No ano de 1729, estando Maria Bárbara de Bragança para casar com Fernando VI de Espanha, dispôs a princesa que, no séquito pessoal que levaria para Madrid, figurasse Domenico Scarlatti. Nove anos antes, o músico italiano chegara a Lisboa, vindo de Roma, para continuar o seu trabalho de composição, mas também para se encarregar da educação musical da infanta de Portugal que viria a ser Rainha de Espanha e uma melómana de exceção.."Omnipresente na música portuguesa do século XVIII", diz Massimo Mazzeo, maestro da orquestra de música barroca Divino Sospiro, "Scarlatti mostra também, pelos anos que passou em Portugal, como este país foi um centro cosmopolita de difusão e produção musical sobretudo nos reinados de D. João V e seu filho, D. José I.".Criada em 2003 e sedeada, em regime de residência artística, no setecentista Palácio Nacional de Queluz, a Divino Sospiro inicia esta semana, no Luxemburgo (com a soprano Ana Quintans) uma tournée internacional, que os levará ainda a várias cidades francesas, mas também a Milão, Halle (na Alemanha), Malta, Metz, Sevilha e Bruxelas. Isto sem esquecer Portugal, já que a 13 de novembro, no Palácio de Queluz, e 4 de dezembro na Igreja do Menino Deus, em Lisboa, apresentarão o concerto Cosmopolitismo da Música Barroca Portuguesa, com obras de Carlos Seixas, Abade da Costa, Pedro António Avondano e Vivaldi. Neste caso, acompanhá-los-á a soprano Ana Vieira Leite..A escolha deste repertório prende-se, explica o maestro, com o desejo de mostrar como, nesse século que haveria de ser das Luzes, mais tarde da Revolução Francesa e também de Bach e Mozart, Portugal foi protagonista: "Num século em que os músicos circulavam pelas cortes europeias, de São Petersburgo a Lisboa, com alguma facilidade, Portugal desempenhou um papel de vanguarda. Em grande parte, isto deve-se à iniciativa de D. João V e da sua mulher, a Rainha Maria Ana de Áustria. Seria, através dela, que cá chegaria a ópera e também muita música de corte enquanto o rei preferia a música sacra que tinha no Vaticano o grande centro." Assim, precedido já por uma reputação de excelência, viria de Roma, Domenico Scarlatti: as peças integradas neste novo programa da Divino Sospiro são de músicos que, de algum modo, estiveram relacionados com o italiano: Carlos Seixas, Francisco António de Almeida, Pedro António Avondano e Sousa Carvalho..Musicóloga, uma das violinistas desta orquestra, a búlgara (mas a falar um português invejável) Yskrena Yordanova diz-nos que só muito recentemente se descobriu que "Francisco António de Almeida ainda estudara com Scarlatti em Roma, quando o rei o mandara prosseguir estudos, o que é um dado muito interessante.".A investigação e a recuperação de património musical deste período é, aliás, um dos objetivos da Divino Sospiro, que este ano levará ao seu público uma peça com origem madeirense que provavelmente nunca fora interpretada. Entusiasmado, Massimo esclarece: "É uma obra do Abade Pereira da Costa, que faz parte de um núcleo de 12 concertos instrumentais. O facto de demonstrar algumas influências de Corelli não deixa de ser impressionante porque nos mostra como até um território insular fazia parte da rede da circulação de músicos e composições." De resto, para o maestro não há melhor exemplo do protagonismo dos portugueses nestas redes musicais do que o facto de ter sido no Rio de Janeiro, em 1821, que pela primeira vez se ouviu no continente americano a ópera de Mozart, Don Giovanni. "Uma obra-prima do engenho humano só comparável a algo como as pirâmides do Antigo Egipto", diz..Nos repertórios desta temporada constarão ainda outras peças, que não sendo nacionais, falam do que seria a influência portuguesa noutros ambiente:" São peças pouco conhecidas porque, também nestas coisas é o mercado que dita a sua lei, e os programadores preferem ouvir 200 vezes a mesma peça de Vivaldi do que descobrir coisas diferentes." Esta aparente falta de curiosidade não é o único aspeto que diferencia o atual meio da música barroca daquele em que viveram Scarlatti, Avondano ou Carlos Seixas. Na Europa comunitária, em que as distâncias se vencem com muito maior facilidade, Massimo encontra uma certa estranheza pelo facto de dirigir uma orquestra portuguesa composta por músicos de várias nacionalidades e línguas, unidos pela linguagem da música. "Não é assim noutros países em que há orquestras barrocas. Nas francesas só há franceses, nas alemãs só há alemães e por aí fora." A violinista italiana Elisa Bestetti considera que esta perplexidade alheia contraria o espírito setecentista das orquestras barrocas: "Na orquestra criada por iniciativa de D. João V havia italianos de Génova, Florença e Roma (hoje temos de Milão, Roma, Sicília) mas também franceses, alemães, portugueses. E era assim por toda a parte.".Depois de ano e meio de movimentos condicionados pela pandemia, do sofrimento que foi trabalhar sem público, o que significa para a Divino Sospiro voltar à "estrada"? Emocionada, a violoncelista Rebeca Ferri fala da "tristeza que foi fazer um concerto para uma só pessoa" e como agora só espera "que o pesadelo tenha terminado". Partilhando naturalmente estes votos, Massimo Mazzeo sente que "o público regressou com uma concentração que não tinha, talvez porque passou a valorizar mais o ato de assistir a um espetáculo. "Já nem os ouço tossir", brinca..dnot@dn.pt