É na casa de Azeitão que Herman José passa os dias, a desenvolver os seus bonecos, como já fazia. Primeiro para as redes sociais, depois para dar continuidade ao seu programa televisivo. Sempre acompanhado pela mãe, que gosta de aparecer nos quadros humorísticos. Elogia António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa e Rui Rio pela forma como têm reagido à pandemia do covid-19, considerando-os "uma troika irrepreensível". Espera pela recuperação da economia, acreditando que tudo voltará ao que era: para o bem e para o mal..Está a divertir-se com os sketches que tem vindo a fazer para as redes sociais? Ou deverei dizer trabalhar? Mais a trabalhar do que a divertir-me, porque esta encomenda da RTP é mais complicada do que imaginava. São 40 minutos de ficção humorística, feitos sem qualquer apoio que não seja cada um em sua casa com o seu telemóvel. Para isto ter dignidade e interesse, dá bastante trabalho a construir. Por outro lado, também é muito divertido porque é uma maneira de manter a cabeça ocupada..Mas o programa Cá por Casa esteve interrompido. Ao início, na primeira e na segunda semanas, fizeram um best of. Na terceira semana, a direção de programas da RTP lançou o desafio para continuar a fazer o programa em outros moldes que aceitei prontamente. Numa semana, já tinha o primeiro episódio do Diário de Uma Quarentona no ar..Como é que constroem o programa? Eu escrevo o guião, tenho a colaboração de um grupo de guionistas, é distribuído pelos atores e, depois, cada um faz o seu papel e grava com o telemóvel. Só têm de seguir o guião religiosamente. Mando o resultado das filmagens para os estúdios da Valentim de Carvalho e o realizador monta de acordo com o guião e é sonorizado. O telespetador quase esquece que são os atores em suas casas a gravar o seu próprio papel, porque há muita variedade e movimento..É muito mais difícil do que estarem em estúdio? É muito difícil, é como fazer renda, isto quando não se quer fazer um subproduto. Para ficar bem representado, ritmado e giro, implica muito trabalho..Qual tem sido a reação do público? Quem vê e gosta, gosta muito, quem não vê, é indiferente. As pessoas estão espartilhadas, mas aqueles 300 mil que me seguem ficam muito agradados..Devo concluir que a sua vida não mudou muito? Não. Tenho sempre muito que fazer e com que me distrair. Curiosamente, há muitos anos que o meu local de trabalho é no campo, em Azeitão, portanto juntou-se o útil ao agradável..Não é complicado a obrigação de ficar em casa? O complicado é não ter espetáculos. Desde há dez anos, toda a minha vida está estruturada nos espetáculos e, portanto, parar de os fazer é muito complicado do ponto de vista artístico e humano, mas também económico. Por mim e pelas pessoas que os espetáculos ao vivo movimentam..Quantas pessoas tem na sua equipa? Depende, mas o mundo do espetáculo ao vivo movimenta dezenas de pessoas. Há semanas que, entre espetáculos de empresas, em diferentes localidades e saídas para o estrangeiro, movimentamos dezenas de pessoas. Esta é uma indústria muito empregadora: montagem de palcos, músicos, técnicos, etc., e que nunca decaiu. Envolve muitas pessoas e que não se veem - o que o público vê é o produto acabado..Nem com a crise de 2008? Nem com a crise. As televisões, as publicidades, tudo passou por essa crise, mas a indústria dos espetáculos ao vivo manteve-se viva. Para uma grande quantidade de gente é a sua subsistência. Nesse aspeto, é realmente muito preocupante. Além da tristeza de não estar todos os fins de semana com as pessoas, como me habituei a estar, acaba por nos pôr na mesma situação de alguns empresários, cujas empresas dependem do mercado funcionar livremente..Tem uma equipa fixa? A maior parte das pessoas são contratadas, até porque funcionam como míni empresas, mas tenho uma estrutura fixa que mantenho e vou manter até ao limite..Quantos espetáculos foram cancelados? São dezenas, é muito difícil fazer a contabilidade, foi em catadupa. Em junho, tinha 18, em julho, outros tantos, são dezenas e dezenas. Sou dos artistas que mais trabalham ao vivo..Do ponto de vista criativo, faz diferença não estar no palco? Não forçosamente, os espetáculos e o momento de criação são departamentos que correm independentes. Não estou a ter dificuldade criativa em escrever este guião para o programa que estou a fazer. Ao vivo, acaba por ser um recuperar de matéria, que é mais ou menos fixa, e que vai evoluindo de espetáculo para espetáculo, mas que não implica uma construção propositada de texto. Baseia-se muito na carreira, nos êxitos musicais, no improviso e num material que vai evoluindo..Como o dia-a-dia do Nelo, um dos seus bonecos, agora a escrever um diário da pandemia. Exatamente, acaba por ser a nossa especialidade e o que sabemos fazer melhor..Fazer humor com a doença é uma questão sensível? Não é bem fazer humor com a doença, é fazer humor numa determinada situação. É importantíssimo rir da crise, trata-se de empregar as nossas armas perante um problema grave. Muitas vezes, não só neste caso como em outros, vai-se ao hospital falar com pessoas doentes e elas são muito mais criativas, mais divertidas, do que as famílias, que estão a sofrer por elas. O ser humano tem no humor um escape para a tristeza, é essencial não perder essa capacidade de brincar com tudo aquilo que nos assusta, que nos entristece, que nos preocupa..Será uma forma de melhor ultrapassar esta crise? Ajuda, é uma mistura de tudo, só um inconsciente é que passaria o dia a rir ou a divertir-se, mas há alturas para tudo. Para a tristeza, para os amigos, para pensar, para resolver os problemas e para rir..A questão económica é o que mais o afeta? Por enquanto, não estou preocupado. Como todos os empresários, estou expectante para ver quanto tempo ainda vamos estar inativos..E do ponto de vista humano? Estou muito descansado, a única grande preocupação que teria era a minha mãe e ela vive comigo. Se estivesse isolada, à espera de que isto passasse, estaria mesmo, mesmo, muito triste por ela..E agora aparece no seus sketches. Que idade tem? 87 anos. Ela é uma brincalhona, adora aparecer, e acaba por colaborar. E como, felizmente, temos aqui muito espaço, não nos atropelamos, ela tem a sua privacidade, mantém a sua independência. Encontramo-nos para ver uns filmes e para as refeições, acaba por ser muito, muito giro..Aceita bem todas as suas piadas? Há um tema em relação ao qual está sempre em pânico, que é a religião, mas qualquer pessoa religiosa tem uma grande incapacidade para aceitar que se faça ironia com a sua fé, não é só a minha mãe..Este isolamento é, portanto, mais difícil, para quem tem familiares idosos a viver sós? Também é difícil para quem tem crianças e que têm de estar todo o dia fechadas. É difícil de qualquer maneira, esteja-se ou não na mais profunda solidão. A assistência a novos ou a velhos é uma situação de grande complicação, como em qualquer guerra..É dos que defendem que estamos numa guerra? Para todos os efeitos, isto é uma guerra. Neste caso, é contra um micro-organismo, mas tem os contornos de uma guerra normal: alguém que ataca o outro e quem está a ser atacado tem de se defender..No caso deste coronavírus não se vê o inimigo. Vê-se, percebe-se bem no microscópio, não se vê é onde está para nos atacar, mas isso também acontece com as guerras. As aldeias e as cidades são bombardeadas sem saberem onde está o inimigo..Em que circunstâncias tem saído de casa? Nunca mais saí, só para filmar, mas é dentro do meu terreno, o que é bom, é a vantagem de ter espaço. Nesse aspeto, não mudou muito. Normalmente, saio pouquíssimo. Tirando os espetáculos e uma ou outra ida ao restaurante, a minha vida é sempre muito caseira, ao computador como qualquer criador..Vai continuar este modelo de programa até quando? Está nas mãos da direção de programas da RTP e do próprio vírus. Se o vírus abrandar, pegamos nas nossas malinhas, vamos todos para o estúdio, e a vida continua igual. Se não abrandar e a direção de programas quiser continuar a experiência, cá estaremos para continuar com muito prazer..Disse que pegam nas vossas coisas e continua tudo igual. Acredita que vamos voltar ao que éramos? Numa primeira fase não, mas depois voltará a ser como era. Foi assim a seguir à II Guerra Mundial, pensava-se que nunca mais alguém faria mal ao outro, ninguém falaria no nazismo, e veja o que se passa por esse mundo fora, com o crescimento da extrema-direita. Foi assim quando acabou a gripe espanhola ou na gripe A. Diziam: "Agora vai ser tudo diferente" e não foi. Andava tudo muito preocupado e, hoje, toda a gente apanha gripe A e nem dá por isso. Vai voltar ao mesmo, porventura, vai demorar um bocadinho mais do que é costume, porque os estragos económicos desta vez são muito fortes..Alguma coisa o surpreendeu na forma como Portugal está a reagir a esta pandemia? Acho que o processo português foi conduzido com serenidade e competência. Tanto o primeiro-ministro, que tem gerido a situação de forma notável, como o Presidente da República, como o líder da oposição, estiveram bem..António Costa, Marcelo Rebelo Sousa e Rui Rio foram fundamentais para manter os números baixos? Absolutamente, formaram uma troika irrepreensível, que se completou e entreajudou..Já admirava António Costa? Sempre o admirei e cheguei a apoiar a sua candidatura à Câmara de Lisboa, mas não sou um apoiante declarado de nenhum partido. Vou avaliando os políticos pelo trabalho que fazem independentemente da área onde se movimentam. Sou como o público, que nos avalia pelo último trabalho que fizemos. A situação não é boa, estamos a viver um momento muito grave, não estamos tão mal como a Itália ou a Espanha, mas não estamos bem como a Coreia do Sul ou Singapura. Estamos a controlar a propagação do vírus, mas está a ser drástico a nível económico..Tem de se começar a abrir setores da economia? Tem de ser, quando for possível, abrir de forma gradual. Não podemos deixar morrer a economia, senão, não se morre do mal, morre-se da cura..Quais são os projetos para o futuro? Se fizesse essa pergunta há dois meses, era capaz de lhe falar em dois ou três projetos. Neste momento, o importante é passar por esta fase o melhor possível, manter a minha colaboração na RTP com o Diário de Uma Quarentona o melhor que sei e posso. Velar pela minha saúde e a da minha mãe, e assim que o pesadelo acabar, tentar pegar na minha vida empresarial e profissional no ponto onde a deixei.