Foi em Cannes, no verão passado, que Drive My Car despertou curiosidade. Com o Prémio de Melhor Argumento no bolso, entrou numa segura rota de ascensão quando as associações de críticos de Nova Iorque e Los Angeles carimbaram esse reconhecimento. Seguiu-se um Globo de Ouro (melhor filme em língua não inglesa), três nomeações nos BAFTA (os resultados conhecem-se nesta madrugada) e quatro nos Óscares: Melhor Filme, Realizador, Argumento e Filme Internacional. É a primeira vez que uma produção japonesa alcança a nomeação na categoria principal dos prémios da Academia de Hollywood, tal como acontece com o argumento, e apenas a terceira vez que um japonês se encontra entre os nomeados na realização - antes de Ryûsuke Hamaguchi, só Hiroshi Teshigahara e Akira Kurosawa..Isto tudo para dizer que é inevitável que se pense no caso de Parasitas, o outro título asiático que produziu a surpresa da década nos Óscares. O próprio realizador coreano, Bong Joon-ho, numa entrevista recente ao The New York Times, fez questão de mostrar o seu apoio a Hamaguchi, sublinhando que a sua admiração pelo cinema do japonês é anterior a Drive My Car, e por isso não ficou surpreendido com as nomeações. "Existem muitos realizadores exímios a retratar personagens, mas há algo de peculiar e único em Hamaguchi", disse nessa entrevista..E chegamos ao que interessa: Hamaguchi é das vozes mais originais do atual cinema japonês, um realizador inspirado por Cassavetes que acredita na beleza da "revelação" dos seus atores. É esse efeito progressivo que se sente nos filmes, e de modo particular em Drive My Car, baseado num conto homónimo de Haruki Murakami. A personagem central, Kafuku (Hidetoshi Nishijima), é um ator e encenador que, dois anos após a morte da mulher, deixa Tóquio e vai para Hiroxima, onde decorre um festival internacional de teatro. Aí, ele é o responsável pela encenação da peça O Tio Vânia, de Tchékhov, um texto que já lhe está entranhado na pele, e que ele quer que também se entranhe nos seus atores. Um detalhe: o espetáculo teatral que está a preparar assenta numa lógica multilíngue, em que cada ator lê a sua parte na língua materna, seja japonês, mandarim ou até língua gestual coreana..Citaçãocitacao"Um filme japonês receber uma nomeação para melhor filme nos Óscares é outro patamar, é extraordinário, por ser a primeira vez.".Fora dos ensaios, Kafuku é transportado no seu próprio carro antigo, um Saab 900 vermelho, por uma jovem motorista, Misaki (Toko Miura), que veio como uma cláusula do festival. A princípio a ideia não lhe agrada, mas depois de um test drive fica provado que Misaki, não só é uma condutora excecional, como a sua companhia silenciosa dá espaço a uma confiança mútua, e, posteriormente, a partilhas mais secretas. Entre a camada sensível da vida destas personagens e a peça de Tchékhov, vai crescendo uma simbiose sobre a qual nos falou Ryûsuke Hamaguchi numa conversa que procura tocar (quase) todos os pontos nevrálgicos deste refinadíssimo épico íntimo..Estamos numa entrevista intermediada por uma tradutora, e não posso deixar de começar por fazer o paralelismo com os ensaios que se veem no filme, em que atores de diferentes origens dizem o texto na sua língua nativa. Nessa conjuntura a comunicação está para além das palavras? É exatamente isso, a comunicação existe para além das palavras. E esclareça-se que este processo em específico não está no filme para simbolizar diversidade ou algo do género, não é esse o objetivo. A ideia era que os atores conseguissem representar melhor através da criação desse contexto. No fundo, trata-se de tentar prestar atenção para lá do sentido das palavras. Nos ensaios, os atores reagem ao corpo, ao físico uns dos outros, o que faz com que tenham uma resposta espontânea, natural. É um processo que procura retirar a falsidade ao ato de representar, chegar o mais possível à verdade das emoções..A importância do ensaio, e da repetição, é algo que vem de Happy Hour - Hora Feliz [2017]. Desta vez espelhou abertamente no protagonista de Drive My Car a sua própria filosofia de trabalho com os atores. Porquê? Sim, eu próprio uso este método de ler várias vezes, sem emoção, de modo repetitivo. É um método que faz com que as falas comecem a conectar-se com o corpo, ou seja, o corpo absorve a informação. E quando isso acontece a voz dos atores muda, porque ficam mais relaxados. É uma boa preparação para uma excelente interpretação. E esta personagem principal, Kafuku, procura o mesmo nos seus atores. Dos métodos de representação que conheço, para mim, este é o melhor, e foi por isso que o espelhei em Kafuku. Sem dúvida, existe uma certa sobreposição entre ele e eu próprio, desde logo porque, assim como sou o realizador do filme, ele é o encenador da peça dentro do filme..E a peça de que falamos é O Tio Vânia, de Anton Tchékhov, que é parte da alma do filme. Como é que este autor russo dialoga com o seu cinema? Não será só em Drive My Car que ele está presente... Antes de mais, gosto imenso de Tchékhov, é um autor que sempre li e admirei. Os textos dele provocam-me uma emoção muito especial. É verdade que já os usei noutros filmes, e desta vez decidi usar uma peça inteira, O Tio Vânia, porque achei que se justificava, e também queria perceber como é que se poderia adequar, ou produzir impacto no filme. Como é que a escrita dele dialoga com o meu cinema? Simplesmente, quando leio os textos dele fico comovido. É um autor que escreveu as suas peças há mais de 100 anos, mas estas ultrapassam a referência da época, as fronteiras culturais, e cada personagem comunica connosco - consigo ver-me ao espelho em qualquer uma delas. Essa é uma característica forte da escrita dele, a razão pela qual é intemporal..Isso sente-se no facto de as próprias personagens do filme ecoarem as personagens da peça... Sim, podemos dizer que o eco já vem do conto original de Murakami, porque ele também está sob o signo do autor russo. Eu limitei-me a desenvolver esse aspeto. Por exemplo, entre Kafuku e Vânia existe uma forte correspondência: nenhum deles conseguiu a vida que queria. E o mesmo vale para Misaki e Sónia [personagem de O Tio Vânia]..No seu anterior Roda da Fortuna e da Fantasia [2021] há uma longa sequência dentro de um carro, que me fez pensar bastante nos filmes de Abbas Kiarostami e no potencial dramático da solidão partilhada numa simples viagem de carro. Esse potencial chamou-lhe a atenção no conto? Quando li o conto de Murakami, há quase 10 anos, fixei esta situação de duas pessoas a falar dentro de um carro. E, de facto, fiquei logo atraído pela ideia de fazer um filme à maneira de Abbas Kiarostami! Pus-me a pensar se conseguiria - lembro-me perfeitamente de isso me ter passado pela cabeça no momento. Num filme de Kiarostami, uma deslocação de carro não é uma simples deslocação. São circunstâncias onde acontecem longas conversas, e existe uma relação diferente entre as personagens antes e depois dessa viagem. Ou seja, não se trata só de uma deslocação no espaço mas de transportar o tempo. É uma viagem para deixar o passado e criar uma nova vida. Portanto, Kiarostami teve uma grande influência na escolha desta adaptação..A suavidade da condução de Toko Miura [Misaki] é particularmente importante. Esta aptidão contou para o casting? A graça é que, quando fiz o casting, ela não tinha carta de condução! Para ser mais preciso, descobri-a no casting de Roda da Fortuna e da Fantasia - na altura já havia o projeto de Drive My Car - e comecei logo a pensar que ela era ideal para o papel de Misaki. Perguntei se conduzia, ela disse que não tinha a carta, mas o que era mais importante para a personagem era a inteligência dela e o lado humano. Respondeu às perguntas que lhe fiz de uma forma muito franca, honesta, e isso fez com que eu não tivesse dúvidas. Dei-lhe o papel de imediato, pedi-lhe que tirasse a carta, e depois houve um intervalo de mais ou menos um ano, o que lhe permitiu treinar a condução. E acabou por acontecer isso que diz: ela revelou-se muito boa condutora. Essencialmente, fiz um bom julgamento..Outro aspeto que se impõe é a sedução do ato de narrar na sequência de abertura do filme. É uma forma de "conduzir" o espetador? Sim, penso que existe um certo ato de sedução nessa sequência, porque é uma mulher nua que começa a contar não se sabe muito bem o quê - ela é misteriosa -, e isto provoca uma interrogação no espetador. Essa parte vem de outro conto do mesmo livro, Homens sem Mulheres, um conto intitulado Xerazade, que naturalmente tem que ver com As Mil e Uma Noites e a mulher que todas as noites vai contando uma história, como se do ato da narração dependesse o prolongamento da sua vida. E ao começar o filme com este gesto tentei estimular a curiosidade de quem está a ver. Se aqui o espetador ficar interessado, se quiser saber mais, é sinal que o conseguimos agarrar. Se não, já o perdemos... É por isso que é crucial. E o triunfo desse momento passa pela excelência do trabalho da atriz que faz de Oto [a mulher de Kafuku], Reika Kirishima..Grande parte de Drive My Car passa-se em Hiroxima. A cidade, que foi destruída e reconstruída, é uma cicatriz que ressoa nas personagens? A escolha de Hiroxima foi um acaso. A primeira cidade em que pensámos foi Busan, na Coreia do Sul, pela particularidade de ser um local onde se poderiam filmar as cenas de carro de forma muito livre. Mas quando começámos a filmar - tinham passado 10 dias - foi decretada a pandemia, e isso impediu-nos de avançar, porque implicava viajar para a Coreia. E durante esse impasse tivemos de optar por algum sítio dentro do Japão com as características de ser um local onde se pudesse filmar de carro e que fosse adequado para o contexto de um festival internacional de Teatro, ou seja, uma cidade cultural. A verdade é que não é fácil encontrar uma cidade no Japão com ambas as características. E depois, claro, Hiroxima é conhecida internacionalmente por causa da bomba atómica. Ao início isso deu-me uma certa insegurança, estava preocupado se conseguiria retratar a cidade como deve ser, mas penso que acabou por funcionar. Entre outras coisas, a beleza de Hiroxima passa, sim, pelo facto de ter sido destruída e reconstruída. E quando se fez a reconstrução foi com base no conceito de Paz. Ora esta dimensão da cidade repercute a vida das personagens, que também foi destruída e reconstruída..Como é que reage ao êxito que Drive My Car tem tido, culminando nas nomeações para os Óscares? Estou grato e muito contente. Devo dizer que, durante a rodagem, tive a sensação de que o filme estava a ficar excelente, tive essa certeza de ter feito um bom trabalho. E fico feliz por perceber que o filme fez o seu caminho e essa primeira impressão se confirmou. Ver espetadores de todo o mundo a apreciar Drive My Car deixa-me muito satisfeito. Agora, claro, um filme japonês receber uma nomeação para melhor filme nos Óscares é outro patamar, é extraordinário, por ser a primeira vez. Não imaginava que fosse acontecer. Mas já que aconteceu, terei muito orgulho em estar presente na cerimónia de entrega dos prémios..dnot@dn.pt