O país que acolheu o Papa Francisco em 2017, para o centenário das aparições de Fátima, não é o mesmo que recebeu o Papa Paulo VI em maio de 1967. E não é apenas o tempo que separa a vinda dos dois (na verdade, dos quatro que já estiveram em Portugal), é também o modo. E é, sobretudo, a realidade social, embora por vezes nos fique a estranha sensação de que o tempo parou, observados os gestos que se repetem em cada celebração, em cada visita ao Santuário de Fátima. Afinal, é por causa da Cova da Iria e desse "milagre do sol" com 103 anos que os representantes máximos da Igreja tanto consideram este pequeno país..Fez agora três anos, uma equipa do DN acompanhou todos os passos da primeira visita do Papa Francisco a Portugal. Céu Neves (que dividiu o avião com o Sumo Pontífice), Miguel Marujo, Maria João Caetano e eu, a partir de Fátima. Aquela não era mais uma peregrinação aniversária, era o centenário tão exaustivamente programado e esperado. Afinal, Francisco goza de uma popularidade ímpar na história da Igreja, é citado e admirado até pelos não crentes, mas que o admiram enquanto líder, pela maneira como ousa falar de todos os temas da atualidade, até nos que são habitualmente tabu para a própria Igreja..Naqueles dias do meio de maio de 2017, Fátima preparou-se em toda a dimensão. Hotéis foi inaugurados, lojas abriram, o forte tecido económico - que resulta precisamente do fenómeno religioso - revigorava para um momento que foi anunciado um ano antes, pelo bispo de Leiria-Fátima, António Marto. A 10 de maio de 2016, num pequeno vídeo de quatro minutos, a partir de Roma, o Papa confirmava aquilo que já se sabia: "Bem sei que me queríeis também nas vossas casas e comunidades, nas vossas aldeias e cidades. O convite chegou-me. Escusado será dizer que gostaria de o aceitar, mas não me é possível", disse (em português) o Papa Francisco, no vídeo divulgado pelo Vaticano e no qual aproveitou para agradecer às autoridades nacionais a compreensão pelo facto de a sua visita se "circunscrever aos momentos e aos atos próprios de peregrinação no Santuário de Fátima". Já se sabia da simpatia mariana, mas foi a partir daí que se tornou, também ele, um Papa peregrino de Fátima..A 12 de maio de 2017, Francisco tinha à sua espera milhares de peregrinos. Estima-se que tenham chegado ao milhão de pessoas no dia seguinte. Ao microfone do altar, em frente à Basílica de Nossa Senhora do Rosário, Marco Daniel Duarte (diretor do departamento de estudos do Santuário de Fátima) era um maestro nas palavras de ordem. Entre aplausos, ecoavam no recinto "Bem-vindo papa Francisco", "Pai peregrino da esperança", ou "Pai peregrino da paz"..O helicóptero que o transportava aterrou às 17.45 daquela sexta-feira no estádio de Fátima, que já tinha o seu nome. Daí seguiu para o Santuário em viatura aberta (o famoso papamóvel), num percurso com cerca de quatro quilómetros..Francisco não ia a Fátima apenas celebrar os 100 anos das aparições. Na verdade, coube-lhe também canonizar os beatos Francisco e Jacinta Marto, os dois irmãos pastorinhos que morreram no meio de uma pandemia (a pneumónica), como tantas vezes tem sido lembrado por estes dias..Um mar de gente assistiu a tudo. Na noite de 12 de maio, as cerimónias que incluíram a procissão das velas foram testemunhadas pelas mais altas figuras do Estado. Mesmo como peregrino, numa visita exclusivamente a Fátima, o Papa tinha à sua espera o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, logo à chegada, na Base Aérea de Monte Real, e haveria de se encontrar com o primeiro-ministro, António Costa, no dia 13. Jorge Mario Bergoglio, nascido na Argentina, eleito Papa em março de 2013, ficou apenas 23 horas em Portugal. Mas terá sido uma das mais marcantes visitas, entre as seis que até hoje se registaram..Bento XVI, o guardião do terceiro segredo.O cardeal Ratzinguer era um nome bem conhecido nos meios eclesiásticos e académicos. Em outubro de 1996, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, presidiu à celebração. Foi a primeira vez que pisou o santuário, mas há muito que conhecia os escritos da irmã Lúcia, a vidente que guardou com ela o terceiro (e último) segredo de Fátima. Nesse 13 de outubro, enquanto presidia à missa concelebrada por 20 bispos e 400 sacerdotes, o então cardeal notou a importância daquele santuário mariano. Meio século antes, o envelope com o manuscrito em que a carmelita Lúcia de Jesus revelava o segredo, deu entrada no Arquivo Secreto do Santo Ofício, depois de ter sido guardado na Diocese de Leiria-Fátima durante 13 anos. O conteúdo (sobre o atentado ao bispo vestido de branco) só seria revelado em 2000, pelo Papa João Paulo II, na terceira visita a Fátima. Após o atentado que sofrera a de 13 de maio de 1981, tenta perceber a importância dos escritos. O cardeal Ratzinger terá um papel determinante na interpretação da mensagem. Em 1996 esteve reunido com a irmã Lúcia, para melhor a perceber e descodificar. Não se sabe quanto tempo demorou a fazê-lo, mas em Portugal foi a marca que lhe ficou, relembrada pelos estudiosos do tema, quando em abril de 2005 sucedeu a João Paulo II..Bento XVI visitou Portugal de 11 a 14 de maio de 2010. Nos dois dias que antecederam a chegada do Papa a Portugal, acompanhei (com o repórter fotográfico Joaquim Dâmaso, para o jornal Região de Leiria) a etapa final do percurso que milhares de peregrinos faziam até Fátima. Eram anos de crise, já, os que se viviam por cá. Muitos rogavam à Senhora por melhores dias, mas iam sobretudo agradecer as bênçãos na área da saúde. Grupos numerosos vindos do norte atravessavam (como sempre acontece, num ritual só suspenso neste ano pela pandemia) o país para celebrar o 13 de Maio..Bento XVI chegara no dia 11 a Lisboa, onde foi recebido pelo então Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, e pelo cardeal-patriarca, D. José Policarpo. Foi ao Palácio de Belém, celebrou no Terreiro do Paço, depois de recebido em apoteose na Praça do Comércio, onde ficou para a história o momento em que Cuca Roseta lhe cantou Ave Verum Corpus, de Mozart. Devota de Nossa Senhora de Fátima, sete anos depois haveria de a encontrar, no Santuário, emocionada, a receber o Papa Francisco..Bento XVI encontrou-se no dia seguinte com representantes "do pensamento, da ciência, da cultura e da arte em Portugal", como escreve o DN. E depois de Fátima haveria de rumar ao Porto, também. Na Capelinha das Aparições, em frente à imagem da Virgem Maria, tocou na fé dos milhares de peregrinos: "Aqui estou, Senhora Nossa, como um filho que vem visitar sua mãe." Para a história fica uma visita que superou as expectativas de muitos fiéis, na mais mediática operação de sempre para uma visita papal..O carismático João Paulo II.Se fosse vivo, Karol Wojtyla faria 100 anos nesta segunda-feira, 18 de maio. O Papa João Paulo II (ordenado em outubro de 1978) desapareceu fisicamente em abril de 2005, ao cabo de 26 anos de pontificado, marcados pelas constantes viagens à volta do mundo, pela procura da paz em toda a parte. Haveria de se tornar santo, aos olhos da Igreja, ele que logo em 1981 sobreviveu a um atentado encarado como o terceiro segredo de Fátima - o bispo vestido de branco.."Estou em Portugal a realizar um sonho há muito acalentado, como homem da Igreja e desejoso de conhecer Fátima diretamente", afirmou, logo à chegada a Lisboa, na tarde de 12 de maio de 1982. Um ano antes, na Praça de São Marcos, em Roma, o turco Ali Agca tentou matá-lo. E no seu primeiro dia de visita, quando chegou a Fátima, já de noite, haveria de sofrer nova tentativa de assassínio, desta de vez pelo padre espanhol Juan Krohn, mas sem consequências. O Papa trouxe com ele a bala que o tentou matar e ofereceu-a à imagem da Virgem Maria. Mais tarde, em 1989, haveria de ser encastoada na coroa preciosa de Nossa Senhora de Fátima, oferecida pelas mulheres de Portugal em 1942..Ao segundo dia de visita, uma multidão acumulava-se junto ao Santuário. Uma ambulância tenta furar por entre o povo. Lá dentro, uma bebé de 5 dias ao colo da mãe. É Sofia Neves, detentora da marca Treze, nascida a 8 de maio, na Maternidade Bissaya Barreto, em Coimbra. "A confusão era tanta, que a única solução encontrada pelos meus pais para regressarmos a casa foi vir de ambulância", conta ao DN a empresária, que se tornou conhecida pelos artigos religiosos em cores: a Nossa Senhora em cor-de-rosa, verde ou lilás é uma imagem de marca. Talvez por isso, mesmo devota, prefere o Santuário em silêncio e não na confusão dos dias 12 e 13..João Paulo II regressaria a Portugal em 1991 e 2000. Nesse princípio da década de 1990, um clima de prosperidade parecia despontar no país, com reflexos na imprensa regional, que começava aí um processo de profissionalização. Acabava de nascer o jornal O Correio de Pombal, e o diretor, Pimpão dos Santos, decide tentar a sorte e acreditar-se para fazer a cobertura. Leva com ele o filho mais velho, que então sonhava ser repórter fotográfico. João Pimpão, hoje com 43 anos e chefe de gabinete do presidente da Câmara de Pombal, já trilhava um caminho próximo da Igreja, com frequência no agrupamento de escuteiros da cidade.."Foi a vez em que estive mais perto de Deus", conta ao DN, ele que nessa altura tinha apenas 16 anos e conseguiu juntar-se ao batalhão de jornalistas que acompanhavam o Papa. "Íamos todos num avião C-130 da Força Aérea. Partimos de Figo Maduro e voámos com ele para os Açores e para a Madeira, depois para Fátima. Nunca me vou esquecer dessa magnífica experiência." Nunca esteve perto do Papa, mas fotografou-o, de longe, como os outros..Quando João Paulo II regressa pela última vez a Portugal, já muito debilitado, em 2000, sabia-se que, provavelmente, seria a última visita do Papa peregrino a Fátima. "A expressão mais alta do reconhecimento de Fátima por João Paulo II deu-se no 13 de Maio de 2000, com a beatificação dos dois videntes mais novos e o anúncio da publicação da terceira parte do segredo", considerava, na altura, Luciano Guerra, antigo reitor do Santuário..Paulo VI, o primeiro.A memória mais longínqua de uma visita papal a Fátima é de 1967, quando o Papa Paulo VI visita a Cova da Iria. Assinalavam-se os 50 anos das aparições. A memória de Maria Francisco, 70 anos, transporta-a para "uma noite de chuva, um recinto de terra batida, e muita, muita gente". Tinha 17 anos e foi a pé, desde uma aldeia perto da Figueira da Foz até Fátima. "Havia muito poucos carros nessa altura. As pessoas iam a pé. E rezava-se muito, sobretudo por causa dos que iam para o ultramar.".Nessa altura já uma estátua de Paulo VI se erguera em Leiria, num largo que se encheu para o homenagear, sabendo-se que aterrara em Monte Real, no concelho. "Ele tinha recebido há pouco tempo os movimentos de libertação de Angola, Guiné e Cabo Verde. Houve quem não gostasse. Quando chegámos junto da estátua, alguém tinha posto um pneu à volta do seu pescoço, em sinal de protesto", lembra São Graça, 66 anos, nascida em Ourém. Agente de viagens, perdeu a conta às vezes em que já esteve em Roma, sozinha ou como cicerone de grupos organizados. Em Fátima, participou apenas nas visitas dos Papas Bento XVI e Francisco, que considera "único, um fenómeno de Deus na terra"..Nessa noite de maio de 1967, em Fátima, Salazar não conseguiu mais do que uma breve conversa de oito minutos com o Papa. O padre Anselmo Borges (ordenado nesse ano, no Santuário) lembra-se bem do carisma do Paulo VI, em plena Guerra Fria. Ainda o está a ver de punhos cerrados no ar, a clamar pela paz no mundo: "Homens, sede homens!" Foi ele, afinal, o primeiro Papa a pisar Portugal.