A americana que foi à China ver a avó morrer

Lulu Wang é a realizadora de <em>A Despedida</em>, vencedor do Globo de Ouro de Melhor Atriz, para Awkwafina. Em Zurique, a cineasta falou com o DN e explicou como nasceu este conto de fadas do cinema americano independente.
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Um pequeno grande filme para aquecer os corações. Foi assim que A Despedida, de Lulu Wang, em janeiro passado, saiu do Festival Sundance e tornou-se uma das vendas mais badaladas da temporada. Uma comédia dramática que foi muitíssimo bem recebida pela imprensa americana e que ainda neste fim de semana deu o Globo de Ouro de Melhor Atriz Comédia/Musical a Awkwafina, celebridade de ascendência americana que tinha dado nas vistas em Ocean's 8 e no bem divertido Asiáticos Doidos e Ricos, sucesso surpresa nos EUA. Com alguma boa vontade, poder-se-á dizer que este é o grande caso de afeto do cinema indie americano.

Um pouco à boa maneira de Comer, Beber, Homem, Mulher, de Ang Lee, e O Clube da Sorte e da Alegria, de Wayne Wang, filmes dos anos 1990, A Despedida centra-se na dinâmica de uma família chinesa com laços nos EUA. Awkwafina é uma jovem já nascida nos EUA que regressa à China onde tem a avó a morrer com um cancro no pulmão. O pretexto para a visita é um casamento de um dos parentes mas a jovem quer sobretudo despedir-se da avó, alguém que representa a sua ligação com a herança chinesa. O detalhe, nada pequeno, é que ninguém tem coragem para dizer à avó sobre o diagnóstico do médico - a idosa continua sem perceber que pode estar a ser alvo de uma despedida.

Em setembro, em pleno Festival de Zurique, Lulu Wang, a realizadora, confessava ao DN que esta é a sua história e que aquela é a sua avó: "A minha mãe quando soube que iria fazer A Despedida ficou zangada e barafustou como é que podes vir a fazer um filme sobre a cultura chinesa!? Não sabes nada sobre isso! Por isso fiquei inicialmente com algum receio de não ser respeitadora para com a minha família. Antes de querer respeitar a nossa família, quis ser sempre verdadeira. Às vezes, não podemos ser respeitadores e verdadeiros ao mesmo tempo. Acabei por falar muito com todos eles e mostrar-lhes o argumento. Quis perceber se o que lhes poderia deixar desconfortáveis era mesmo verdadeiro. Explorei a fundo a cultura chinesa do ponto de vista da minha família."

Revelada no circuito independente em Posthumous (2014, inédito por Portugal), Lulu Wang assume-se como uma cineasta livre e reivindica um olhar único feminino. Sobre A Despedida, desfaz as dúvidas: "É mesmo uma comédia, mas é essencialmente um objeto sobre o ato de dizer adeus. Cada vez que vou à China tenho de estar preparada para me despedir da minha avó. Sim, apesar de tudo ainda está viva! E o filme faz essa pergunta filosófica: às vezes mentir não faz mal? Ainda agora não consigo responder. A verdade é que a minha avó vive muito mais do que aquilo que pensávamos. Como americana, acredito sempre que a verdade é o caminho, mas depois olho para o exemplo da minha avó - caramba, ainda está viva e não sei realmente se a mentira não terá ajudado... Sou apenas humana, não tenho as respostas. Quero deixar o público em conflito moral. Muitos ocidentais vão pensar que esta mentira em torno da minha avó é erradíssima."

Lulu foi também muito explícita na justificação do sucesso do filme nas bilheteiras americanas junto da comunidade asiática-americana: "O filme é muito emocional para todos os que são descendentes de asiáticos. Muitos de nós nunca fomos retratados no grande ecrã! Os filmes que a nossa geração apanha são sobretudo ou asiáticos ou americanos. Os filmes chineses já não nos dizem nada e os americanos nunca acertam na forma como retratam a parte cultural. Nos primeiros cinco minutos vemos uma pessoa em Nova Iorque ao telefone a falar com a avó em chinês, enfim, qualquer emigrante é capaz de se identificar com isso. Apanhei muita gente asiática a chorar depois do filme, gente que me garantiu que nunca tinha sentido tanta proximidade num filme."

A A24, o pequeno estúdio do filme, investiu algum dinheiro em promoção para a temporada dos prémios. Mas será que levar um filme para os Óscares ou Globos de Ouro passa essencialmente por uma questão de dinheiro? "É a primeira vez que estou numa dessas campanhas e não sei como tudo é gerido. Talvez seja como a política: tudo passa pelo dinheiro. Este é um filme pequeno e, para mim, o importante é fazer parte de uma conversa que engloba nomes como Tarantino ou Scorsese, cineastas que foram alvos do meu estudo. Fico feliz por pertencer a uma nova geração de cineastas que inclui mais pessoas de cor e mais mulheres. Não seremos apenas uma moda, vamos ficar aqui para sempre! Cada ano seremos mais e estaremos a perpetuar uma tradição de cinema, mas vamos fazê-lo de uma maneira que inclua mais vozes", diz a cineasta que acrescenta que o caso de Asiáticos Doidos e Ricos ajudou a que o lugar dos asiáticos no cinema americano fosse mais notado: "Esse sucesso, de alguma forma, coloca na cabeça de quem manda em Hollywood que os asiáticos agora estão na berra e que não pode parar por aqui! O fundamental nestas histórias de diversidade cultural é que tenham sempre um lado humano! Espero que agora não escolham personagens asiáticas só porque alguém disse que é preciso mais um asiático... O meu filme é um pouco diferente de Asiáticos Doidos e Ricos, é mais Asiáticos Doidos e Não Ricos. Brinco com isso mas só consegui financiamento porque fiz um podcast sobre a minha família e mais de quatro milhões de pessoas o ouviram! Foi por isso que os meus produtores perceberam que o filme poderia conectar as pessoas sob o ponto de vista humano."

Feito com uma suavidade que se confunde com um recado de amor de uma avó, The Farewell é uma boa surpresa. Nesta altura, para quem protesta acerca da ausência de mulheres cineastas na temporada dos prémios, Lulu Wang e Greta Gerwig são sempre aquelas que se podem tornar símbolos de uma injustiça. Mesmo assim, não seria muito surpreendente se a avó interpretada por Zhao Shuzeng acabasse por vir a ser nomeada ao Óscar de Atriz Secundária nas nomeações de segunda-feira.

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