Sahraa Karimi é uma cineasta de nacionalidade afegã, nascida em Teerão, em 1983. No dia 15 de agosto, publicou um vídeo no Instagram, filmando-se a si própria, nas ruas de Cabul, fugindo dos locais que os talibãs começavam a ocupar. A ansiedade e o medo da sua caminhada seriam explicitados, no mesmo dia, num outro vídeo colocado no Twitter. Sentada num cadeirão azul, arfante, claramente perturbada, Karimi dirigia-se às "pessoas deste grande mundo" para, em apenas 45 segundos, pedir que "não fiquem caladas", terminando com uma mensagem contundente: "Eles vêm aí para nos matar.".Karimi acabou por conseguir sair do Afeganistão, com a sua família, desembarcando em segurança na capital da Ucrânia, Kiev, graças ao apoio das autoridades ucranianas e eslovacas. Particularmente importante na sua fuga foi a ação de Wanda Adamik Hrycová, presidente da Academia de Cinema e Televisão da Eslováquia, precisamente o país em que Karimi fez os seus estudos - doutorou-se em Cinema na Academia de Música e Artes Performativas, em Bratislava..Regressara ao Afeganistão em 2012, três anos depois de ter realizado um primeiro filme, sobre as dificuldades das mulheres afegãs em obter a carta de condução (título internacional: Afghan Women Behind the Wheel). O valor simbólico do seu trabalho é tanto maior quanto, em 2019, Karimi se tinha tornado a primeira mulher a assumir a presidência da AFO (Afghan Film Organization), companhia estatal de produção cinematográfica..A trajetória de vida de Karimi constitui, afinal, a ponta de um icebergue - a produção cinematográfica afegã - que tão mal conhecemos. Um dos momentos em que essa produção conseguiu especial ressonância internacional ocorreu em 2004, quando Osama, uma realização de Siddik Barmak (estreada em maio de 2003, no Festival de Cannes), obteve, em Hollywood, o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro..Osama é um objeto que, agora, mais do que nunca, ecoa um trágico simbolismo. Desde logo, porque foi o primeiro filme inteiramente rodado no Afeganistão desde que, em 1996, os talibãs tinham proibido a produção cinematográfica. Depois, porque nele se narra uma história situada no país sob o jugo dos talibãs, quando as mulheres foram afastadas de quase todas as atividades públicas: no seu centro surge uma menina que, procurando compensar as barreiras com que a mãe e a avó se confrontam no dia-a-dia, se disfarça de rapaz para encontrar trabalho....A premissa de Osama foi, de alguma maneira, retomada num filme que se destacou na temporada de prémios referentes à produção de 2017, com nomeações na categoria de animação de Óscares e Globos de Ouro: A Ganha-Pão é uma história passada no Afeganistão dominado pelos talibãs, centrada numa menina que, na sequência da prisão do pai (acusado de ter proferido uma ofensa contra um guerrilheiro talibã), também se disfarça de rapaz de modo a garantir o sustento da família....A Ganha-Pão reflete, aliás, um fenómeno que podemos designar como a crescente internacionalização cinematográfica dos temas do Afeganistão (que este texto está muito longe de esgotar). Assim, o filme baseia-se no romance infantil The Breadwinner, da canadiana Deborah Ellis, tendo sido realizado por Nora Twomey, irlandesa com particular atividade no universo da animação - a produção envolveu entidades de três países: Canadá, Irlanda e Luxemburgo..Insolitamente ou não, face a um país marcado por tantas formas de violência, os recursos realistas do cinema nem sempre têm sido utilizados, por vezes dando lugar aos artifícios dos desenhos animados. É também o caso de As Andorinhas de Cabul (2019), dando conta de uma cidade em ruínas, em 1998, submetida à violência física e psicológica dos talibãs. Realizado por duas francesas, Zabou Breitman e Éléa Gobbé-Mévellec, tem como ponto de partida o romance homónimo do argelino Yhasmina Khadra e resultou de uma coprodução entre França, Suíça, Luxemburgo e Mónaco..É, obviamente, significativo que títulos como estes proponham retratos do Afeganistão que conferem grande evidência às crianças e, muito em particular, às raparigas. Em tempos de pandemia, Learning to Skateboard in a Warzone (If You"re a Girl), produção britânica dirigida pela americana Carol Dysinger, impôs-se como um belo sintoma dessa visão, tendo ganho o Óscar e o BAFTA de melhor curta-metragem de 2020..O título é para ser tomado à letra: "Aprender a andar de skate numa zona de guerra (se fores uma rapariga"). Ficamos a conhecer a atividade da Skateistan, organização não lucrativa que, em Cabul, desde 2007, promove o ensino de meninas de bairros pobres, com um programa francamente original: o objetivo é aprender a ler, escrever e... andar de skate! No começo das aulas, a professora tem por hábito perguntar o que é a coragem. A resposta correta é: "Coragem é quando alguém vai à escola e estuda, quando lemos o Corão e outros livros.".Nas memórias cinematográficas do Afeganistão, um filme do Irão, intitulado Kandahar, escrito e realizado por Mohsen Makhmalbaf, ficou como uma espécie de charneira temática. Apresentado em maio de 2001, no Festival de Cannes, nele seguimos a odisseia de uma mulher afegã que saiu do país, para o Canadá, na sequência da tomada do poder pelos talibãs, em 1996. Regressa ao Afeganistão quando recebe uma carta desesperada da irmã: a viver na cidade de Kandahar, ela prevê o seu suicídio por ocasião do derradeiro eclipse solar do milénio....Em Cannes, Kandahar foi distinguido com o Prémio do Júri Ecuménico. Embora não tendo figurado no palmarés do júri oficial, o seu impacto foi inevitavelmente potenciado, poucos meses mais tarde, pela conjuntura política e geopolítica gerada pelos atentados do 11 de Setembro. Dir-se-ia que Makhmalbaf lançou, implicitamente, uma interrogação que outros filmes iriam ecoar de forma dramática. A saber: de que falamos quando falamos do Afeganistão?.Certamente não por acaso, um dos desafios implícitos envolveu o balanço entre o documento direto, mais ou menos "televisivo", e o desenvolvimento de linhas ficcionais em torno da conjuntura afegã. In This World/Neste Mundo (2002), do inglês Michael Winterbottom, terá sido um dos exemplos mais sugestivos, mas também mais discutido e discutível. Consagrado com o Urso de Ouro de Berlim, nele encontramos dois refugiados afegãos que protagonizam um périplo ligando Peshawar, no Paquistão, à "Selva de Calais", o polémico campo de Sangatte, no norte de França (encerrado em 2002 por Nicolas Sarkozy, então ministro do Interior)..À vontade de realismo que faz mover Winterbottom podemos contrapor a crueza trágica, tendencialmente abstrata, de Essential Killing/Matar para Viver (2010), filme do polaco Jerzy Skolimowski protagonizado por Vincent Gallo. O ator americano interpreta um árabe que, depois de perpetrar um ataque contra soldados americanos no Afeganistão, é preso e torturado. Ao ser transportado para novas instalações, na Polónia, consegue fugir, transformando-se numa figura errática a circular por cenários que desconhece... De forma estranha e perturbante, Skolimowski consegue confrontar-nos com as convulsões do nosso mundo, explorando uma linguagem de fábula e assombramento..Na produção de Hollywood, encontramos também alguns filmes admiráveis sobre o Afeganistão, além do mais desmentindo o cliché segundo o qual tudo o que sai dos grandes estúdios americanos se confunde com algum tipo de "propaganda". Dois títulos de 2007 são referências modelares que vale a pena citar (até porque a sua presença no circuito comercial foi, no mínimo, discreta): Charlie Wilson"s War/Jogos de Poder, de Mike Nichols, e Lions for Lambs/Peões em Jogo, de Robert Redford..O primeiro, baseado em factos e personagens verídicas (a partir de um livro de George Crile, jornalista da CBS) é tanto mais amargo quanto, em tom de implacável sarcasmo, evoca as manobras de bastidores de vários políticos dos EUA no sentido de prestar auxílio aos grupos de mujaedines que, na década de 1980, resistiram à presença soviética no Afeganistão - o conflito é muitas vezes referido como um dos derradeiros capítulos da Guerra Fria. O segundo elabora uma teia de histórias protagonizadas por um professor universitário, um senador e uma jornalista, tudo pontuado por uma trágica operação militar no Afeganistão, sintomática de um entendimento meramente instrumental da vida dos soldados envolvidos..O que estes filmes colocam em cena está longe de poder ser descrito em função de um esquematismo mediático redutível a posições de "pró" e "contra". Ou até através de qualquer marginalidade criativa. São, aliás, produções enraizadas num muito clássico star power: no elenco do primeiro filme surgem Tom Hanks, Julia Roberts e Philip Seymour Hoffman; no segundo, além do próprio Redford, encontramos Tom Cruise e Meryl Streep..Algo de semelhante se poderá dizer de Zero Dark Thirty (2012), lançado entre nós como 00:30 A Hora Negra, prodigiosa e ambígua epopeia assinada por Kathryn Bigelow. Não é exatamente um filme "sobre" o Afeganistão, antes uma teia de acontecimentos que, a partir de uma personagem fictícia - uma investigadora da CIA interpretada por Jessica Chastain -, evoca o processo que conduziu à missão militar em que, a 2 de maio de 2011, foi morto Osama bin Laden..A encenação de situações em que alguns suspeitos são torturados por elementos dos serviços secretos americanos colocou Zero Dark Thirty no cerne de um debate político que está longe de estar encerrado, em última instância envolvendo o papel militar e político dos EUA no labirinto de países, poderes e culturas do Médio Oriente. Agora, depois da retirada americana de Cabul, os filmes sobre o Afeganistão persistem como preciosa memória histórica e testemunho do valor simbólico do cinema..dnot@dn.pt