"Toda a gente vista de muito perto parece meio maluca"
O escritor Afonso Cruz, de 48 anos, já não fazia a travessia de barco de Lisboa para Cacilhas há uns anos, desde que deixou o ateliê que tinha na Margem Sul com uns amigos aos vinte e poucos anos. O cais de embarque está diferente da altura em que ainda se dedicava às artes plásticas a tempo inteiro. Tinha saído da escola de artes lisboeta António Arroio, foi estudar, durante um ano, para a Madeira, e voltou à capital. Começou por trabalhar em publicidade, ilustrava, fez cinema de animação e a vontade de escrever revelou-se aos 36 anos.
Deixou Lisboa há 11 anos para ir viver para o Alentejo. Saudades? "Sinto, por vezes, falta de algumas coisas." Mas volta com frequência, nem que seja para apanhar um avião, porque passa metade do ano a viajar para promover os seus livros. Muitas vezes escritos em movimento, num tablet.
Tem saudades de Lisboa?
Não sei. Eu gosto de Lisboa, vivi aqui muitos anos, cerca de 30. E sinto, por vezes, falta de algumas coisas, mas venho cá com alguma frequência, às vezes reencontrar alguns amigos que saem pouco de Lisboa. Também venho com os meus filhos a museus, que normalmente se concentram em Lisboa. Ou ao cinema, o Alentejo tem uma enorme falta de cinemas. Agora, há um em Évora, mas em geral as salas exibem filmes com alguns meses de atraso.
Há quanto tempo vive no Alentejo?
Faz 11 anos agora.
E ainda sente que vive no Alentejo, tendo em conta que passa muito tempo fora, em viagem?
Passo seis meses a viajar, mas com interrupções. Há sempre mais alguns dias que fico no Alentejo. Vou em trabalho, porque há uma feira do livro ou um festival ligado aos livros ou à ilustração. A última viagem foi ao Mar de Las Letras, em Cartagena. Também viajo dentro do país, estive na Feira do Livro de Olhão, agora vou à de Sesimbra. Estive na Póvoa de Varzim, na Feira do Livro, e a tocar também.
Tem uma banda [The Soaked Lamb]. Como é a sua relação com a música?
Comprei uma guitarra quando tinha 18 anos e aprendi sozinho. Comecei a ouvir guitarristas de que gostava e a tocar por mimese.
O que o fez comprar essa guitarra?
Não sei. Foi talvez um desafio. Gosto muito dessa ideia: de ser desafiado. E a música, ao contrário do desenho, foi algo que sempre fui desaconselhado a seguir.
Porquê?
[risos] Era duro de ouvido. Não tinha jeito. E talvez por isso mesmo tenha tido ainda mais vontade de aprender a tocar.
Quem é que o desaconselhou?
Os meus pais, por exemplo. Há um mito muito recorrente em que as pessoas acreditam que há talentos que são inatos. As pessoas nascem com determinados feitios, características. Talento é uma coisa que se desenvolve dentro dessas características. As características de um músico, de um desenhador, de um escritor podem ser completamente diferentes e podem resultar em talento. Há escritores sintéticos, há escritores líricos, há escritores mais poéticos. E umas características não são melhores do que outras; seria o mesmo que dizer que uma girafa, porque chega com o pescoço mais alto do que um cão, é melhor do que um cão. Isso não faz sentido.
Toco numa banda em que temos todos características muito diferentes. Eu, por exemplo, tenho facilidade em compor, e tenho pouca facilidade em decorar solos. Mas a pessoa mais educada musicalmente na nossa banda não compõe.
Quando é que percebeu que tinha características para ser escritor?
Tinha vontade de escrever e de ler, que é o mais importante. A escrita nasce da leitura, há exceções, mas será normalmente assim. É preciso acumular alguma leitura para um dia começar a escrever. Eu comparo sempre isso a uma espécie de transpiração. Vamos enchendo um copo gota a gota, esse copo enche e começa a transbordar. A escrita é um pouco o transbordar da leitura. Nós vamos lendo, lendo e um dia começa a sair para fora.
Em que altura da sua vida é que esse momento aconteceu?
A determinada altura, comecei a escrever num blogue, o que me dava uma prática diária, ainda que não tivesse qualquer ambição literária. Escrevia sobre temas da sociedade, da política. E um dia fui convidado para uma agência de publicidade para ser copywriter, foi a primeira vez que trabalhei com palavras.
Tinha que idade?
Tinha 36...
E o que é que fazia antes?
Antes trabalhei em cinema de animação. E, por volta dessa altura, também voltei a tocar, porque houve um interregno entre os vinte e poucos anos e esses 36. Gravámos [a banda] o primeiro disco, comecei a ilustrar para crianças e comecei a escrever também. Foi tudo mais ou menos na mesma altura.
Como está ligado à ilustração, tem tendência para desenhar o que está a escrever?
Talvez mentalmente, sim.
Alguma vez desenhou um capítulo, por exemplo?
No meu caso, tanto uma ilustração como um texto são pensados primeiro, portanto imagino-os. E o processo de imaginar é de alguma maneira ilustrativo. O próprio texto na sua génese é uma espécie de imagem. É preciso um conceito e chega-se a esse conceito através de várias imagens, de ideias.
Os seus livros têm uma marca gráfica forte. Em Os Livros Que Devoraram o Meu Pai, várias palavras aumentam graficamente consoante o seu significado, em Para Onde Vão os Guarda-Chuvas há fotografias de um tabuleiro de xadrez que acompanham as jogadas das personagens. Interessa-lhe trabalhar esta vertente?
Sim. É uma parte muito pouco explorada na literatura. Não se pensa muito o livro enquanto objeto, enquanto forma. Eu acho que é uma mais-valia para a leitura e para a literatura ter essas características estéticas. Acrescenta sempre alguma coisa ao texto ou uma nova leitura, um novo caminho. Isso acontece muito nos livros ilustrados, em que as ilustrações podem não ter relação direta com o texto. Neste último livro ilustrado que publiquei, que se chama Como Cozinhar Uma Criança, as ilustrações não têm nada que ver com o texto. São simplesmente ilustrações de crianças, de alimentos ou de utensílios de cozinha.
Porquê?
As ilustrações estão inseridas nesse contexto, mas não contam a mesma história do que o texto. Podem ser um caminho narrativo. As pessoas que estão a ver as imagens podem pensar noutro tipo de história. E isso é deixado à interpretação do leitor, não é algo que me caiba a mim deixar claro.
O que os números nos dizem é que as pessoas compram menos livros. Não só há menos reedições como a tiragem é menor. Isso preocupa-o?
Eu sempre ouvi isso. Acho que se lê cada vez mais e que vende cada vez mais, porque nós estamos a analisar um período muito curto das vendas, cinco, dez anos. Se nós olharmos para o percurso e para a história do livro, há cada vez mais leitores. É verdade que as edições eram maiores, mas também é verdade que agora se publica muito mais, porque há mais diversidade. Havendo mais diversidade também é normal que haja edições com menor tiragem, porque está distribuído por mais autores. Não acredito muito nessa visão catastrofística da leitura e dos livros, que é mais ou menos transversal a outros fenómenos. As pessoas temem o fim da leitura, como temem o fim do romance, como o fim da história, do marxismo. Mas as coisas continuam. Também houve muito medo quando apareceu a televisão de que a rádio acabasse e a rádio não se tornou obsoleta. O mesmo com o teatro, com o aparecimento do cinema. Há uma série de artes que se mantiveram com o aparecimento de outras, independentemente desses augúrios tão negros.
E a internacionalização pode ser um caminho para aumentar as vendas?
Uma vez que Portugal tem dez milhões [de habitantes], as traduções permitem chegar a um número muito maior de leitores. Por outro lado, um autor estrangeiro terá sempre mais dificuldade em vingar no estrangeiro do que no seu próprio país. Mas em alguns países vendo muito bem e é ótimo.
Qual é o país fora de Portugal onde vende melhor?
Creio que é a Colômbia.
Está no equivalente ao Plano Nacional de Leitura na Colômbia.
Tenho um ou dois livros lá, sim. Tenho também no México, tenho no Brasil. Adotaram na escola, as bibliotecas compram. Vendo muito no mundo dos países de língua árabe. Há uma editora que me comprou 12 títulos.
Escreve e publica muito. Não tem medo de que as personagens se acabem?
[risos] Não. As personagens são como a quantidade de pessoas que existem: todas elas são diferentes. E, cada vez que criamos uma personagem, criamos uma mistura de alguma coisa. É uma matriz diferente. Eu costumo comparar [as personagens] às três cores primárias: com elas fazemos as matrizes todas e para criar uma pessoa também. Usamos doses diferentes de determinadas características e acabamos por ter coisas diferentes. Depois é muito importante que as personagens não sejam pessoas demasiado banais. Têm de ter uma particularidade, porque nós as vemos de muito perto. E, como nós sabemos, toda a gente vista de muito perto parece meio maluca. Interessam-me as características banais de uma pessoa, como os cabelos de uma mulher poderem ser negros, mas o que a faz única não é isso, obviamente. Nós temos de encontrar uma característica que seja só dela, por exemplo, a maneira como mexe na orelha quando diz determinadas palavras.
Tem algumas personagens recorrentes, como o editor Isaac Dresner, que aparece em mais do que um livro. Quando é que se esgota uma personagem?
Não se esgotam, porque nós vamos descobrindo outras facetas delas. Seria impossível eu descrever a vida toda de uma personagem, como é impossível descrever a vida toda de uma pessoa. Focamo-nos em aspetos muito importantes, que são as teias da vida daquela pessoa, mas também podemos focar-nos em detalhes que olhados com atenção podem ter importância igual aos grandes acontecimentos da vida dessa pessoa/personagem. Até porque, como fiz com o Flores, por exemplo, há uma personagem que é vista de maneira distinta, quando avaliada por pessoas diferentes. Cada pessoa tem a sua visão daquela personagem. É quase como um jogo de espelhos ou um holograma. Quando se parte a imagem do holograma, ela aparece inteira, total. É como se tivéssemos vários espelhos e cada um refletisse aquela pessoa de maneira diferente e, nesse sentido, essa pessoa não é só uma, tem todas as descrições correspondentes às suas testemunhas. E o que acontece comigo é que se num determinado tema aparece uma personagem que eu já tenho, que eu já construí, uso-a.
Porque já a conhece muito bem.
Porque já a conheço muito bem, sim. Dá uma densidade a essa personagem que não teria de outra maneira, consolida a história de algumas personagens e cria uma interação entre os livros. Através de outros livros pode perceber-se melhor aquela personagem; não é essencial para ler o livro, mas torna-se um acrescento.
Sente-se realizado enquanto escritor?
Sim, gosto muito de escrever. Senão, não publicaria. Não tenho qualquer pressão. Tenho mesmo de gostar. Cada vez que escrevo um livro tento fazer melhor, escrever o melhor livro que sei escrever. Não quer dizer que saia sequer bom, mas a ambição é essa. Naquela altura é um esforço hercúleo, tenho de me esgotar. Tenho de me consumir até à última gota.
E os seus filhos leem o que escreve?
Sim, algumas coisas. Alguns livros já leram mais do que uma vez, mas não são muito expansivos. Exceto o meu filho mais novo com um chamado O Livro do Ano, o diário de uma menina. Ele identificou-se muito com o livro, quis ele próprio começar a escrever um diário e durante uns meses andou entusiasmado com isso e pedia-me para eu escrever um segundo livro do ano.
O último livro que publicou, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, fala entre outras coisas sobre a nossa relação com a cerveja. Se a referência a esta bebida começou por ser uma nota biográfica, agora fala em quase todas as entrevistas sobre a cerveja e é um dos temas centrais deste ensaio.
Eles [fundação] pediram-me um ensaio. O tema era livre, embora me tenham sugerido a cerveja. Eu achei que escrever sobre cerveja por si só seria pouco interessante. Então, optei por escrever sobre a importância do álcool para a sociedade nas suas várias facetas. Primeiro para o aparecimento da humanidade e depois para o aparecimento da civilização. E também nas nossas próprias relações sociais, históricas. O álcool está sempre muito presente. Mas talvez a coisa mais importante do livro seja como surge este apetite pelo álcool: existe uma teoria, The Drunken Monkey - Why We Drink and Abuse Alcohol, de Robert Dudley, que diz que os macacos símios, antepassados do homem, desceram das árvores para comer frutos mais maduros, com mais energia, mais calorias, e esses frutos começam a fermentar em álcool. Eles podiam descer de uma árvore à procura desse fruto e nessa altura haveria também um mecanismo biológico que não era saciado com o álcool. Eu creio que esse mecanismo se tornou emergente com a complexidade do ser e manifesta-se de maneiras diferentes - essa é uma teoria do livro.
O livro também fala muito da importância da cerveja para a sedentarização do homem para ter uma bebida energética e nutritiva. Há até quem diga que foi a causa da sedentarização. Ao início, inclusive uma parte dos salários era paga em cerveja. O álcool é um mecanismo de consumo de calorias, mas também de reserva de calorias, porque precisamos de acumular para momentos de escassez. Toda a sociedade sedentária depende disso, como nós deixamos de caminhar temos de guardar, reservar. Isso manifesta-se em várias coisas da nossa vida. Eu, por exemplo, gosto muito de livros, acumulo muito mais livros do que preciso. Sou insaciável com os livros, portanto tenho uma reserva muito grande em casa.
Quantos livros tem em casa?
Alguns milhares. Gosto de bibliotecas grandes porque me dá uma boa dose de liberdade. Se eu só tiver um livro em casa, só posso ler um livro. Se tiver dois livros, posso escolher entre esses dois. Se tiver mil posso escolher entre esses. As nossas liberdades dependem da quantidade de escolhas que temos.
Com que idade começou a ler?
Comecei a ler quando fui para a escola, tinha 5 ou 6 anos. Não sei se nessa altura já teria lido algum livro ajudado ou se já me teriam lido um livro. Agora, há um momento que me marcou, durante umas férias que passei na Costa Vicentina quando tinha 12 anos, em que comecei a ler um livro muito pequenino do Dostoievski, da coleção Mosaico, O Sonho de Um Homem Ridículo. Foi a primeira vez que li um livro que não era dirigido a jovens ou crianças, foi quando comecei a dedicar-me à biblioteca do meu pai.
Já tinha muitos livros em casa?
Sim. Antes era pouco comum as pessoas terem livros em casa e agora não há ninguém que não tenha livros em casa, até saem com jornais. E esta questão é muito importante para criar hábitos de leitura. Eu gosto de ter a guitarra ao lado do sítio onde estou a escrever, porque se precisar de fazer uma paragem posso pegar na guitarra e começar a tocar. Mas, se ela estivesse arrumada numa caixa, já não ia tirá-la, descansava, tomava um café e continuava a escrever. A acessibilidade faz-me praticar. A relação com os livros hoje é muito diferente. Quando tinha 12 anos, os meu colegas perguntavam-me: tu lês livros só de letras? Não sei se é uma pergunta que hoje em dia se faça, mas na altura era muito comum. As pessoas achavam estranho que alguém com 12 anos lesse livros só de letras. Às vezes, havia vergonha de ser intelectual, de ler, por não ser uma atividade útil. Com a minha sogra acontecia isso. Ela tinha de ler às escondidas, porque achava que não devia estar a fazer isso, deveria estar a cozinhar, a coser. Nas escolas, as crianças iam para a biblioteca de castigo. Era para não irem para o recreio, mas imaginar que a biblioteca era um espaço de castigo mostra também o que é que significava na altura a leitura. Hoje, temos uma relação mais leve, menos solene com as letras e isso é bom. Mesmo a dizer poesia, já não o fazem da mesma maneira. Já não se usa aquela solenidade tão comum. Acho que mudou e mudou para melhor. Temos uma relação mais íntima com os livros.
Já pensou em publicar poesia sem ser aquela que mete na boca das suas personagens?
Já tenho um livro que até está trabalhado pela editora. Estava pronto a sair, mas depois tive medo e não publiquei. O medo é simplesmente não ter segurança, com a prosa tenho outro tipo de segurança que não tenho com a poesia. Não tenho distanciamento crítico. Decidi não o fazer, vou publicando algumas coisas nas Enciclopédias, publiquei um livro com poemas ilustrados para crianças e este ano espero publicar outro, também com poemas, mas maior.
Também para crianças?
Há sempre dificuldade em definir. Na verdade, os próprios livros encontram os seus caminhos. O Pintor debaixo do Lava-Loiças, em Portugal, foi vendido para adultos, mas no Brasil, por exemplo, foi vendido para jovens e até ganhou um prémio, na Colômbia é vendido para toda a gente, assim como na Eslováquia. Às vezes funciona melhor, outras vezes pior. Às vezes os adultos podem achar que é um livro um pouco paternalista, mas também há um preconceito muito grande para com os livros ilustrados. Lembro-me de uma editora me dizer que eu escrevia livros para crianças, mas também era escritor. Como quem diz que há livros para crianças, mas isso não faz de ninguém um escritor. Também há este preconceito com outros géneros, com os livros de autoajuda, livros de ficção científica, os policiais. Com os de autoajuda muito mais e com alguma razão, ainda que haja livros de autoajuda clássicos como as Meditações, de Marco Aurélio.
Está satisfeito com a geração de escritores em que se insere ou se pudesse escolher seria contemporâneo de outro autor?
Na verdade, nunca pensei muito nisso. Gosto dos meus contemporâneos, sou amigo de muitos deles, outros conheço pessoalmente, mas dou-me bem com todos e, portanto, sinto-me satisfeito. Mas há alguns autores, por aquilo que li deles, que gostaria de ter conhecido. Gostava muito de ter conhecido o Platão. Mas estou muito contente com os da minha geração, portugueses e estrangeiros. Houve um período, especialmente depois do Nobel do Saramago, em que creio que tenha havido um investimento maior por parte das editoras portuguesas em escritores portugueses. Ou talvez os próprios escritores tenham investido mais no romance por causa do sucesso do Saramago.
E esta geração está a contar o Portugal de agora, o momento em que vivemos?
Não sei se cabe aos escritores fazer isso. A escrita é um espaço de liberdade. Esse é o trabalho do historiador e se calhar dos jornalistas. É um assunto recorrente também o escritor engajado. O escritor antes de ser escritor é um cidadão e nesse sentido estará sempre engajado de uma maneira ou de outra. E, depois, uma pessoa pode manifestar as suas ideias sociopolíticas, mas não tem de ser panfletário. Por vezes, escrevemos livros que não têm qualquer relação com a realidade, as personagens podem ser animais, pode ser noutro planeta e estar a falar da Segunda Guerra Mundial. Há um livro que é o Maus [Art Spiegelman], que tem os ratos e os gatos a representarem os judeus e os nazis, a relação é muito direta. No Triunfo dos Porcos [George Orwell], a relação é menos direta, mas existe. A literatura é sempre atual, estamos sempre a falar da alma humana. É por isso que continuamos a ler Homero, porque continua a falar connosco, continua a tocar-nos de alguma maneira. A literatura tem uma sobrevivência.
Acha que os seus livros vão sobreviver?
Isso não é muito importante para mim, porque não sei se estarei cá para ver. Não sei se vamos todos morrer. Toda a gente assume a morte como um dado adquirido, as pessoas dizem que "enquanto há vida, há morte", mas a morte programada não existe desde que existe vida. Já houve autores que acreditaram que não iriam morrer (a maior parte deles estão mortos), mas por um motivo muito simples: é uma proporção geométrica. A ciência, a tecnologia, em dez anos são capazes de fazer que uma pessoa viva mais uns anos e durante esses anos a ciência vai desenvolver tecnologia para que ela consiga viver mais 20 anos e depois haverá conhecimento para mais 100, 200, 300 anos, até à eternidade. Não é necessariamente verdade que as pessoas vão morrer todas. Isso não tem importância para mim, mas para os meus filhos pode vir a acontecer. Pode vir a acontecer que nunca mais se perca nada, que haja um registo de tudo o que aconteceu e que possa ser revisto e recriado. Não estando eu cá, é mais ou menos irrelevante se os meus livros são eternos ou não. Mas gosto muito da ideia de efemeridade, dá um valor muito grande às coisas. E, nesse sentido, até é bom que eles [os meus livros] morram para aparecerem outras coisas melhores, mais bem feitas e capazes de responder a outras coisas que os meus livros não respondem. A efemeridade é importante. Os meus livros que morram.