O despertador toca às 05.30 da manhã. É hora de Vanessa se levantar. O treino aproxima-se. Começa com natação às 06.00. Depois vai trabalhar na tese de mestrado ou nos planos de treino dos seus atletas (já conta com 15) no Centro de Alto rendimento do Jamor, onde também é treinadora. Durante a hora de almoço vai dar uma corrida, andar de bicicleta ou fazer ginásio. Depois volta ao trabalho e às 17/18 horas volta a treinar. Ao todo são 20 a 22 horas de treino por semana, mas podem chegar às 30 em vésperas de provas. Aos domingos, como tem mais tempo, intensifica o treino (cinco a seis horas). "É muito raro ter folgas", admite ao DN Vanessa Pereira, a campeã nacional de triatlo que neste domingo vai participar no IRONMAN Cascais, a dura prova que junta natação, ciclismo e corrida..Os atletas começam a prova às 07.20 a nadar frente à baía de Cascais (1900 m), depois pegam na bicicleta para um percurso de ciclismo (90,1 km) que passa pela Avenida Marginal, Oeiras e serra de Sintra, para a seguir terminarem a prova com 21,1 km de corrida, atravessando a Vila de Cascais, o Estoril e São Pedro do Estoril. Ao todo serão 113 km a nadar, a pedalar e a correr em cinco horas de prova. Esse é o tempo com que Vanessa Pereira espera completar o trajeto. "O IRONMAN Cascais não é das provas mais duras. É metade de um Ironman habitual (3,8 km a nadar, 180,2 km de ciclismo e 42,2 km de corrida), mas é especial por ser perto de casa e poder ter a família e os amigos a ver. Eu já ganhei só por saber que eles vão lá estar a sorrir para mim.".Apesar da especialidade de Vanessa ser o dobro da distância, a prova portuguesa tem duas coisas que ela aprecia: a paisagem e a exigência. "O ciclismo, sem dúvida, é o mais desafiante e tem subidas que causam mossa pela dureza e dificuldade, mas que contrastam com aquele belo cenário da serra de Sintra", confessa, explicando que gere o esforço ao longo da prova para vencer o cansaço quando as pernas querem desistir..Com "a vantagem de conhecer muito bem o percurso", pois é onde treina, a atleta sonha ganhar: "E, como não existem impossíveis, quem sabe?".Primeira prova aos 16 anos.Foi um professor de Educação Física, Alexandre Feliz, que lhe apresentou o triatlo aos 14 anos, quando ainda andava na escola secundária: "Mostrou-me uma prova no computador, fiquei fascinada e disse que um dia ia fazer uma prova de Ironman. Comecei a fazer triatlos com o objetivo de um dia fazer um Ironman. Arranjei um treinador, que neste tipo de provas é muito importante, aconselhei-me com pessoas que já competiam e tinham experiência e fiz a preparação adequada até que chegou o dia de competir.".Quando esse dia chegou tinha 16 anos e ficou "surpreendida" por ter terminado a prova, apesar de ter chegado em último e ao mesmo tempo que um senhor de 70 anos. Depois foi-se superando. Até ao dia em que fez uma prova em menos de 11 horas - o que para ela "era impensável" -, ganhou no seu escalão e apurou-se para o campeonato do mundo no Havai, algo que nenhuma mulher em Portugal tinha conseguido. "Foram dois momentos únicos, ter terminado e ter conseguido um apuramento para algo que nunca sequer tinha sonhado. Para mim era uma coisa impossível até então", confessa ao DN a atleta de 31 anos..Natural de Rocha Forte (Lamas, Cadaval) e licenciada em Farmácia, agora dedica-se exclusivamente à modalidade como treinadora e atleta, com uma média de 15 provas por ano. Consciente de que "é difícil" convencer as pessoas de como se gosta tanto de uma coisa ao ponto de treinar cinco horas por dia, ela também não entende como se passam duas horas a ver futebol ou um dia numa fila para comprar bilhetes para um concerto, por exemplo. "É uma questão de gostos. Eu não acho que seja difícil de entender, mas, num país de futebol, se calhar ainda é difícil entender que há outros desportos, que é uma pena que não sejam sentidos e falados como merecem", lamenta a triatleta..A banana, as tâmaras, o arroz e o chichi....Ainda olham para ela "como a maluquinha das corridas", mas já não se importa com isso: "Já passei situações caricatas de sair para pedalar ao domingo, às oito da manhã, passar no Cais do Sodré e haver pessoas que ainda não se deitaram porque gostam mais de sair à noite. Eu não compreendo como num dia tão bonito elas vão para casa dormir. Eu vou descobrir estradas, respirar ar puro...".Sempre fez questão de se preparar de forma "adequada". Ou seja, treinar e alimentar-se bem. Quando uma delas falha, o corpo "percebe". Nunca se sentiu mal ao ponto de vomitar, mas "é algo que por vezes acontece a quem não se prepara bem". E preparar-se bem passa por se "alimentar durante as provas com bananas, barras alimentares e tâmaras", por exemplo, mas também já levou "arroz e aletria" para repor energias..E as necessidades fisiológicas? "São cinco a dez horas a beber água para hidratar e é normal ter vontade de fazer chichi. Durante o treino paro para fazer, mas em prova faço em andamento, foi algo que consegui treinar. Temos um fato próprio de triatlo e pego numa garrafa e faço. Não paro, estou lá para competir e não para dar tempo às adversárias", responde Vanessa Pereira sem pudor..Para muitos a modalidade é sinal de sacrifícios, mas para ela nem por isso: "Existe sempre algum sacrifício da nossa parte, mas eu não diria bem assim, porque quando se faz aquilo de que se gosta não é bem um sacrifício. É isto que me faz feliz e completa." A falta de tempo para estar com a família e os amigos "é o pior", mas nada que o apoio incondicional deles não supere: "No início foi mais difícil, agora entendem e apoiam e estão lá nas provas a gritar por mim e a apoiar.".Uma forma de terapia.Vanessa recusa a ideia que "isto do Ironman" é só para super-homens ou supermulheres. "Qualquer pessoa pode fazer, tem é de fazer a preparação adequada e começar pelo início. Começar a nadar, começar a correr e a andar de bicicleta, depois experimentar o triatlo e só depois, quando se sentir preparado, aventurar-se nas provas", alerta..Para ela, correr, nadar ou andar de bicicleta é como "se fosse uma terapia", pois ajuda-a a libertar-se do stress do dia-a-dia. Nas provas é a pedalar que ganha vantagem e é também a modalidade que mais gozo lhe dá, pois permite-lhe "conhecer estradas e localidades"..Campeã nacional há vários anos, saúda a concorrência crescente: "Hoje, felizmente, já há muita concorrência, há uns anos havia poucas raparigas na distância longa, agora a proporção entre homens e mulheres já não se nota tanto. Eu treino para vencer, mas, mais do que vencer os outros, quero vencer-me a mim, os meus limites. Chegar em primeiro é uma alegria extra.".E não é pelo dinheiro que ganha que compete. "Não há grandes prémios monetários, nem contratos milionários. É triste pensar que vou ganhar uma prova e vou receber 150 euros", revela Vanessa, lembrando que Portugal está longe de outros países como Espanha, onde há provas que já pagam seis mil euros. Em Cascais, o prémio é de 15 mil euros, a dividir pelos cinco primeiros homens e cinco primeiras mulheres..Dos 18 aos 77 anos... São 2820 inscritos.Além dos melhores portugueses na longa distância, como Vanessa Pereira, João Silva e Filipe Azevedo, há toda uma constelação de estrelas internacionais, como Javier Gómez Noya (de Espanha, cinco vezes campeão do mundo de triatlo), Denis Chevrot (o francês que venceu a prova em 2017), o atleta olímpico João Silva, Filipe Azevedo (um dos mais bem cotados atletas da atualidade), e ainda Emma Pallant (do Reino Unido, a bicampeã do mundo de triatlo e quatro vezes vencedora em provas Ironman) e a austríaca Sylvia Gehnbock (campeã nacional da Áustria em meia distância). Dos 2820 inscritos, 84% dos participantes são atletas estrangeiros e vêm mesmo dos quatro cantos do mundo. O atleta masculino mais velho a participar tem 77 anos e é oriundo do Reino Unido. Já a atleta com mais idade é uma alemã com 62 anos. Os mais novos são um português e uma jovem brasileira, ambos com 18 anos.