessoa em todo o mundo. Porém, se nos focarmos apenas na Europa, e segundo dados relativos da Statista, mas relativos a 2019, o consumo médio de água engarrafada no Velho Continente é de 118 litros por pessoa - quase o dobro da média mundial - sendo que a Itália é o maior consumidor, com 200 litros per capita, seguida da Alemanha com 168 litros, e Portugal, que surge em terceiro lugar, com 140 litros consumidos por cada português.

Este crescimento no consumo de água engarrafada pode ser explicado por várias razões, nomeadamente por fatores subjetivos como a perceção de maior segurança, a falta de confiança na qualidade da água da rede pública, o sabor, o odor, e muito em parte, pelo marketing das empresas que produzem e comercializam este produto. Ainda não há muitas décadas a água era vista apenas como um bem essencial, uma commodity sem marca, e hoje tornou-se quase um produto de culto nos países mais ricos. As garrafas de água comercializadas um pouco por todo o mundo tornaram-se mais fashion, mais atrativas, mais sexy até, aos olhos do consumidor. Os marketeers transformaram as águas mais puras em produtos estrela, enaltecendo as inúmeras vantagens para a saúde de quem as bebe. Argumentos organoléticos, como o sabor, a cor, o cheiro, e benefícios como a alcalinidade ou a pureza, livre de desinfetantes e outros químicos usados na rede de abastecimento público, são suficientes para convencer as famílias a optar pelas grandes marcas, havendo preços distintos para todos os bolsos. Os maiores players mundiais deste jogo são a Nestlé, dona de marcas como a San Pellegrino e a Vittel, a Danone, com a Volvic e Evian, e a Coca-Cola com a Bonaqua e a Apolinaris.

Algumas insígnias são vendidas a preços elevados devido à sua raridade, à dificuldade de captação e pela sua natureza exótica, mas outras são comercializadas a preços astronómicos apenas porque, num golpe de marketing, foram transformadas em peças de luxo, destinadas exclusivamente às classes de topo. A água engarrafada mais cara do mundo, por exemplo, consiste numa mistura de água das Ilhas Fidji, água mineral francesa e água glaciar da Finlândia e é vendida numa garrafa em ouro, esculpida em homenagem ao artista plástico Modigliani, custando cerca de 55 mil euros. Também a japonesa Kona Nigari Water, atinge os 350 euros por garrafa de 750 mililitros e a Fillico Jewel, igualmente nipónica, custa perto 200 euros. Quem as adquire, não compra água, compra status. A lista de águas de luxo é grande, mas a das águas premium - mais caras do que o habitual, mas acessíveis a grande parte dos consumidores - é ainda maior. Quem não conhece a famosa água Evian - talvez a primeira a lançar a moda das marcas topo de gama -, com origem nos alpes franceses ou a água Voss, captada na Noruega, da qual afirmam ser a água mineral mais pura do mundo, e que, em Portugal, atinge quase os 10 euros por litro.

Porém, a indústria está apenas a fazer o que lhe compete: divulgar o seu produto da melhor forma que consegue, criando assim emprego e riqueza nos locais onde está instalada. Segundo a European Federation of Bottled Waters (EFBW), mais de um quarto da produção mundial de água engarrafada está localizada na Europa, onde são consumidos, anualmente, cerca de 52 mil milhões de litros. O setor contribui com emprego direto a mais de 54 mil pessoas, trazendo investimento sobretudo a regiões rurais e menos prósperas. Em Portugal, segundo a APIAM - Associação Portuguesa dos Industriais de Águas Minerais Naturais e de Nascente, existem 32 oficinas de engarrafamento de águas minerais e de nascente, situadas predominantemente em regiões do interior. "As empresas do setor geram cerca de 10 mil postos de trabalho, direta e indiretamente, contribuindo para fixar emprego em regiões mais desertificadas. Este é emprego não deslocalizável", explica Francisco Furtado Mendonça, diretor-geral desta associação.

O mercado nacional valia, em 2019, ou seja, antes da pandemia, cerca de 225 milhões de euros, correspondendo a uma produção de 1500 milhões de litros, um crescimento de 3,3% face ao ano anterior. Porém, com o fecho do canal Horeca, em 2020, o mercado caiu qualquer coisa como 25% em valor, e as exportações - que correspondiam a 5% da produção nacional - caíram na mesma proporção. Este responsável explica que as águas minerais naturais e as águas de nascente portuguesas "estão posicionadas entre as mais cotadas e prestigiadas águas europeias", afirma, acrescentado que as nossas marcas são exportadas para 46 países. No entanto, frisa também que não existem em Portugal águas com preços "astronómicos", e que 99% das águas comercializadas no país são de origem nacional, escusando-se a revelar quais as marcas mais vendidas no mercado doméstico.

Segundo o estudo InMarket 2020 realizado pela Multidados, a marca com maior reconhecimento espontâneo em Portugal é a água do Luso, com uma percentagem de 84,4%. Segue-se a Vitalis, com 36,1%, a Penacova com 25,6%, a Serra da Estrela, com 20%, Fastio com 18,9% e a Monchique com 18,3%. Penacova surge, no entanto, em primeiro lugar no segmento das águas sem gás, e a Pedras lidera nas águas com gás.

Á semelhança do resto do mundo, as marcas portuguesas estão também a apostar no segmento gourmet. A Vitalis, por exemplo, lançou, em 2008, uma água premium, com uma garrafa mais sofisticada, em vidro destinada a restaurantes, hotéis e lojas gourmet. A Monchique enfatiza as suas características de água alcalina, com PH de 9,5, para valorizar as suas vendas (uma caixa de 6 garrafas de vidro de 75 centilitros custa aproximadamente 7,14 euros). Mais recentemente o Grupo Outeirinho lançou a Healsi, uma água premium, rica em sílica e com PH neutro, comercializada numa garrafa estilizada, em forma de diamante, e que permite personalizar o rótulo. Esta garrafa foi até premiada em 2018 com a medalha de ouro na categoria de design de embalagem no Asia Food Innovation Awards. Já este ano foi selecionada como a água oficial do restaurante Al-Lusitano, conduzido pelo chef Chakall, no Pavilhão e Portugal na Expo 2020 Dubai.

Entretanto, surgiram outras soluções alternativas à água engarrafada como a água da torneira filtrada. A cadeia de restaurante McDonald"s em Paris, por exemplo, decidiu acabar com as garrafas de plástico e vende copos de papel com água da torneira, com a marca Eau By McDonald"s, mas a um custo por litro que se aproxima dos 5 euros e já está a gerar polémica naquele país. Em Portugal surgiram vários negócios de água filtrada, com marca própria, como a D"Água, água micro-filtrada, vendida em garrafas de vidros e dirigida essencialmente a hotéis, eventos, restaurantes, com a vantagem de poder ser personalizada com o logotipo do cliente. A APIAM defende-se deste novo nicho dizendo, a propósito, que esta água não é um sucedâneo da água natural engarrafada e que são produtos totalmente distintos. Francisco Furtado Mendonça diz que "é não correto comparar águas minerais naturais e águas de nascente com a água da torneira. São produtos diferentes pelo que as comparações não são legítimas".


Dada a enorme diversidade de águas engarrafadas no mercado, todas elas com diferentes alegações, e outras tantas soluções alternativas, como os filtros que prometem milagres, o consumidor fica baralhado na hora de tomar decisões. Que água comprar, qual a opção mais sustentável ou mais económica para a carteira de cada um, são as dúvidas que nos assolam. Se o objetivo do consumidor for poupar no orçamento familiar, a água da torneira é a melhor solução; se por outro lado tiver preocupações ambientais, o consumo de água da rede pública é o melhor caminho. Porém, se não gostar do gosto e odor da água canalizada e preferir o consumo de uma água mais pura e livre de químicos, a água engarrafada poderá ser a melhor solução.

De uma coisa há garantia: a água da torneira em Portugal tem, atualmente, qualidade considerada de excelência pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR). "Em Portugal, tem-se verificado uma evolução muito positiva, quer em relação à qualidade da água na torneira do consumidor, quer em relação à realização do número de análises obrigatórias, evidenciando uma clara melhoria no controlo da qualidade da água na última década. Em 2020, a percentagem de água segura em Portugal continental era de 98,8 % um valor considerado de excelência", afirma Vera Eiró, presidente da ERSAR. Por esta razão, esta responsável defende que "temos a vantagem, que tantas vezes nos passa despercebida, de podermos beber água da torneira, com segurança e com vantagens para o ambiente". A ERSAR salienta que os resultados de controlo da água destinada ao consumo humano são referentes à água saída da torneira, quer da casa dos consumidores, quer, por exemplo, de edifícios como hospitais, escolas, lares e hotéis. Esclarece que, apesar da responsabilidade de manter as canalizações dos edifícios em bom estado ser dos próprios proprietários, apenas 5% dos incumprimentos reportados em 2020 foram relativas às redes prediais. Por isso, "o risco de contaminação da água da torneira por canalizações em mau estado é baixo", afirma Vera Eiró.

A associação ambientalista ZERO associou-se à EPAL para lançar, em março de 2021, a campanha online "Água da Torneira". No site da campanha (https://aguadatorneira.pt/), através do qual o consumidor pode aderir, são explicadas as vantagens de beber água canalizada e são, sobretudo, divulgados os impactos ambientais da água engarrafada. "As pessoas acreditam que a água engarrafada tem melhor qualidade do que água da torneira, o que não corresponde à verdade, pois em Portugal temos água segura para consumo. O que acontece é que, muitas vezes, as pessoas não gostam do sabor", refere a propósito Sara Correia, responsável da ZERO. Explica que, em 2019, foram produzidas mais de mil milhões de embalagens destinadas à comercialização de água, das quais perto de 90% são de plástico. Logo, em média, o consumo de água engarrafada é responsável por uma produção de resíduos plástico que pode atingir as 25 mil toneladas anuais.

"Por isso entendemos que é necessário desmistificar o consumo da água da torneira e promover o seu consumo", explica Sara Correia. Um estudo realizado por esta associação, para a região de Lisboa, mostra que consumir água da torneira fica 300 vezes mais barato para o consumidor. "Claro que a poupança poderá não ser igual em todo o país porque o preço da água não tem o mesmo preço em todos os concelhos", explica. Acreditando que será pouco provável que toda a população deixe de beber água engarrafada, para reduzir consideravelmente os resíduos de plástico já seria muito positivo se a indústria migrasse para o vidro e com tara retornável. "Por outro lado, também temos de ter em consideração o impacto ambiental de produzir água engarrafada que também consome água da rede pública. Ou seja, as fábricas também precisam de água em várias etapas do fabrico, e há estudos que mostram que para produzir um litro de água engarrafada são necessários três litros de água", explica Sara Correia. Ou seja, estando um mundo numa fase de carência de água, com a escassez a aumentar até 2050 e sendo esta uma prioridade dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, a produção de água engarrafada está do lado do problema e não da solução. Mais de mil milhões de pessoas não têm acesso a água segura, e quase 4 mil milhões vivem em escassez de água potável, em pelo menos um mês em cada ano.

Também a Deco Proteste, organização para a defesa do consumidor, promove o consumo de água da torneira, pelos motivos já descritos. Elsa Agante, team leader da área de Energia e Sustentabilidade refere que nos últimos anos tem-se assistido a um grande progresso na qualidade da água da torneira. "Em 1995, o indicador da qualidade era de 60%, atualmente é de 99%, portanto houve uma grande evolução. Além disso, a ERSAR faz até análises a parâmetros que não são obrigatórios, superando as metas europeias em termos de exigência", diz Elsa Agante. A qualidade existe, agora o que leva muitas vezes o consumidor a comprar água engarrafada e a gastar mais mensalmente é a perceção de segurança, pelo gosto, pela cor, pelo odor, ou pela turvação. "O que aconselhamos é deixar em repouso num copo ou jarro, ou aromatizar, por exemplo, com limão, hortelã ou um pouco de maçã. A água aromatizada também está na moda e pode ser preparada em casa", explica. Esta associação não aconselha, no entanto, o uso de filtros, que são bastante dispendiosos em alguns casos, e que pouco ou nenhum efeito têm na qualidade da água. "Caso o consumidor não queira optar por água da torneira, então aconselhamos que prefira marcas nacionais, porque o impacto ambiental do transporte é inferior", explica Elsa Agante.

Vera Eiró refere igualmente que "as características organoléticas da água são, de facto, muito importantes para reforçar a confiança dos consumidores na água da torneira, pelo que a ERSAR recomenda às entidades gestoras que os aspetos relacionados com a aceitabilidade da água sejam devidamente cuidados". Explica que é necessário continuar o trabalho de consciencialização já iniciado e revela que, em 2022, a ERSAR relançará a aplicação móvel que permitirá aos utilizadores consultar uma série de informação sobre o abastecimento de água por região, por entidade gestora e por indicador. Estão também previstos novos conteúdos informativos e didáticos, a publicar no site desta entidade, sobre o tema da qualidade da água na torneira do consumidor.

Portanto, se o sabor prejudica a água da torneira, o impacto ambiental é o maior inimigo da indústria. Um estudo recente do Instituto de Barcelona para a Saúde Global comparou o impacto, no ambiente e na saúde, de consumir apenas água engarrafada ou apenas água da torneira na cidade de Barcelona, chegando à conclusão que a redução do impacto ambiental na diminuição de consumo de água engarrafada supera em larga escala os riscos de saúde - como o cancro da bexiga - que possam eventualmente surgir com o consumo de água da torneira (ver caixa). Para a cidade de Barcelona, estes os investigadores assumem claramente como vantajoso o consumo de água da torneira, já que o risco para saúde é mínimo.
Contudo, o impacto ambiental também preocupa a indústria europeia como um todo, já que a EFBW se comprometeu com uma economia circular até 2025. Francisco Furtado Mendonça diz que a APIAM foi uma das primeiras associações a subscrever os Acordos Circulares com a Agência Portuguesa do Ambiente e com o governo, e a assumir vários compromissos até 2025. São eles assegurar a retoma de 77% das garrafas de bebidas em plástico (PET) em 202,5 e de 90 % em 2029, e assegurar uma incorporação mínima de 25% de PET reciclado (rPET) na produção de novas garrafas. "Todas as garrafas de água mineral e de nascente são em PET ou em vidro. Todas são recicláveis, pelo que nunca deveriam ser tratadas como lixo", diz.


Os estudos não comprovam esta teoria, e há mesmo especialistas que
dizem ser apenas um mito.

Generalizou-se um pouco por todo o mundo que consumir água alcalina (com PH superior a 7, abaixo de deste valor é considerada ácida) traz enormes benefícios para
a saúde, pois reduz a acidez do sangue, retardando, por exemplo, o envelhecimento, reduzindo a inflamação generalizada do corpo, entre outras vantagens. A indústria também aproveita esta questão para promover as qualidades das suas águas minerais, em função da alcalinidade. Porém, não parece haver evidência do lado da ciência de que esse consumo tenha uma correlação direta.

Vários especialistas têm-se manifestado publicamente sobre essa falta de evidência científica. Alicia Kowaltowski, médica e professora de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo, escreveu na revista Questão de Ciência, que a água alcalina não cura nada nem devolve juventude a ninguém. Para ela, o ser humano teria de beber muitos, mas muitos, litros de água diariamente para que se sentisse alguma diferença no corpo em termos de acidez. Afirma que esta tendência não passa de uma moda.

Pelo facto de a qualidade da água da torneira ter aumentado consideravelmente nos últimos anos em várias cidades europeias, e o consumo da água engarrafada não ter diminuído, o Instituto de Barcelona para a Saúde Global realizou um estudo científico em que pretendia analisar o impacto das escolhas dos consumidores em termos de hábitos de consumo de água (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969721039565?via%3Dihub).

Cristina Villanueva, pesquisadora principal, refere que, como a qualidade da água canalizada aumentou em Barcelona, e esta melhoria não foi refletida no aumento do consumo de água da torneira, este comportamento teria de ser motivado por fatores subjetivos. Um desses fatores é a suposta presença de compostos químicos na água da torneira, resultantes da desinfeção, que possam conduzir a cancro da bexiga. Embora, de facto, exista essa possibilidade, este estudo, que utilizou diversos modelos aplicado a três cenários (só consumo de água engarrafada, só consumo de água filtrada e só consumo de água da torneira) mostra que esse risco é pequeno, sobretudo se comparado com os impactos globais da água engarrafada.

Entre os vários resultados obtidos está o facto de, num cenário em que toda a população da cidade passasse a consumir água engarrafada, existira um impacto de 83,9 milhões de dólares (cerca de 80 milhões de euros) por ano no custo de extração de matérias primas, e seriam extintas 1,43 espécies anualmente. Isto resulta num impacto 1400 vezes maior nos ecossistemas e 3500 vezes mais no custo da extração de recursos, face ao cenário em que toda a população (ascende atualmente a 1,6 milhões) bebesse água da torneira.


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