O juiz de instrução criminal (JIC) do tribunal do Seixal está a analisar o requerimento de abertura de instrução dos cinco moradores do bairro da Jamaica envolvidos nos incidentes violentos com a PSP, em janeiro de 2019. A família Coxi - os pais, Fernando e Julieta, com 64 e 52 anos, respetivamente, e os filhos, Hortêncio, 32, Flávio, 34, e Higina, de 25 - de origem angolana, todos residentes naquele bairro, contesta a decisão do Ministério Público (MP) que, em outubro passado, acusou três deles e um dos polícias..Estes residentes tinham apresentado queixa contra a equipa de intervenção rápida que se deslocou ao bairro, por causa de um distúrbio entre duas mulheres, mas acabaram por ver arquivada essa denúncia. Com base em novos factos e suspeitas não investigados querem o processo reaberto e que nove agentes sejam julgados por crimes de ofensa à integridade física qualificada; um crime de falsificação de documento agravado; coautoria de sequestro agravado; e denúncia caluniosa..Há, pelo menos, duas situações que a defesa quer ver esclarecidas na investigação: uma delas é o facto de a magistrada do MP ter tomado a sua decisão sem analisar os fotogramas (fotos detalhadas) do vídeo sobre os incidentes - que "manifesta a falta de imparcialidade e do dever da procura da verdade material"; outra é a suspeita de que o ferimento na cara de um dos polícias, alegadamente provocada por uma pedrada de Hortêncio, possa afinal ter sido causado, inadvertidamente, pelo bastão de outro agente..Ao que o DN apurou, quanto aos fotogramas tratou-se de um atraso por parte da Polícia Judiciária (PJ) em remetê-los ao MP. A procuradora responsável pelo processo não quis esperar: "Por despacho datado de 21-01-2019, solicitou-se à PJ que extraísse fotogramas do vídeo (...) pese embora as insistências efetuadas ao longo de todo o inquérito, os fotogramas não foram juntos, não existindo previsão da data para que tal ocorra (...) não sendo a junção dos fotogramas essencial para a descoberta da verdade material e boa decisão de causa, sendo os vídeos juntos aos autos suficientes. Não se justifica que os autos fiquem a aguardar por tal elemento e, dessa forma, protelar o presente inquérito", escreveu a magistrada. Para a defesa da família Coxi estes fotogramas pormenorizados permitem demonstrar e provar a sua versão dos acontecimentos..Contactada pelo DN, fonte oficial da direção da PJ reconhece o atraso, atribuindo o mesmo "ao pedido ter sido mal reencaminhado". Garante que na passada semana "todos os fotogramas pedidos já foram enviados às autoridades competentes"..Comandante da PSP duvida da causa do ferimento do polícia.Quanto à dúvida em relação ao ferimento na boca causado no agente Tiago A. - cujas imagens foram amplamente difundidas -, ela foi escrita pelo punho do comandante da esquadra da PSP de Cruz de Pau, de onde era a equipa policial visada. Num ofício que é citado no requerimento de abertura de instrução, este oficial refere que "recentemente foi-me dito pelo agente (...) relativamente à ocorrência no bairro da Jamaica, Fogueteiro, em concreto a agressão de que foi alvo o agente A. Andavam a circular rumores de que os ferimentos por aquele sofridos poderiam ter origem numa bastonada dada por um colega e não pelas agressões do indivíduo suspeito"..Questionada a direção da PSP sobre se estes "rumores" e dúvidas já foram esclarecidos, fonte oficial lembra que "foram instaurados dois processos disciplinares pela PSP, a dois polícias envolvidos, que se encontram a decorrer". Assim, sublinha este porta-voz, "todos os meios de prova são e serão analisados tendo em vista apurar todos os factos ocorridos"..Por causa desta alegada agressão ao polícia, Hortêncio Coxi foi acusado pelo MP pela prática de dois crimes de resistência e coação sobre funcionário e sete de injúria agravada. A defesa da família Coxi entende que, tendo em conta as dúvidas que foram apresentadas por um comandante da PSP, este homem não deve ser pronunciado por estes crimes..Na exposição feita no requerimento de abertura de instrução - um procedimento em que um juiz analisa as provas apresentadas pela defesa e acusação e decide quem deve ou não ir a julgamento - é pedido que polícias respondam em tribunal por 11 crimes de ofensa à integridade física qualificada (seis na pessoa de Hortêncio, um em Fernando, três em Higina e um em Julieta) ; um crime de falsificação de documento agravado; um crime, em coautoria, de sequestro agravado; um crime de denúncia caluniosa..Mãe Julieta agredida no chão, inanimada.Na versão do requerimento ao JIC, a Polícia foi chamada no decorrer de um desacato, em que Hortêncio terá empurrado uma das raparigas envolvidas. Foi essa rapariga quem solicitou a presença da polícia. Hortêncio encontrava-se fora do perímetro de segurança traçado pela PSP, pelo que se aproximou para perceber o que se passava..Assim que o fez, foi empurrado por um agente da PSP contra um pilar. Mais dois agentes juntaram-se à sua volta e agrediram-no, "fazendo-o sangrar abundantemente". Em pânico, Hortêncio tentou fugir, mas caiu e continuou a ser agredido. Voltou a conseguir fugir, tendo sido perseguido por vários agentes e novamente agredido "até decidirem parar" e um dos agentes gritou-lhe "vai para casa e não voltes mais!". A defesa evidencia que em momento algum atirou pedras aos agentes da PSP - um momento que não é documentado pelo vídeo..Visivelmente fragilizado pediu ajuda a seu pai, Fernando, que se dirigiu ao seu encontro. Neste momento, os agentes tapam a cara com uma gola, calçam as luvas e preparam os bastões para a seguir agredirem Fernando e Hortêncio. Ao ver a violência contra o pai e o irmão, Higina corre em seu socorro, tentando empurrar os polícias, acabando por ser agredida e cair no chão inanimada, resultado de uma forte bastonada nas suas costas..Nesse mesmo momento, a mãe, Julieta, sai em socorro do marido e dos filhos, sendo também esta agredida por vários agentes até perder os sentidos. De acordo sempre com a narrativa do requerimento da defesa, um agente empunhando uma shotgun impedia os moradores de ajudarem a senhora "inanimada no meio do lixo", sem que os agentes "em nenhum momento se lembrassem de que se tratava de um ser humano, diminuindo a sua dignidade humana"..Hortêncio continuava a ser agredido, perante o desespero de seu pai, que não conseguia demover os agentes. E Higina, ainda desmaiada, também continuava a ser espancada "sendo várias vezes arrastada pelos cabelos" e "pisada no ventre"..Hortêncio foi levado para a esquadra, ilegalmente segundo a defesa, e ali também sofreu agressões violentas por parte do agente Tiago A. Só três horas depois de ter sido detido é que foi levado à urgência do hospital onde foi foi suturado no couro cabeludo e na orelha..Nesse mesmo dia, segundo o requerimento que entrou em tribunal, um dos agentes preencheu um auto de notícia falso, em que refere que o motivo da detenção é o facto de Hortêncio lhe ter atirado uma pedra que lhe acertou no lábio..Agredidos constituídos arguidos.Perante as queixas que lhe foram apresentadas - da família Coxi e do agente ferido -, a magistrada do MP juntou todos os processos e constituiu os Coxi arguidos, acusando depois quatro deles (Hortêncio, Flávio, Higina e a mãe Julieta). Os polícias (à exceção de Tiago A.) foram ouvidos como testemunhas, acusando apenas Tiago A..A defesa pede a separação dos inquéritos e que os agentes envolvidos sejam constituídos arguidos, argumentando que todas as imputações contra a família foram feitas exclusivamente pelos testemunhos parciais dos agentes..Uma das imputações da acusação é que a mãe Julieta pegou num "tubo de características não apuradas" para agredir um dos polícias, mas, segundo as testemunhas da defesa, tratava-se sim de um pequeno "rolo de cartão" que apanhou à mão..A procuradora considerou que as agressões à família "foram feitas ao abrigo do instituto de legítima defesa", o que merece o total desacordo da defesa. Para contrariar esta posição, no requerimento é feita uma apresentação detalhada sobre a Norma de Execução Permanente (NEP) da PSP que define o uso da força e citada uma intervenção do intendente da PSP, Simões de Almeida, numa conferência sobre "Polícia e Direitos Humanos", no âmbito da celebração dos 50 anos da Convenção dos Direitos Humanos.."Muitas vezes as causas do recurso à força devem-se a fatores próprios da personalidade do profissional." Entre eles, "a errada perceção dos fins do poder atribuído", um "errado conceito da autoridade, muitas vezes confundido com o poder pessoal exercido 'a gosto'", "Insegurança pessoal" e "impreparação técnico-profissional", disse o oficial. "Certo é que, sempre que haja um recurso ilegal à força, isso pode precipitar a desordem pública, na medida em que a comunidade não aceita o uso arbitrário e perigoso para a segurança dos seus cidadãos. Isso retira às forças policiais legitimidade para responder às altercações da ordem fomentados pelo abuso de poderes, conduz à perda da confiança e do apoio da sociedade", concluiu..Arrastar e pisar uma jovem mulher não é desproporcional.A procuradora titular do inquérito decidiu pedir um parecer ao Comando Metropolitano de Setúbal, onde pertencem os agentes em causa, sobre a legitimidade do uso da força. "De notar", diz a defesa, "que o Comando Metropolitano de Setúbal não é um órgão de controlo interno, nem externo da atividade policial"..Com base neste parecer, é sublinhado no requerimento, a magistrada entendeu que, por exemplo, a ação do agente Marco C., "suspeito de ter dado umas bastonadas na cabeça de Hortêncio, de que resultaram vários ferimentos, não é excessiva e são consentâneas com o procedimento policial e a NEP". Também entendeu que este agente, "suspeito da violenta bastonada na face da mulher idosa, Julieta Luvunga, deixando-a inanimada, agiu legitimamente (...) com receio de esta continuar a atingir o corpo do seu colega Jorge A. com um tubo de cartão que esta empunhava". Também este último agente "agiu em legítima defesa" quando "desferiu uma pancada com o bastão no pescoço de uma jovem mulher, de estrutura magra (Higina), até a deixar inanimada, que, com as mãos, alegadamente, agredia o seu colega Rodrigo S."..A defesa da família Coxi lamenta que a procuradora titular do inquérito tenha entendido que "em pleno século XXI, após a assinatura da declaração Universal dos Direitos do Homem, da Convenção contra a Tortura, da Publicação da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais, num Estado de direito democrático, baseado na dignidade da pessoa humana, agentes que pisam e arrastam pelos cabelos uma jovem mulher, prostrada no chão, não agem de forma desproporcional, arbitrária e com intenção de agredir"..A Inspeção-Geral da Administração Interna, órgão de fiscalização da atividade policial, anunciou, logo no dia a seguir aos incidentes, que abriu um "processo de acompanhamento e monitorização do processo de inquérito aberto pela PSP", cujos resultados não são conhecidos..Recorde-se que este caso mobilizou manifestações antirracistas, uma na Avenida da Liberdade, que acabou com a detenção de alguns manifestantes e a sua condenação por "participação em motim", outra, mais pacífica, organizada por moradores do bairro da Jamaica, junto à Câmara Municipal do Seixal.