Perante as imagens recentes das cheias atípicas na Alemanha e na Bélgica, que os ambientalistas já relacionaram com as alterações climáticas, ocorre-nos aquela cena de A Viagem de Chihiro em que um "espírito fedorento" (basicamente, um monstro coberto de lama copiosa) entra numa casa de banhos termais e, com a ajuda da protagonista, mergulhada na água suja, revela a identidade de um tal "Deus do Rio", depois de ser libertado de uma enorme quantidade de detritos aleatórios - tal como os objetos que há dias se viram arrastados na corrente acastanhada. Uma cena que de resto Hayao Miyazaki foi buscar às suas próprias memórias, quando em jovem ajudou na limpeza de um rio local, que acabou por recuperar a sua vida selvagem... Estreado no Japão a 20 de julho de 2001, A Viagem de Chihiro continua de olhos postos no mundo em que vivemos, através da fantasia mais negra, mas também mais luminosa..Desde Nausicaä do Vale do Vento (1984), a obra de Miyazaki está repleta de uma nostalgia pelo mundo natural e uma evidente preocupação com as questões ambientais. O que é que a aventura de uma menina de dez anos chamada Chihiro acrescentou a esse universo? Talvez um grau superior de imaginação. O realizador convocou os espíritos da antiga cultura japonesa, os seus elementos tradicionais, e criou um reino de detalhes visuais e personagens inesquecíveis prontas a levar o espectador numa jornada sobrenatural. "As crianças, rodeadas de produtos superficiais de alta tecnologia, perdem cada vez mais as suas raízes. Temos uma tradição muito abundante, uma tradição que temos o dever de lhes transmitir", lê-se na mensagem de Miyazaki sobre o filme, no site oficial. E acrescenta: "Acho que os homens que não têm história e as pessoas que esqueceram o seu passado desaparecerão como efémeras, ou serão transformadas em galinhas que põem ovos enquanto esperam para ser a refeição de alguém. Acho que fiz este filme com o verdadeiro desejo de chegar a um público de meninas de dez anos." Porém, A Viagem de Chihiro conquistou espectadores de todas as idades..Tudo começa com uma mudança de cidade. Chihiro está a caminho de uma nova casa e os pais decidem usar um atalho para poupar tempo. Quando chegam ao fim do caminho deparam-se, não com a casa, mas com um túnel que dá para um lugarejo abandonado. Curiosos, os pais vão explorando os indícios de vida naquele local, contra a vontade da menina assustadiça, e em pouco tempo a ameaça do anoitecer torna-se um pequeno filme de terror: um jovem chamado Haku, que aparece do nada, diz-lhe para deixar aquele lugar antes que se ponha escuro, e quando ela vai à procura dos pais já estes estão transformados em porcos, a lambuzarem-se com um banquete fantasma... Ninguém esquece esta imagem..É pela escuridão que Miyazaki nos leva para as termas onde os espíritos de outro mundo se banham, uma casa de luxo gerida por uma feiticeira, Yubaba, que mantém cativo o aprendiz Haku, único ser com ligação ao mundo real, e em quem Chihiro confia para poder voltar a esse mundo e libertar os pais do feitiço que os converteu em suínos. Pelo meio, há uma panóplia de seres e criaturas fantásticas, mas nenhuma ficou tão presente no imaginário popular como o Sem Rosto, um espírito inocente e solitário em forma de vulto negro com uma máscara branca, que se "cola" à bondade de Chihiro acabando por ceder à avidez dentro das termas onde ela então trabalha - a cena em que ele, depois de devorar todo o tipo de iguarias, incluindo funcionários, surge como um monstro insaciável é mais uma prova da elasticidade criativa do mestre japonês, capaz de construir um castelo de emoções sobre imagens que vão do mais ternurento ao mais impressionante..A Viagem de Chihiro é a Alice no País das Maravilhas de Miyazaki, espécie de ritual de passagem da infância para a fase adulta em ponto de ebulição fantasiosa (mas sempre com um pé na realidade). Até à data, foi o único filme de animação de língua não inglesa a alcançar o Óscar, tornando-se a joia da coroa do Studio Ghibli e, até ao ano passado, o filme mais rentável de sempre no Japão, lugar agora ocupado pelo anime Demon Slayer, de Haruo Sotozaki..Para assinalar o aniversário da obra-prima de Miyazaki, no início do ano foi logo anunciada uma peça de vestuário para fãs. Trata-se de um casaco estilo basebol com estampados da casa de banhos termais e da personagem do Sem Rosto a devorar um dos funcionários... Um mimo "publicitário" do Studio Ghibli a que se junta a iniciativa de uma adaptação do filme ao teatro, pelo encenador John Caird, com estreia prevista para o início do próximo ano em Tóquio..Já Hayao Miyazaki, que completou 80 anos em janeiro, tem um novo projeto em andamento. Chama-se How Do You Live? e parte de um clássico da literatura japonesa, o livro homónimo de Yoshino Genzaburo, de 1937, que o realizador leu nos tempos de faculdade. A história de um rapaz de 15 anos a viver com um tio, e o seu crescimento espiritual dentro dessa relação familiar. Caso para dizer que os bons espíritos sempre o acompanham. Cá esperamos vê-lo, mais uma vez, a regressar da reforma anunciada..dnot@dn.pt