"A solidão atravessa todos os meus filmes, é uma segunda pele nos momentos decisivos"
Mariazinha deixou a infância num campo de concentração japonês em Timor-Leste, onde regressou agora pela mão do realizador Luís Filipe Rocha. Continua a sentir que as rosas daquele lugar têm um aroma especial, mesmo se foi um tempo de sofrimento, de fome, de luta agreste pela sobrevivência. Rosas de Ermera, tem estreia comercial prevista para meados de outubro (passou pelo Indie Lisboa e pelo festival de Melgaço) e traz-nos a revelação e o espanto de um episódio histórico quase desconhecido. O que faz o realizador quando não filma?_Lê interminavelmente, como sempre fez desde que aos 10 anos entrou para um colégio interno. Aqui conta como chegou ao cinema, primeiro como ator e depois a escrever argumentos e a realizar.
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Do ponto de vista do realizador e do argumentista, qual é a maior diferença entre documentário e ficção?
A diferença é entre uma pessoa de carne e osso e uma personagem, entre a vida vivida e a imaginada. O documentário trabalha diretamente com a "realidade real". Rosas de Ermera é um documentário mas tem uma estrutura narrativa, conta uma história. Sempre o vi como um filme. A memória de cada ser humano é um misto de recordação e de imaginação, de revisitação e de fantasia. O testemunho da memória não é muito fiável, ao contrário do que muitos senhores juízes entendem.
Neste caso, é uma memória à distância de 70 anos.
Foi um período tão intenso, tão marcante, que é difícil não se lembrarem dos pormenores, quer a Mariazinha, em relação ao que viveu com os pais em Timor, quer o João, em relação ao que viveu com o Zeca desde que entraram sozinhos no barco que os trouxe para Portugal.
Como conseguiu convencê-la a regressar a Timor?
Ela disse que tudo o que sabe deve-o a Timor. Quando filmámos em estúdio os dois irmãos em 2013, eu e o produtor Luís Galvão Teles não sabíamos se poderíamos ir a Timor, ainda não tínhamos financiamento, aquela conversa podia vir a ser o filme, recheado com fotografias e documentos. Em 2015, conseguimos um financiamento para fazer o documentário e propus ao João irmos a Lourenço Marques e à Mariazinha irmos a Timor. O João não quis ir.
Ele nunca voltou lá?
A família toda viveu em Moçambique, incluindo o tio Filomeno e os filhos mais velhos do Zeca. Só regressaram depois do 25 de Abril. A Mariazinha pediu-me para pensar e ao fim de dois dias decidiu ir. Eu não a convenci, limitei-me a convidá-la. O mais importante do meu trabalho não é o filme tal como está, porque o devo muito ao montador, o Antonio Pérez Rein, com quem trabalho desde Sinais de Fogo (1995). O mais importante foi a relação de amizade que durante anos me permitiu ir ganhando a confiança do João e da Mariazinha e ter conhecimento da história, mas sobretudo conseguir que os dois se sentissem à vontade e confortáveis para contarem o que viveram. Isso implicou uma minuciosa preparação minha. Em 1983 e 1984, tinha gravado uma conversa de quatro horas com o João e o Zeca sobre a vida dos dois e ainda a tenho, até está já transcrita.
E sobre a Mariazinha?
Em 1996, ela fez quatro caderninhos iguais que deu aos quatro filhos. Aí estão alguns flashes das memórias dos acontecimentos de Timor. Foi o eu amigo Alface (João Alfacinha da Silva, 1949-
-2007) que me desafiou a fazer um documentário.
Por isso lhe dedica o filme?
Dedico-o ao Zeca, ao Fernandinho, o marido da Mariazinha, e ao Alface. Nessa altura também gravei com o Alface uma conversa de quatro horas com a Mariazinha. Tenho em áudio o Zeca e o João a contarem-me a vida deles. O Zeca, aliás, entendia que se lembrava do próprio nascimento e descreve-o: "Umas superfícies leitosas, devia ser a minha mãe, tudo branco, uma espécie de leite." Depois fiz uma investigação sobre Timor.
Quando a Mariazinha fez esses caderno, em 1996, o assunto já era falado na família ou foi uma revelação?
É um período sobre o qual a família nunca falou. As referências eram: "Ananases? Ananases era em Timor. Chuvas, trovoadas, isso era em Timor." Nunca enfrentavam claramente a história. Os dois rapazes chegam a ser tratados como órfãos, e só souberam que os pais e a irmã não tinham morrido por uma notícia de jornal, a seguir à Guerra (1945), com a lista dos sobreviventes. Mas também nunca se falou explicitamente de eles terem ou não morrido. Como diz o João, "um silêncio pesado caiu sobre nós". Havia um blackout dos japoneses em Timor e não entrava nem saía correio nem havia rádio. Os japoneses chegam em fevereiro de 1942, eles vão para o campo em novembro, e só não houve até 1945.
Viajou com a Mariazinha para Timor?
Cheguei três dias antes, ela foi com o Pedro, o filho mais novo. Eu tinha, pelo menos, de olhar antes para Díli e Liquiçá. Depois fomos para todos os outros sítios com ela. Rodámos em nove dias. Tivemos dias em que saíamos às cinco ou seis da manhã do hotelzinho onde estávamos, graças ao governo de Timor, e voltávamos às sete da tarde, com seis ou sete horas de jipe na montanha - Fatumessi, Lebumeu, Ermera, tudo aquilo é montanha.
E improvisavam a filmagem?
Era chegar, olhar, o que há aqui? Eu, pelo menos do ponto de vista da história, ia muito bem preparado. E como o diretor de fotografia era o João Ribeiro e o Carlos Alberto Lopes no som, eu nem me preocupava. Fomos só nós e a Cristina Soares, que montou a produção toda em Timor, uma coisa notável. É tão minuciosa a memória da Mariazinha... Para ela foi muito emocionante, o que lhe deu até um suplemento de energia quando veio. Neste ano, colocou-se a certa altura a hipótese de estrear o filme em Timor e ela disse que ia. Não se concretizou, penso que já não se concretiza. Mas a disponibilidade dela, agora com 85 anos, continua.
Cheirou as rosas de Ermera?
Cheirei uma, a que está na fotografia. Mas confio na Mariazinha, e imagino, pela descrição dos roseirais, que deve ter sido especial.
Em Cinzento e Negro (2016), todas as personagens vivem numa grande solidão, tal como as crianças de Rosas de Ermera. É um tema importante?
É um tema que atravessa todos os meus filmes. A solidão é um esteio da vida humana. Nos momentos mais decisivos estamos sempre sós. O meu primeiro filme de ficção chama-se A Fuga, feito de pessoas sozinhas, encerradas em celas no forte de Peniche. O filme Cerromaior é todo banhado, mesmo no coletivo de camponeses, por uma solidão espessa. O outro tema seria talvez o poder, as relações de poder entre as pessoas. Conhece viagem mais solitária do que A Passagem da Noite ou o Adeus, Pai? A solidão é uma espécie de segunda pele que temos para os momentos mais decisivos.
O outro será naturalmente o enfrentamento da morte, do fim. A escrita do Cinzento e Negro, que é um território novo, do ponto de vista narrativo, em relação aos meus filmes anteriores, porque eu não sei das personagens mais do que cada espectador. O que se percebe é que cada um está sozinho perante os factos mais essenciais e dramáticos e, tanto quanto possível, mais profundos da sua existência como seres humanos. Não penso: agora vou tratar do tema da solidão. Tem que ver com a minha forma de ser, de estar, de pensar e de viver. Vivi num colégio interno e se calhar isso de alguma forma marca a minha maneira de olhar e de ser. Aos 10 anos fui sozinho para um colégio interno e até aos 16 anos tive de tomar conta de mim, quando quem deveria fazê-lo seria a família. É óbvio que a questão da solidão, do solitário, como diria o Buñuel, "imprime carácter".
Não se sentiu integrado no coletivo do colégio?
Sempre mantive um lado individual e não só no colégio. Mantenho a divisa do Groucho Marx: não posso pertencer a um clube que me aceite como sócio. Nunca consegui filiar-me num partido. Criei as duas associações de realizadores mas saí logo. Dou-me muito mal com os coletivos.
No Cénico de Direito não aconteceu assim. Ou era um tempo especial?
Era um tempo especial, eram os anos 1960, a resistência. Apesar da ditadura, na universidade vivemos muito esses anos - a música, o teatro, o cinema. Havia uma respiração, havia a criação coletiva, que continuo a praticar na minha maneira de estar e de fazer cinema.
O cinema não é uma arte coletiva, por definição?
Para mim é. Uma das coisas que me mantêm ao fim de tantos anos, e já um bocado farto das questões do cinema português, é saber que cada filme é criado por todos aqueles que trabalham nele. Isso interessa-me muito, gosto muito. Mas como realizador, ao tomar, decisões estou sempre profundamente sozinho.
Na montagem fica com o montador?
Sempre. O Antonio Pérez Reina apareceu por acaso nos Sinais de Fogo. Era para ser outro espanhol, Ivan Aledo, mas não pôde e recomendou-o. Como em muitas outras relações na vida, foi um amor e um entendimento à primeira vista que e não consigo imaginar montar um filme se não com ele. Ao segundo ou terceiro filme, disse-me: "Podes não pôr os pés na montagem, até podes morrer, nunca montarei o filme se não como tu queres, porque filmas de uma maneira que traz um princípio de montagem." De facto, eu imagino, na rodagem, como montar. Como sou preguiçoso, normalmente não filmo para além do que acho que vou utilizar, o que também leva o Antonio por vezes a dizer "eh pá, podias ter feito..." No caso da construção de Rosas de Ermera, acho que o trabalho dele acaba por ser mais importante que o meu. Também é imprescindível o trabalho com todos os outros.
Vai buscar sempre os mesmos?
Tento. O meu filho mais velho, que tem agora 25 anos, é músico e diz que aceita os convites de toda a gente, toca com toda a gente mas quando quer tocar música composta por ele, ou quando quer estar bem, tem de tocar com pessoas de quem gosta. Não é só ficar tudo muito bem, ele gosta de tocar com pessoas de quem gosta como pessoas, além de como músicos. E eu pratico isso há muitos anos no cinema. Se pudesse, tinha continuado a trabalhar com as pessoas com quem comecei há 40 anos. O Carlos Alberto Lopes está desde o princípio.
O que fez no Cénico de Direito?
Entrei em 1968 e apanhei o Volpone [Ben Johnson] e o Melin 4 [criação coletiva], ambos com o Adolfo Gutkin [encenador argentino], e Os Físicos [Dürrenmatt] com um encenador uruguaio, Federico Wolff. Isso coincide com a aparição do Grupo de Teatro de Letras com o Luís Miguel Cintra, o Jorge Silva Melo e a Eduarda Dionísio. O Gutkin montou na Gulbenkian um laboratório para atores e um curso de direção. Do Cénico de Direito, estávamos eu e o Mena Abrantes, e convergimos com atores - João Mota, João Perry, Filipe la Féria, Carmen Dolores. No curso de direção passaram o Luís Miguel e o Artur Ramos. Mas não foi aí que realmente comecei. Se eu disser onde fiz teatro pela primeira vez...
Onde foi?
Saí do Colégio Militar para o liceu de Oeiras em outubro de 1963, depois de um braço-de-ferro com o meu pai que queria que lá ficasse e que fosse para Engenharia. Um amigo de infância, o Zé Coimbra, tinha um irmão mais velho, o Carlos Grifo, que era ligado ao teatro e resolveu encenar A Cantora Careca do Ionesco. Onde? Em casa do José Saramago, onde ele vivia com a Ilda Reis. Talvez o Carlos fosse amigo deles, não sei. Eu fiz de Mr. Martin e a Mrs. Martin é a Violante Saramago. O Saramago era diretor editorial dos Estúdios Cor e fez um programa a sério, com os nomes dos atores, das personagens, que veio a dar-me anos mais tarde, uma vez que nos encontrámos no programa do Carlos Pinto Coelho. Foi na casa dele que comecei, com 16 anos acabadinhos de fazer. Depois há um hiato grande e eu encontrei o Zé Saramago por alturas do Cerromaior. Disse-lhe que ele era responsável por eu andar nestas lides porque foi em casa dele que tudo começou.
Começou pelo teatro, então?
Na verdade, comecei pelos livros e pela escrita. Um antigo aluno do Colégio Militar disse-me que se lembrava de eu andar sempre com um livro na mão. Foi uma das maneiras que encontrei de me evadir. Posso viver sem filmes - já vivi alguns anos, duas vezes na vida - mas não consigo viver sem livros.
A minha aproximação à arte narrativa começa com a literatura, o encontro com o teatro foi casual. Paralelamente ao Cénico de Direito tive uma experiência em Algés, com o Armando Caldas, quando foi criado o Primeiro Acto. Foi graças ao teatro que descobri o cinema.
Foi ator em O Recado. Foi convidado por estar no Cénico de Direito?
Não só. Namorava com a Cucha [Carvalheiro], estava ali à mão do Zé Fonseca e Costa. A ele devo o ter começado a fazer cinema, primeiro como ator e depois, quando saí da ilha de Moçambique, foi à porta dele que bati.
Chegou a acabar o curso de Direito?
Eu acabo sempre aquilo que começo.
Como foi para a ilha de Moçambique? Li na Wikipédia que foi uma alternativa ao serviço militar e não percebi.
Isso é um erro. Só chumbei uma vez, foi no segundo ano de Direito. Acabava as aulas, comia uma sanduíche e ia sozinho para a Boa-Hora ver julgamentos. Estava doido para ver a Justiça. Ao fim de três meses concluí de que era uma coisa humana e profundamente teatral mas com muito mau teatro. Essa descoberta foi tão traumática que chumbei. O meu pai perguntou-me o que queria estudar, afinal. "Não faço a mínima ideia." E fizemos um acordo de cavalheiros que ambos cumprimos religiosamente. Eu acabava o curso e ele não me chateava. Passei para aluno voluntário, desci à cave da faculdade e pus-me a fazer teatro. Quando me formei, fui apanhado de surpresa.
Como aconteceu isso?
Andava de tal maneira envolvido noutras coisas - na política, na ação cultural, no teatro - que não sabia o que fazer. Só sabia que nunca mais voltava a fardar-me, muito menos para fazer a guerra colonial. Já tinha pago principescamente o meu tributo de sangue à pátria no Colégio Militar. Sabia que teria de sair de Portugal, só que não tinha nada pensado nem preparado. Semanas depois, um colega disse-me que ia para conservador dos registos, para Quelimane, Moçambique, e assim mudava para lá as obrigações militares e, em princípio, ficaria ligado à justiça. Vesti o meu fatinho dos exames, e fui com um amigo ao Ministério do Ultramar, ao guichet. Tenho o curso de Direito, quero oferecer-me para conservador dos registos. O sítio mais longe onde havia vaga era a ilha de Moçambique.
Foi para o paraíso, portanto?
Fui, mas jamais pensei que, dois meses depois, o presidente do Tribunal da Relação, Valadas Preto, ia nomear-me juiz.
Foi juiz?
Fui juiz na ilha de Moçambique durante um ano, e isso criou uns belos anticorpos junto dos militares - Kaúlza de Arriaga, Jaime Neves - porque era uma estância de férias dos Comandos e havia grandes desacatos e gravidezes indesejadas de jovens africanas e eu tinha mão pesada. O presidente da Relação chamou-me a Lourenço Marques e, de uma forma muito humana e inesquecível, deu-me a entender que era melhor pôr-me a andar, porque ia fazer a tropa na companhia disciplinar da Gorongosa e seria muito duro. Vim para Portugal e voltei a trabalhar com o Fonseca e Costa, quando ele filmou o Cemitério de Automóveis [Fernando Arrabal] da Ruth Escobar, que o Fonseca e Costa filmou. Ele estava na primeira câmara com o Acácio de Almeida e eu com o Leonel Éfe na segunda. Conheci aí o ator brasileiro Izaías Almada, com quem fui para Paris e depois para o Brasil.
E o que fez no Brasil?
Teatro, com ele. Era pomposamente diretor de cena, mas no fundo era o braço-direito do Izaías para trabalhar com os atores. Fizemos no Teatro Opinião, onde antes atuara o Baden Powell, um espetáculo chamado Fernando Pessoa, que teve imenso sucesso. Lembro-me de termos estado lá fechados 12 horas a fazer as luzes. Foi a primeira vez que me senti muito cansado, com claustrofobia em relação ao teatro. Entretanto dá-se o 25 de Abril e eu venho, sou convidado por dois ou três grupos de teatro independentes, mas, graças ao Fonseca e Costa, entrei logo para a Cinequanon [cooperativa de cinema]. E depois fui por aí fora. Como cineasta sou um rigoroso autodidata. Nunca estudei cinema a não ser fazendo, fazendo, fazendo, e comecei devagarinho.
E foi vendo muito cinema?
Vendo, lendo, refletindo. Do teatro trouxe para o cinema o trabalho com os atores, que me é profundamente útil até hoje, é o centro do meu trabalho como cineasta. Devo ter dirigido 300 atores. Para ser sincero e verdadeiro, há seis ou sete que jamais esquecerei, são os que me deslumbraram completamente. Há outros que me encheram de enorme gosto no trabalho com eles, cinco ou seis . E há atores com quem trabalhamos uma vez e chega. Mas há atores a que se eu puder voltarei sempre. Em relação aos atores fui sempre mais exigente do que em relação aos outros colaboradores. Não trabalho com um ator num filme só porque sou amigo dele, ou porque gosto de trabalhar com ele. Tenho de ter claramente aquela personagem.
Escreve o argumento a pensar nos atores?
No caso do Cinzento e Negro sim, em relação ao Filipe Duarte. O Filipe tinha vindo de A Outra Margem e mantivemo-nos próximos. Os outros atores desse filme são estreias comigo, nem sequer os conhecia muito bem. E também não quis fazer casting.
Então como os escolheu?
Pelo cheiro, como a Maria das Dores [personagem do filme]... Dos sentidos, é talvez o que tenho mais apurado, tal como o visual. Sou um desastre para nomes mas fixo muito bem figuras e sou muito sensível a memórias de cheiros. O Cinzento e Negro parte exclusivamente de uma imagem. Todos os outros filmes partem de histórias, de situações, de livros que adaptei.
Que imagem é essa?
Em 11 de setembro de 2003 fui a uma pequena agência funerária em Algés encomendar o enterro do meu pai e a única funcionária que lá estava era uma mulher com uma bota ortopédica e coxeava. Dias depois fui a Almada ver uma peça de teatro e, como cheguei cedo, fiquei numa pequenina taberna a beber uma cerveja. Vi passar no outro lado da rua a senhora da agência funerária, ajoujada nos dois braços com sacos de plástico das compras e, ao lado, vinha um pintarola de mãos nos bolsos que só podia ser o namorado dela. Pensei: esta é uma imagem que clama por vingança, é uma coisa de uma injustiça... No ano seguinte morreu o meu melhor amigo, que é o ponto de partida para a escrita de A Outra Margem. Em 2007, já com esse filme pronto, sento-me a pensar no que vou fazer e aparece-me a imagem da senhora coxa. Veio com uma força de tal maneira poderosa que escrevi o Cinzento e Negro, e como é uma história de vingança fui ler todos os estudos sobre as tragédias gregas. Este trabalho novo de escrita teve sequência na escolha dos atores e no trabalho com eles. Entreguei a cada um uma proposta de personagem que eles poderiam trabalhar com enormíssima liberdade. Foi o filme em que dirigi menos, no sentido que se atribui à direção de atores. E voltei a comprovar que aquilo que se chama direção de atores não existe, não existe um manual de instruções para dirigir atores.
Porque cada um é diferente?
Cada ator é um ator, o que é preciso perceber é o que cada um precisa de ajuda para criar. O Carl Dreyer dizia que a função do diretor é como a de uma parteira, de ajudar a dar à luz, porque quem dá à luz a personagem é o ator. Há uns partos mais difíceis, outros mais fáceis.
Tem projetos neste momento?
Quando começo a fazer um filme, normalmente tenho alguma coisa pendente. Neste momento tenho dois filmes escritos, ambos adaptações. Um é de O teu Rosto será o Último, do João Ricardo Pedro. Não sei se algum dia conseguirei concretizá-lo, porque tem uma produção complicada e pesada. Tinha decidido não concorrer neste ano, mas tropecei em A Cura de Pedro Eiras, de que nunca tinha ouvido falar. Não consegui parar de ler. Falei com o autor e, em três semanas, escrevi uma adaptação.
O que acontece nos intervalos dos filmes? Leitura?
Às vezes perguntam-me como se vive assim. Fui um pai muito tardio, até aos 45 anos andei à solta. Quando saí do Colégio Militar, a ânsia de liberdade era tão grande e tão vital que só parei aos 45 anos. Dei duas voltas completas ao mundo, filmei nos cinco continentes. Nunca me preocupei em ter reservas para mais de três, seis meses. Queria lá saber. Várias vezes mudei de país, e até de continente, com um simples saco de viagem. A partir do momento em que resolvi parar e não só casar e ter filhos mas também responsabilizar-me por isso, passou a tratar-se de conseguir orientar a minha vida de forma a ter reservas para três ou quatro anos. Os meus filhos começam a dar os primeiros passos na vida adulta. Os períodos longos de paragem que de vez em quando passo são integralmente a ler, a escrevinhar. Vivo há 24 anos no campo. Venho muito pouco a Lisboa e não frequento nada de carácter mundano. Prefiro os meus amigos, prefiro as casas, o ambiente doméstico dos amigos, e ocupo-me muito bem com a leitura, com a escrita, com a investigação. Divirto-me muito.