Eis um fenómeno audiovisual que, convenhamos, está longe de ser vulgar: a série televisiva O Sexo e a Cidade, que terminara há 17 anos, vai ter uma sequela intitulada And Just Like That - estará disponível na HBO, a partir do dia 9 de dezembro. De facto, as sequelas, "prequelas", continuações e todo o género de derivações têm sido apanágio, não da televisão, mas da indústria cinematográfica. Neste século XXI, os títulos dominantes de tal fenómeno são, obviamente, as infindáveis superproduções com que a Marvel e a DC Comics continuam a ocupar os ecrãs de todo o planeta..Desta vez é uma série a ter uma continuação que, aliás, tem sido promovida com o subtítulo A New Chapter of Sex and the City. Este "novo capítulo" anuncia-se como um prolongamento das histórias originais, em dez episódios, mantendo três das quatro protagonistas femininas. Kim Catrall preferiu não retomar a sua personagem (Samantha Jones), regressando Sarah Jessica Parker, Kristin Davis e Cynthia Nixon (respetivamente como Carrie Bradshaw, Charlotte Goldenblatt e Miranda Hobbes). Michael Patrick King, um dos argumentistas e realizadores mais ativos em O Sexo e a Cidade, regressa também, para já, a dirigir o primeiro episódio de And Just Like That..A série foi criada por Darren Star em 1998, tendo sido emitida ao longo de seis temporadas, até 2004 (todas as temporadas estão disponíveis, também na HBO). Na sua origem está o livro de Candace Bushnell, tendo como base as crónicas sobre as relações homens/ /mulheres que, a partir de 1994, a autora escreveu para o semanário The New York Observer. Já depois do fim da série, o cinema prolongou as suas histórias através dos filmes Sexo e a Cidade (2008) e Sexo e a Cidade 2 (2010), dirigidos por Michael Patrick King, ambos incapazes de reproduzir os ritmos peculiares da narrativa televisiva. Agora, a HBO começará por disponibilizar os dois primeiros episódios de And Just Like That, seguindo-se os restantes ao ritmo de um por semana..Escusado será dizer que O Sexo e a Cidade surgiu num contexto muito diferente daquele em que poderemos descobrir And Just Like That. Desde logo pelas características da conjuntura televisiva em que a série se afirmou. Fundada em 1972, a HBO, uma operadora por assinaturas (nos EUA, é o serviço mais antigo do género), começou por privilegiar as transmissões de eventos desportivos e a difusão de filmes produzidos por outras entidades, nomeadamente os grandes estúdios de Hollywood - pode dizer-se, aliás, que as discussões sobre os calendários de difusão dos filmes desses estúdios no pequeno ecrã, ainda hoje prementes, começaram com a HBO..O Sexo e a Cidade seria um dos conteúdos pioneiros do canal (entenda-se: de produção própria), ajudando a afirmar a HBO, não apenas como plataforma de difusão, mas também entidade criativa. Nos Emmys, o seu historial é impressionante: sete prémios, incluindo o de melhor série de comédia de 2001, obtidos a partir de um total de 54 nomeações. A "marca" HBO consolidar-se-ia em 1999 com o início de Os Sopranos, cerca de seis meses passados sobre a estreia de O Sexo e a Cidade..Para lá das singularidades desse contexto de produção e consumo, as diferenças de fundo em relação à atualidade envolvem, inevitavelmente, as aventuras e desventuras sexuais das quatro mulheres no centro das histórias de O Sexo e a Cidade - e não será preciso acentuar o facto de o próprio título definir uma paisagem dramática, contaminada por muitas formas de ironia e humor, em que as relações sexuais são elementos fulcrais, tendo como pano de fundo as convulsões da própria "cidade", isto é, Nova Iorque..O primeiro episódio da temporada inaugural, emitido a 6 de junho de 1998, resume o que, com variações mais ou menos inventivas, estaria em jogo ao longo de um total de 94 episódios. Dirigido por Susan Seidelman, cineasta proveniente dos circuitos independentes que se distinguira com a comédia Desesperadamente Procurando Susana (1985), com Madonna e Rosanna Arquette, nele encontramos as linhas gerais da existência das quatro figuras centrais, apresentadas por Carrie Bradshaw..DestaquedestaqueO Sexo e a Cidade seria um dos conteúdos pioneiros da HBO (entenda-se: de produção própria). Nos Emmys, o seu historial é impressionante: sete prémios, incluindo o de melhor série de comédia de 2001, obtidos a partir de um total de 54 nomeações..A personagem interpretada por Sarah Jessica Parker é uma jornalista conhecida pelas suas crónicas, intituladas, precisamente, Sex and the City. Logo no genérico da série, através de um painel publicitário num autocarro, ficamos a saber que "Carrie Bradshaw sabe o que é bom sexo". Com um asterisco que acrescenta: "E não tem medo de perguntar." Ainda no primeiro episódio, ficamos a conhecer o seu modus operandi: para castigar o egoísmo masculino, decide fazer sexo "como um homem" - o que, na sua linguagem, significa tão-só garantir um orgasmo, ignorando o possível prazer do seu companheiro acidental. Como ela própria explica a John Preston (Christopher Noth), personagem que vai pontuar a sua vida ao longo de várias temporadas, Carrie assume-se como "uma espécie de antropóloga sexual"... É essa a sua revolução, cândida e selvagem..Tudo isto, entenda-se, é apresentado como um misto de reflexão existencial (a voz off de Carrie desempenha um papel narrativo determinante) e paródia sexual. Em boa verdade, encontramos em O Sexo e a Cidade as marcas de um "liberalismo" de comportamentos cuja festiva frivolidade não parece possível em muitas ficções atuais (televisivas ou cinematográficas) que optam por exibir o estandarte de algum feminismo, dominadas pela preocupação de encenar comportamentos que envolvam também, por isso mesmo, alguma pedagogia redentora..Ainda no primeiro episódio, o tom é dado pela bem-disposta Samantha (que Kim Catrall interpreta com evidente gosto caricatural) quando explica as suas estratégias "para arranjar sexo". A crueza da formulação motiva o choque da incuravelmente romântica Charlotte: "Com vibradores, queres tu dizer?" Nada disso, esclarece Samantha: "Sem sentimentos." Acontece que a sociedade e a sociologia mudaram. Ou, como diz ainda Samantha, aplicando o seu materialismo nova-iorquino com divertida contundência: "Esta é primeira vez na história de Manhattan em que as mulheres têm tanto dinheiro e poder como os homens. E ainda o luxo de uma igualdade que permite tratar os homens como objetos sexuais.".A metódica e perversa simetria do cânone machista, ainda que escassa para caracterizar as muitas atribulações sentimentais das quatro heroínas, envolve algumas deliciosas considerações que dificilmente poderemos encontrar em qualquer ficção contemporânea. Lembremos apenas o desabafo da empreendedora Samantha quando vê pela primeira vez o mesmo John Preston que irá enredar Carrie nas malhas do amor. Planeando a sua estratégia de predadora sexual, diz Samantha: "Estás a ver aquele tipo? É o próximo Donald Trump!".Outros tempos. Sem esquecer a presença de uma marca iconográfica que contemplamos com um misto de nostalgia e angústia. A saber: o World Trade Center. Na verdade, as Torres Gémeas surgem no genérico de O Sexo e a Cidade, do começo até ao 12.º episódio da quarta temporada, emitido a 12 de agosto de 2001; no episódio seguinte, estreado pela HBO alguns meses mais tarde, a 6 de janeiro de 2002, as torres desapareceram..O Sexo e a Cidade possui, assim, qualquer coisa de sintoma de uma dinâmica que, sendo ostensivamente sexual, é em última instância de natureza cultural. A acumulação de peripécias sexuais não anula, antes parece reforçar o facto de as quatro protagonistas viverem numa espécie de assombração provocada pelo mito ancestral do amor como redenção. Quanto mais se multiplicam os episódios sexuais, mais o amor se projeta num ponto de fuga utópico - a revolução sexual que lideram parece sempre adiada pela atração ancestral de algum resquício de romantismo..De um ponto de vista dramático, esse permanente confronto entre "sexo" e "amor" define os limites temáticos de O Sexo e a Cidade, ao mesmo tempo que lhe empresta um bizarro valor de testemunho. Ficando pela história da televisão made in USA, talvez se possa dizer que a série completa o arco de transformações simbólicas que teve um momento decisivo numa outra série, concebida por Edward Zwick e Marshall Herskovitz, lançada cerca de uma década antes, mais exatamente entre 1987 e 1991: Thirtysomething, entre nós conhecida como Os Trintões, faz o retrato de um grupo de adultos nascidos no pós-Segunda Guerra Mundial (baby boomers), afinal bloqueados nos sonhos de uma igualdade "natural" que, de facto, nem sempre soube repensar, como era seu projeto, as relações entre masculino e feminino..Nesta perspetiva, dir-se-ia que O Sexo e a Cidade existe como uma narrativa equidistante de Thirtysomething e esse outro fenómeno de afirmação feminina que foi o romance O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding, publicado em 1996, na base de três filmes protagonizados por Renée Zellweger (o primeiro, com o mesmo título, lançado em 2001). Entre as angústias familiares, também sexuais, dos baby boomers e a solidão patética de Bridget Jones, as mulheres de O Sexo e a Cidade têm tanto de personagens realistas como de aventureiras de fábulas, testando incessantemente, com drama e humor, as fronteiras da sua própria utopia..Agora, com And Just Like That, passados 17 anos, já na casa dos 50 - Sarah Jessica Parker e Kristin Davis nasceram em 1965, Cynthia Nixon em 1966 -, o trio de O Sexo e a Cidade procurará, por certo, contrariar o cliché do "envelhecimento" e das suas supostas barreiras temáticas e criativas. É uma tarefa em que estão bem acompanhadas, quanto mais não seja porque há muitos anos que uma atriz como Meryl Streep começou a chamar a atenção para o exílio forçado das atrizes mais "velhas" (tendência que, felizmente, tem sido contrariada)..Como diz o título original, a nova série quer-se "assim do nada" ou "assim sem mais nem menos". Lamentavelmente, o título não está traduzido, aumentando a lista de "americanismos" evitáveis em que se move o nosso marketing. Já era tempo de acreditarmos que não precisamos de nos exprimir em inglês para lidar com tudo aquilo que aproxima (ou afasta) os homens e as mulheres. Incluindo o sexo..dnot@dn.pt