Aqueles que guiam os seus "gostos" pelas informações provenientes das listas de discos mais vendidos podem, sem remorso, passar adiante. George Ivan Morrison, nascido em Belfast a 31 de agosto de 1945, está a assinalar os 50 anos da sua carreira a solo, iniciada quando deixou de liderar os Them. Roll with the Punches, que agora nos chega, já é o 37.º álbum da sua discografia de estúdio, a que se junta meia dúzia de álbuns ao vivo..Ora bem: com toda esta gama de escolha para todo este tempo de consistente atividade, Van the Man só por uma vez conseguiu chegar ao top 3 britânico: em 2005, com Magic Time. Do lado de lá do Atlântico, onde ocupa - com mérito e trabalho - o lugar de referência maior, até pelo romance que mantém com a música soul e com o R&B, os resultados ainda são mais surpreendentes..[youtube:ygPC7my4_ZQ].Só por duas vezes um álbum de Morrison chegou ao top 10: em 2008 com Keep it Simple e no ano passado com Keep Me Singing. Dito isto, a conclusão é firme, mesmo que não pareça a mais óbvia nem a mais conforme ao espírito dos nossos dias - os milhões de cópias vendidas não são a única via para chegar à eternidade. E Van Morrison já lá tem lugar guardado há muito tempo..[youtube:J2hFYZd9WwQ].Há, desde logo, uma magistratura de influência em que Van Morrison só tem um "rival" à altura em Bob Dylan. Senão vejamos: entre os que apontaram expressamente o irlandês como fonte decisiva, assinalam-se os nomes de Bruce Springsteen, Elvis Costello, Bono (dos U2), John Mellencamp, Joan Armatrading, Nick Cave, Rod Stewart, o recém-falecido Tom Petty, Rickie Lee Jones, Graham Parker, Sinéad O"Connor, o malogrado Phil Lynott (Thin Lizzy), Bob Seger, Kevin Rowland (Dexys Midnight Runners), Jeff Buckley, Adam Duritz (Counting Crows), Damien Rice, Ray Lamontagne, James Morrison, Paolo Nutini, Davud Gray ou Ed Sheeran, só para referir quem integra ou anda perto da primeira linha..[youtube:tQc4zy0t7No].Mas não se presuma já que o homem é estritamente "um músico de músicos". Basta ver o número impressionante de filmes, curtas-metragens, documentários e séries de TV que se socorrem das suas canções para realçar ambientes ou aprofundar situações - são quase 200, que obrigam temas como Brown-Eyed Girl, Moondance, Into the Mystic, Someone Like You, Have I Told You Lately, Crazy Love, Bright Side of the Road, Jackie Wilson Said, Magic Time ou Days Like This (já para não referir Gloria, da época com os Them) a sessões contínuas. Convenhamos que, em qualquer registo fílmico, um tempero de Van Morrison vale como uma especiaria....Insistência e consistência.Vale a pena acrescentar mais um dado: quando, há cinco anos, a insuspeita Rolling Stone procedeu a (mais) uma escolha dos 500 melhores álbuns de sempre, lá estavam, indiferentes às modas e à volatilidade destas eleições, dois discos do Big Van: Moondance (de 1970) em 66.º e Astral Weeks (de 1968, tão perto já do meio século) em 19.º. Nada mau, para um registo que, comercialmente, nunca foi além do 55.º lugar do top britânico....[youtube:ugbSCxFw4Pw].Em boa verdade, qualquer destes álbuns e da esmagadora maioria dos outros, que perfazem o património de Van Morrison, pode continuar a ser ouvido hoje, com o mesmo prazer e sem enfrentar os riscos do final do prazo de validade. Por uma razão elementar: a escolha das canções, bem acompanhada pela escrita do próprio intérprete, continua a ser inspirada, apoiando-se na consistência do saber do protagonista, que conhece todos os standards, todos os nomes suscetíveis de poderem interessar-lhe. Depois, é aquele "pequeno passo" de génio, que se traduz em moldar cada momento a um fraseado próprio, a uma rítmica que transcende lógicas, a um tom de voz que se reconhece à segunda ou à terceira nota. Nestes particulares, faz lembrar Frank Sinatra, nada menos..Roll with the Punches, para chegarmos ao que aqui nos traz, nada tem de novo - de resto, as últimas vezes que Van Morrison correu atrás da surpresa aconteceram em Irish Heartbeat, disco de 1988 gravado com os seus compatriotas (do lado sul da ilha verde) Chieftains, em que fez emergir despudoradamente as suas raízes celtas, e quando integrou o elenco especial da apresentação de The Wall (Pink Floyd) junto ao que restava do Muro de Berlim, redefinindo à força de voz uma canção tão contundente como Comfortaby Numb..[youtube:PuXJsEXJu7A&list=PLn3Y2Rv9hFEsQBgKJqCSkE1yqoFkRXA5Z].Aliás, é melhor que não haja sobressaltos - com Van Morrison, cada "prova cega" torna-se uma festa. E, neste disco, há, além dos temas próprios, canções de Bo Diddley, Doc Pomus, T-Bone Walker, Mose Allison, Sister Rosetta Sharpe e - bênção suprema - até de Sam Cooke e Count Basie. Além disso, por aqui se descobrem a guitarra de Jeff Beck, o Hammond de Georgie Fame, a harmónica de Paul Jones e o piano de Jason Rebello. O que significa que, estejam em causa Mean Old World ou How Far from God, Transformation ou Ordinary People (duas das três novas), e, sobretudo, Goin' To Chicago ou Bring It On Home To Me, a melhor solução passará sempre por deixar a música fazer o seu caminho, ligando-a ao passado ilustre de Van Morrison ou descobrindo um dos valores mais insistentes e coerentes da história do rock. Sem pressa - o feitiço vai obrigar a voltar aqui, uma e outra vez.