Aos 41 anos, Maria Berasarte continua imersa em novos projetos profissionais, mantém contacto e colaborações com artistas portugueses e o fado continua no seu coração. Representa para ela uma forma de se libertar e apesar de no seu novo repertório não encontrarmos fados, "é uma marca que ficou em mim"..Conhecida como a "Voz nua", Berasarte fica feliz ao ver que a relação cultural entre Espanha e Portugal é cada vez mais forte e agrada-lhe a nova etapa que vivem as relações ibéricas, "mais unidas, de forma natural"..No próximo sábado dia 26 os espanhóis poderão ouvir no Teatro Real três grandes fadistas portuguesas: Fábia Rebordão, Cuca Roseta e Ana Moura. Madrid rende-se ao fado..Como surgiu a oportunidade de uma artista espanhola cantar fados? Eu estudei canto clássico desde os 13 anos. Com 17 fui para Madrid, para a Escola Superior de Canto. Na televisão, ouvi a voz de Amália, sem saber que era ela que estava a cantar. Adorei e com amigos portugueses aprofundei mais o fado. Tinha algo de que eu gostava, que me libertou. A primeira vez que cantei fado foi num aniversário, rodeada de pessoas a cantar flamenco. Eu comecei a cantar Estranha Forma de Vida e pediram-me para continuar. Foi assim, estavam sempre a pedir-me para cantar fados. Com o tempo, pensei gravar um disco a solo e optei pelo fado. Falei com várias pessoas e apoiaram a minha ideia. Eu não me sinto fadista, sou cantora, mas descobri uma parte de mim na música portuguesa. Gostava e ouvia a música de José Peixoto, dos Madredeus, da Maria João... Eu abordei o disco de uma forma muito íntima, personalizei muito os temas. Foi uma aposta arriscada mas levou-me a lugares impensáveis. Por exemplo, fui chamada para o concerto dos 45 anos de carreira de Carlos do Carmo, no Pavilhão Atlântico em Lisboa, e foi incrível..Como preparou os temas para o disco de fados? O disco é todo de fado tradicional de Lisboa e as letras foram feitas para mim pelo Tiago Torres da Silva com arranjos de José Peixoto. A música de Filipe Raposo, Carlos Bica, e ouvi mais de 200 fados tradicionais. Foi a minha grande proeza mas depois não me centrei nos fados, fiz outras coisas. Mas pediram-me muito para cantar em português..Sentiu vertigens com este projeto? Quando fazes o teu primeiro disco, pões nele o teu corpo e a tua alma, és vulnerável. Em todas as entrevistas tentei explicar que o fado passou por mim, o disco era uma forma de agradecimento..Foi bem recebido pela crítica? Por uns sim e por outros não. Tive críticas muito boas mas sei que em Portugal nem todos gostaram. Temos de recordar que quando o disco foi editado, em 2009, o fado estava a ressurgir, a buscar a sua reafirmação em gente nova. Todas as fadistas vestiam de preto, à exceção da Mariza. Eu quis mostrar que vinha de outro lugar, introduzi bateria e percussão. Penso que se o disco tivesse sido lançado no ano passado teria provocado outra reação.O que aprendeu com o fado? Ensinou-me a expressar as minhas emoções, o que está dentro, que guardas e não sabes que tens. Precisei do fado para libertá-las..E como é cantar fado perante o público espanhol? Foi algo muito natural. As pessoas não sabiam nada do fado, eu explicava, era muito educativo. O disco marcou o meu percurso porque foi por causa dele que me chamaram para outros projetos..Já disse adeus ao fado? Sim, mas está no meu coração. Não sinto que faça parte de um tipo de música. Agora estou muito focada na música basca. Mas penso que sempre que canto ouve-se, de longe, o fado. É a marca que ficou em mim..Quando descobriu Amália? Foi nos anos 1998, 1999. Amália ia além da natureza, tinha uma força sobrenatural. É comparável a Camarón de la Isla ou Lola Flores. Com estilos muito diferentes mas são pessoas que marcam tanto que fazem esquecer o passado. Têm uma influência muito grande e deve ser explorada. Como disse, ouvi muitos fados tradicionais e muitos dos fados do meu disco são inspirados nos dela. Por exemplo, Todas Las Horas Son Viejas inspira-se no fado Carmencita de Amália..YouTubeyoutubeonW2GZUawAs.Os espanhóis conhecem bem o fado? Noventa por cento dos espanhóis adoram fado porque lhes lembra Lisboa, o Porto... É uma forma de viajar até Portugal. Mas não sabem nada sobre o fado. Agora há uma paixão dos espanhóis por Portugal, todos querem ir lá ou viver lá. Adoro que exista este sentimento..Há uma maior relação ibérica? Estamos numa fase muito diferente depois de termos vivido muito afastados, sobretudo para dois povos irmãos. Apesar de termos vivido situações muito parecidas, não estivemos unidos. Agora é uma etapa nova, com mais coisas em comum, como é o caso do carinho e do respeito pela cultura..Como viveu o confinamento? Estive em San Sebastián. Foi um choque. Ia ter um ano muito bom, com muitos concertos, e ficou tudo cancelado. O último que fiz foi no Festival Arte Sacro em Madrid, em março, onde tive um espaço dedicado a Amália. Graças ao meu espírito, consegui sobreviver e ter novas esperanças. Tenho estado focada num projeto com música da minha terra, estou a investigar a sua origem. E estou também a preparar um disco com o argentino Ariel Abramovich. Tenho sorte porque nesta fase difícil para todos tenho várias atuações programadas. A melhor estratégia nestes momentos é inspirar as pessoas: a música é medicina.