Adriano Maranhão. O português que passou pelo coronavírus sem nunca ter sintomas

Foi o primeiro português a testar positivo para o Covid-19, no navio-cruzeiro onde era canalizador. Semanas depois, Adriano conta ao DN como foram os dias do vírus, sem nunca apresentar sintomas, no navio e no hospital japonês
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Quando as autoridades japonesas ordenaram que o navio Diamond Princess atracasse no porto de Yokohama, no Japão, em meados de fevereiro, Adriano Maranhão suspeitou que não regressaria para casa tão cedo. Canalizador de profissão, 41 anos, natural da Nazaré, tornou-se o primeiro português diagnosticado com o novo coronavírus. E o país inteiro acompanhou, à distância, a cruzada da mulher, Emmanuelle Maranhão, que em Portugal mobilizou todas as entidades oficiais para garantir o melhor acompanhamento do estado de saúde do marido, e garantir o seu regresso - que aconteceu no domingo passado.

Foi num clima de "ressaca" desses dias que o casal recebeu o DN em sua casa, numa retrospetiva do que foi esse tempo.

Adriano continuou a trabalhar normalmente, quando o Diamond Princess recebeu as indicações de que vários passageiros iam entrar de quarentena, mas o navio não iria parar de trabalhar. Falamos de uma tripulação constituída por 1200 pessoas, para um total de 3700 passageiros.

"A tripulação estava mais ou menos descansada porque o comandante passava a informação de que o vírus estava só num passageiro", conta Adriano ao DN. No barco, ele e os colegas viam as notícias do que se estava a passar na China (então no pico da epidemia), na maioria das vezes através da BBC. Todos os dias o comandante fazia um briefing e dava conta de quantos passageiros iam adoecendo. Agora que já passou algum tempo, a dúvida persiste: "será que a tripulação já não estaria infetada antes da quarentena?"

Antes mesmo de iniciar esse período de 14 dias, chega-lhe uma comunicação da companhia de navios, permitindo a saída dos tripulantes (ao mesmo tempo que os passageiros), com a única condição de fazerem um teste, para saber se eram (ou não) portadores do vírus.

"Metade da tripulação disse que optava por isso, preferia fazer quarentena no próprio país do que no Japão", recorda Adriano, que seis dias antes fora confrontado com uma pergunta do chefe: queria ele( e outros) estender o contrato de três meses? "Eu disse ao meu chefe que só estendia se fosse preciso. Se não, vinha-me embora para casa". Fizeram-lhe o teste antes de iniciar a quarentena, no dia 20 de fevereiro, data em que supostamente estaria de regresso a Portugal. Uma zaragatoa recolheu-lhe a saliva necessária, seguiu a amostra para laboratório, e dois dias depois chegou a resposta.

Era sábado, 22 de fevereiro. Tinha acabado de almoçar, recolheu à cabine quando lhe bateram à porta. "Pensei que era o Hélder Vigia (colega e amigo também natural da Nazaré). Mas afinal eram duas mulheres, uma médica e outra enfermeira."

Adriano anteviu o que lhe iriam dizer. Sentou-se na beira da cama. "A médica pegou-me na mão e disse-me que vinha para me dizer que o teste dera positivo. Que eu teria de ligar à embaixada e à companhia, porque a partir dali o navio não tomaria mais conta de mim. Que iria ser transferido para um hospital". Mas isso só aconteceria dois dias depois, com um jejum de 24 horas pelo meio, em que ninguém lhe foi levar qualquer comida.

O que explica a ausência de sintomas?

A verdade é que Adriano Maranhão passou pelo Covid-19 sem nunca apresentar qualquer um dos sintomas para os quais o alertaram: febre, tosse, espeturação, diarreia. Deixaram-lhe um termómetro, e o máximo de temperatura que apresentou foi 37.7. Num dos diretos que fez para as televisões em Portugal, contava que sentia "o corpo dorido" e alguma dor de cabeça, um dia depois de saber o resultado. O médico do navio receitou-lhe paracetamol, mas tratou de lhe dizer que "aqueles sintomas nada tinham a ver com o vírus".

Nem os médicos lhe deram resposta exata para esse estranho caso de passar pelo vírus sem sintomas. Depois do teste feito no navio, os dois que fez no Hospital foram negativos. E qual a razão para a ausência de sintomas? O médico japonês apresentou-lhe como hipótese a probabilidade dele ser portador do vírus há muito mais tempo, e quando fez o teste já estar na fase final.

Outra explicação reside no facto de ser "um tipo novo e saudável". Mesmo sabendo que em criança contraiu hepatite A, sendo hoje imune. Mas isso só soube antes de entrar no universo dos navios, quando foi à consulta do viajante.

A 25 de fevereiro, Adriano Maranhão fez uma viagem de sete horas entre o porto de porto japonês de Yokohama e o hospital de cidade de Okazaki, na província de Aichi. Ia acompanhado por 18 pessoas, tripulantes do navio, todas diagnosticadas com o vírus. Nenhuma apresentava sintomas. No quarto, cada doente tinha uma campainha para chamar um médico ou enfermeiro se tivesse algum sintoma. "Porque os médicos não entravam nos quartos. Até para fazer os testes tínhamos que ir lá fora".

Acabou por ficar 9 dias internado no hospital. Depois de dois testes negativos, teve alta.

Adriano conta ao DN que o corpo clínico do navio apresentava-se sempre de máscara, luvas e óculos. Mas o cúmulo da proteção só chegaria a ver quando lhe apareceu o corpo médico que acompanhou o transporte. "Parecia que iam para o espaço".

Nos dias em que permaneceu em isolamento no navio, Adriano esforçou-se por não cair na tentação de procurar informação dispersa na internet. Porém, um colega tripulante fazia esse trabalho constantemente. E isso só servia para o confundir mais, pois que continuava sem apresentar nenhum dos sintomas da doença.

Uma vez no hospital, passava o tempo a jogar, a falar ao telemóvel, ou a dormir. Ao fim de 9 dias, com um certificado na mão, só precisava de contactar a Companhia Princess ou a Embaixada Portuguesa em Tóquio para poder iniciar a viagem de regresso a casa. Esse trajeto (até ao hotel) foi feito num autocarro da Companhia. Ficou quatro dias num quarto de hotel, sem autorização para comer no restaurante interno, pelo que se foi deslocando a uma mercearia e comprou os alimentos que consumia no quarto: bolachas, pão, enlatados.

A luta diária de Emmanuelle

Ao mesmo tempo, em Portugal, a mulher desencadeava uma cruzada sem precedentes: falou a todos os órgãos de comunicação social, naquela noite em que o DN a encontrou.

"As pessoas não têm noção da burocracia. Ele, como estrangeiro, não tinha autorização para nada. E quando me perguntam porque é que eu não me meti num avião e fui lá ter com ele? As pessoas não têm noção de que, além de não adiantar nada, eu não podia correr esse risco. A segurança social tirava-me as miúdas, que são pequenas (2, 5 e 8 anos) que ficavam sem pai nem mãe por perto. E é certo que não me deixavam passar. Tive sempre a impressão de que seria muito mais útil aqui, do que se metesse num avião e fosse para o Japão", conclui.

A longa viagem de regresso a casa

A viagem de regresso de Adriano Maranhão demorou 20 horas de voo,mais 11 horas de espera nos aeroportos. Do Japão voou para o Dubai, e só daí para Lisboa. Quando chegou, lá estava Emanuelle, acompanhada de Walter Chicharro, presidente da Câmara da Nazaré, amigo de sempre. Também António Sales, secretário de Estado da Saúde, igualmente natural do distrito de Leiria. E cá fora "um batalhão de jornalistas". Adriano não via a hora de chegar a casa e dormir. Para trás ficava a viagem mais longa e delicada da sua vida, um telefonema do Presidente da República. Já Emanuelle, nunca se imaginara a falar "com tanto ministro, secretário de Estado e diretores gerais".

Nascido e criado na Nazaré, onde sempre viveu, Adriano é filho de um pescador. Trabalha desde os 16 anos, foi operário fabril e empregado numa pastelaria. Mais tarde, tornou-se canalizador. Há cinco anos, saiu da empresa onde estava a trabalhar, "porque não recebia". No meio da crise, havia pouco trabalho na região. Um amigo falou-lhe dos navios, onde se ganha bem. Na Nazaré há dezenas de pessoas a trabalhar nos navios, arriscando passar três ou seis meses fora de casa e da família, mas receber um salário reconfortante.

Estava preparado para retomar a rotina, ir levar e buscar as meninas à escola, quando António Costa falou ao país. "Agora vamos ficar em casa. Mas ao menos estamos em família".

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