A minha bola de cristal
O The New York Times está a publicar uma série de estudos para tentar perceber se a crise do coronavírus fará dos Estados Unidos da América um país mais forte, mais justo e mais livre. O propósito do trabalho já encerra em si mesmo uma conclusão, ou seja, assume-se que a mudança é inevitável. Não pretendo, longe disso, questionar as credenciais científicas dos autores, mas partir de uma conclusão que ninguém é capaz de provar ou prever com uma elevada margem de segurança parece, no mínimo, ousado.
Curiosamente, num dos primeiros estudos divulgados, os autores mostram-se surpreendidos com um dos resultados, que eles apelidam de paradoxal: a pandemia aumentou os sentimentos de solidariedade entre os americanos, mas também os levou a aceitar melhor a desigualdade atribuindo-a à sorte. Digamos que são exatamente os impactos das várias sortes na vida das pessoas que a solidariedade visa equilibrar. Não entendo como resultados destes não levam os especialistas a pensar que momentos destes são por definição de incerteza, dúvida e confusão.
Não perceber que sondagens de opinião são fotografias do presente e que só podem detetar tendências se existir uma sequência - impossível de alcançar se as circunstâncias são conjunturais -, é estranho; tentar tirar conclusões sobre consequências estruturais para o futuro no pico de uma crise é só disparatado.
As mais profundas e sapientes análises sobre o futuro pós-covid-19 estão por todo o lado e sempre com a mesma conclusão: o mundo que conhecíamos acabou e vem aí um novo. Não se chega sequer a admitir que pode não ser bem assim ou que talvez seja cedo para conclusões, não senhor, é o fim do mundo como o conhecíamos (se os REM cobrassem direitos de autor era uma chatice) e vai ser assim e assado.
Os discursos variam ao sabor da personalidade, interesses e convicções dos autores. Há para todos os gostos. Quem assegure que as pessoas nunca mais se cumprimentarão como até hoje se cumprimenta- ram, não haverá mais beijos e abraços, e quem afirme mesmo que o sexo nunca mais será o mesmo (que quererá isto dizer?); quem tenha descoberto que esta crise vai aumentar o nacionalismo, acabar com o multilateralismo e o protecionismo regressará (deviam andar muito distraídos); que a globalização morreu; que o Estado vai crescer muito em todas as áreas e tornar-se o big brother; que finalmente vamos dar ouvidos aos ecologistas e parar de poluir ao ritmo que poluímos (não percebo a relação com o vírus, mas se ajudar eu também faço coro), que as relações económicas entre Estados vão mudar de forma radical; que vai voltar a agricultura de subsistência e que a industrialização vai regressar em força aos países que há muito deixaram de o ser; que o veganismo vai vencer, etc. etc. etc.
Havendo muitos catastrofistas à solta, o que há, sobretudo, é a expressão de muitos desejos e vontades de implementar agendas políticas, económicas e sociais - e, claro, aquela vontade imparável de concorrer contra astrólogos e videntes. As crises são sempre um território fértil para a afirmação de princípios, a maioria das vezes alheios à crise em si mesma, a de 2008 e o que se seguiu em Portugal são um bom exemplo.
Confesso a minha tentativa, também. Ainda na semana passada aqui exprimia a minha vontade de as pessoas se tornarem mais solidárias vendo que são os mais pobres de nós a mais sofrer com esta pandemia e que isso nos deveria fazer lutar contra a desigualdade. Aliás, até nas pessoas que repudiam a conversa do "mundo mudou" isso fica patente. Na sua grande maioria, aproveitam para combater politicamente as agendas, imaginárias ou concretas, dos que exprimem vontades aproveitando a crise. No fundo, fazem o mesmo.
Tanto estes como os "isto não vai ficar pedra sobre pedra" são um indício avançado de que não há sinais de que grandes mudanças a caminho. Se ninguém mudou de convicções ou a forma de olhar para a comunidade, não vejo como é que esta mudará. Mudar o mundo sem mudar as pessoas e as suas crenças é uma equação muito complicada.
Os catastrofistas são uma classe à parte, mas tão comuns que até surpreende causarem espanto. Estas alturas fazem que saiam debaixo das pedras da indiferença a que a normalidade os vota. Não contam.
O facto é que ninguém sabe muito bem o que se vai passar a seguir. Mas eu também tenho uma bola de cristal e a minha mostra, num cantinho pequeno, umas emissões especiais do canal História.
A humanidade sempre venceu este tipo desafios, com mais ou menos sofrimento, e não foram eles que fizeram que as nossas relações económicas, sociais e políticas se alterassem de forma substancial. Pode ser que tenham contribuído para fenómenos de mudança, mas nunca foram decisivos.
A minha bola de cristal também me diz que a humanidade nunca esteve tão bem preparada para combater estes ataques.
Vamos ganhar ao vírus porque somos mais inteligentes do que ele, porque desenvolvemos as nossas capacidades científicas até a um nível que há meia dúzia de gerações era inimaginável. Porque tendo nós um mundo tão cheio de problemas, conseguimos mesmo assim ter uma ciência que nos vai permitir vencer mais esta ameaça.
Nada mudará que já não estivesse prestes a mudar, porque a chamada normalidade, ou seja, a vida com vacinas e tratamentos contra este vírus, chegará a tempo de não provocar mudanças estruturais nas comunidades. Ficará tudo razoavelmente na mesma, e isso serão boas notícias. Revoluções causadas por pessoas assustadas ou por vírus nunca são boas.
É o que a minha bola de cristal diz.