O feriado do padroeiro de Barcelona, Sant Jordi, é o grande dia para os escritores, livreiros e editores da Catalunha. Nesse 23 de abril, os homens oferecem rosas às mulheres e elas, em troca, livros, ou seja, vende-se um milhão e meio de exemplares de todos os géneros literários graças ao santo. Mas, fora desse dia surreal, a realidade é bastante diferente e os autores catalães veem o seu mercado muito restringido em número de vendas devido à língua em que escrevem e que cria uma barreira à difusão de uma literatura mito viva..O principal bloqueio à difusão da literatura catalã são os editores de Madrid, porque recusam a maioria das novidades idas da Catalunha e poucas são as traduções que publicam. Uma situação que agora, após as lutas independentistas, tornou-se ainda maior. Quem o diz são os autores que nesta semana estão na 21.ª edição do maior encontro literário português, o Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim, onde uma delegação de escritores catalães e elementos do Institut Ramon Llull "acampou" para furar o bloqueio castelhano aos seus livros..São vários os escritores presentes, entre os quais estão Marta Orriols, Melcior Comes, Laia Martínez, Najat El Hachimi e Clara Usón. A primeira e as duas últimas diferenciam-se dos restantes pois já conseguiram ser traduzidas para o espanhol e daí conquistarem várias traduções no estrangeiro. Se para Orriols foi logo à segunda obra, Aprender a Falar com as Plantas, já Clara Usón sentiu que o seu mais recente romance sofreu com o tema que escolheu, uma crítica à monarquia, e não repetiu as entrevistas habituais aos grandes jornais espanhóis, como o El País e o El Mundo. Melcior Comes aguarda a primeira tradução para castelhano do seu Sobre Uma Terra Impura para ver o que acontece ao romance que já lhe deu três prémios..A questão das lutas pela independência não fugiu às perguntas nas entrevistas que deram ao DN, e Laia Martínez chega mesmo a dizer que "já penso como a minha avó: a independência da Catalunha não será no meu tempo". Esta situação de impasse político que lá se vive tem uma reação muito parecida dos restantes membros da delegação catalã, como a de Marta Orriols: "A luta pela independência da Catalunha foi mais uma situação emocional do que política.".O catalão é falado por dez milhões de pessoas, na Catalunha, nas Baleares, no País Valenciano e em Andorra. É uma língua que há poucas décadas era proibida apesar de haver referências anteriores a 1359 em Espanha..A delegação catalã não está no Correntes d'Escritas por acaso, é que a Póvoa de Varzim quer fazer parte das Cidades Criativas da Literatura da Península Ibérica, tal como Barcelona, Granada e Óbidos. Na edição anterior tinha estado no encontro uma delegação da Galiza que rivalizou com a imponente da Catalunha. Para o vereador da Cultura da cidade, Luís Diamantino, quando se usa a palavra "imponente", ela também pode ser utilizada com a anterior representação galega: "Neste ano, tivemos um relacionamento muito próximo com Barcelona e reunimo-nos com o Institut Ramon Llull, que é o responsável pela promoção da literatura catalã, porque estamos a preparar uma candidatura à UNESCO para sermos Cidade Criativa. A nossa intenção com estes convites é dar destaque a nichos de literatura que existem na península pois estamos sempre abertos a ter relação com escritores de línguas que emanam da península. O Correntes d'Escritas é um espaço de liberdade e achamos que a cultura não tem fronteiras.".Para a responsável do Instituto Ramon Llull pela delegação catalã, Izaskun Arretxe, a presença no Correntes acontece porque a delegação do governo catalão que está em Lisboa considerou que era importante marcar presença num "festival de autores de língua portuguesa e espanhola". E existia uma questão fundamental a reparar: "Consideramos que, apesar de sermos literaturas tão próximas, olhamo-nos muito pouco." A principal razão, diz, é por "termos a literatura castelhana pelo meio, além de historicamente nunca ter havido muitos laços entre Portugal e a Catalunha. Quantas traduções houve nos últimos dez anos de catalão para português? Apenas 78, muitas das quais são de literatura infantojuvenil. De fora das traduções estão muitos autores interessantes e o mesmo se passa ao contrário, pois é muito pouca a literatura portuguesa que nos chega. Creio que o Correntes d'Escritas pode diminuir este défice histórico"..Encontrar editores portugueses para traduzir a literatura em catalão é um dos principais interesses da delegação: "Agora falta aprofundar o conhecimento entre os dois lados. Sei que é importantes que os livros estejam traduzidos em castelhano, o que nem sempre acontece. Melcior Comes, por exemplo, é um autor extraordinário, mas os seus livros não estão traduzidos em castelhano, o que dificulta a tradução para português. O caso de Marta Orriols é muito diferente porque teve um boom internacional e já foi traduzida em dez línguas.".Quando se pergunta sobre o facto de o catalão ser uma barreira linguística, Arretxe privilegia a necessidade de se fazer traduções em castelhano para depois tentar que estes autores catalães sejam mais divulgados: "O castelhano é uma língua hegemónica e todas essas que convivem com outras mais pequenas geram dificuldades. O catalão nem é uma língua minoritária, afinal é de 12 milhões de pessoas. Ao falar com alguns editores portugueses, também reparei que as dificuldades são semelhantes às nossas no caso das tiragens e das vendas.".A recente convulsão política e social que se viu na Catalunha, no entanto, aumentou a atenção do mundo para a literatura catalã. Se antes o trabalho do Instituto Ramon Llull passava muito pelas feiras do livro internacionais, é "evidente que a situação política amplificou a nossa literatura e gente que já nos conhecia começou a pensar um pouco mais em nós"..Arretxe, contudo, evita reconhecer que a relação entre a situação política que correu mundo esteja a ter uma ligação muito direta com a função da instituição: "A literatura catalã está num momento bastante emergente, com muitos autores jovens e muitas mulheres que fazem primeiras e segundas obras de grande qualidade literária, além dos autores que já temos e que são conhecidos." Ao insistir-se no empurrão dado pela crise política, acaba por aceitar que seja mais fácil internacionalizar os autores catalães: "Creio que uma parte sim, porque fazem essa relação, mas não há vínculo entre o interesse político e o literário. Podem lembrar-se de nós por razões políticas, mas é principalmente por critérios literários.".À pergunta sobre se estes tempos confusos inspiram os escritores catalães, Arretxe confirma o interesse: "Já começa a haver na não-ficção muitos livros sobre os temas políticos, na ficção vão surgindo autores que dentro das suas tramas literárias incorporam de diferentes maneiras o ambiente político. Pastor acabou de publicar um thriller em que surge a questão política catalã em pano de fundo, Teresa Solana também o faz no seu último policial. Ainda não é a parte central do argumento, mas creio que com o tempo vai aparecer mais.".Melcior Comes: cada livro tem um prémio mas não existe em castelhano.Publicar em Portugal é uma das razões para o escritor Melcior Comes vir ao Correntes d'Escritas. "Já conversei com dois editores, falei-lhes do livro que funcionou muito bem na Catalunha e, pela primeira vez, está a ser traduzido para castelhano", anuncia. Já recebeu três prémios ao fazer um relato de uma família de Maiorca que triunfou na produção de sapatos: "Não é um livro catalão, é um romance europeu, que conta a história dessa família maiorquina com muitas ligações a Barcelona e a Madrid. Uma família poderosa que tem ligações ao regime franquista.".Um dos seus últimos artigos na imprensa tem por título "A esperança é um erro". Explica: "Às vezes esperamos muito e de tanto esperar desesperamos. Tinha que ver com a atualidade, pois a independência projeta-se sempre no futuro e isso gera uma grande insatisfação nos catalães." O tema "independência" está sempre presente nos autores que vieram até à Póvoa e rapidamente o tema ocupa a conversa: "Creio que a Catalunha está mal governada por Espanha; necessitaria de mais autodeterminação e assim a independência não seria tão precisa. Acho que neste momento, numa parte dos catalães, decresceria o sentimento independentista se tivessem um estatuto à altura das suas necessidades. De todos os modos, ao vermos que outras democracias avançadas decidem esta situação mediante um referendo, o adequado seria fazê-lo e perguntar às pessoas se preferem um Estado próprio e melhorar o seu governo ou ficar com a situação que temos. Mas Madrid não quer nem falar disso, daquilo que se fez na Escócia ou no Quebec. São anomalias que resultam de décadas de ditadura em que votar não era norma.".Acrescenta que com todos os dirigentes catalães presos não se pode fazer muito: "É verdade. O debate agora já não passa por conseguir um referendo ou a autodeterminação, mas a restituição da situação anterior através de uma amnistia o da alteração das leis de forma a permitir a sua liberdade. Prender os doze principais líderes do país é uma coisa aberrante.".A participação dos escritores na vida política é indispensável para Comes: "Sim, todos temos um papel público muito importante porque escrevemos nos jornais, participamos nos programas de rádio e de televisão. Influenciam muito, são criadores de opinião e todos tentamos encontrar argumentos para acalmar a situação e pensá-la de uma maneira clara.".Quanto à presença na literatura dessa crise, Comes considera que é cedo: "Não há romances sobre isso, afinal só passaram dois anos e o tema não teve o seu fim. Quando tudo acabar é que poderemos interpretar a realidade." Esse relato será, afirma, "mais correto por parte dos escritores do que pelos historiadores; desde sempre que tal acontece pois somos mais capazes de captar como viveram as pessoas no preciso instante em que tudo isto aconteceu, enquanto os historiadores falarão dos factos, das datas, dos nomes"..Mesmo que ainda seja cedo, Melcior Comes é incapaz de estar a escrever e ignorar o tempo em que vive: "Sim, está tudo presente e incomoda. O que se passa com a literatura catalã é que ela é feita para um determinado país e certos leitores e este público está sempre a viver em tensão política." Também no estrangeiro, os autores catalães não podem ignorar o que se passa na Catalunha: "Querem saber o papel do escritor e tentamos explicá-lo. Tentamos não ser demasiado sectários e contar o que vimos. Não nos devemos vincular de uma maneira demasiado simples ao sim e ao não, antes ter um papel mais intelectual e tentar entender as duas posições. Vivemos num mundo muito politizado e todos têm intervenção no debate público, é o que vemos nos Estados Unidos de Trump ou na França de Macron. E os escritores devem tomar uma posição sobre estas situações.".A presença no Correntes d"Escritas representa um momento de exceção para Melcior Comes: "Descobrimos novos mercados, conhecemos escritores e vemos a força da língua portuguesa através de todos os escritores que vêm de outros países que a falam. Descobri autores de Angola ou de Cabo Verde sem estar à espera de os encontrar. Desconhecia. Conheço a literatura portuguesa através de Lobo Antunes, José Saramago ou José Cardoso Pires, bem como de Mia Couto e Gonçalo M. Tavares, e agora estou a ver outros que não sabia existirem. É um clima cultural que eu não tinha ideia de que existisse.".Também está a conhecer e a perceber como é o mundo editorial português, que espera ser bem diferente do espanhol: "Dentro do mercado espanhol há uma aversão ao catalão por se considerar que um escritor deve escrever em espanhol, se não o faz é marginalizado. É mais fácil para um escritor catalão atrair a atenção de um editor em Itália do que em Madrid. Há mais universidades que estudam catalão na Alemanha do que no resto de Espanha. É uma situação anómala poder ir à Alemanha falar dos meus livros mas não o poder fazer em Madrid.".Marta Orriols surpreende com êxito do primeiro romance.É a primeira vez que vem ao Correntes e Portugal promover o seu novo livro. Também porque essa situação não lhe era normal até há bem pouco tempo: "Sou uma autora muito novata e este é o meu primeiro romance após um livro de contos. Vivo este sucesso literário com muita esperança e respeito porque ainda não me podem pôr a etiqueta de escritor como se fosse um dos autores que admiro e já levam anos a partir pedra.".A delegação catalã deve-se ao que se está a passar na Catalunha: "Tem tido muito eco internacional, apesar de os meus livros não refletirem a situação, porque o que conto podia acontecer em qualquer lugar. No entanto, acho normal porque a cultura catalã, a espanhola e a portuguesa têm muitas coisas em comum e seria estranho que lessem autores argentinos e não a nós, catalães. É uma forma de estabelecer pontes entre culturas próximas e que se desconhecem em muito.".O seu romance trata muito da intimidade das personagens, num tempo em que essa forma de analisar está um pouco fora de moda e a situação política na Catalunha ainda por definir. O que não a impediu ser traduzida do catalão para o castelhano e de contar com várias edições e traduções noutros países. Considera que "o papel da literatura também é este no momento em que vivemos porque tudo está polarizado e, como leitora, não quero os extremos, além de achar que a linguagem do quotidiano pode explicar muito dos comportamentos humanos. Este é um momento importante para refletir sobre o mundo, onde tudo está a mudar muito depressa e a literatura pode ser uma paragem para pensar. Quando se escreve um livro tão intimista é errado pôr elementos muito realistas e atuais porque podem distrair o leitor. A situação política na Catalunha interessa-me, mas desfoca o leitor. É um momento político que acaba por influenciar toda a vida, foi um ano muito longo e uns meses muito revoltosos. Agora está mais tranquilo, mas quando se constrói uma personagem às vezes deve-se esquecer a realidade em volta.".Marta Orriols não se sentiu tentada a incluir a realidade política que a rodeava. No livro que está a escrever também não influi totalmente na vida das personagens: "Creio que haverá um reflexo do contexto político e social do país, a precariedade, gente preocupada e a forma como essas situações influenciam o dia-a-dia das pessoas. Não é o cenário principal, mas ignorar seria errado porque era virar a cara ao que se passa e que ainda deve durar muito tempo.".Escreve em catalão porque é a sua língua materna: "Somos catalães há muitas gerações, somos bilingues, mas a maior parte os escritores catalães escrevem em catalão porque é uma forma de reivindicar e porque é um legado cultural que, quando se escreve, é necessário para se falar desde dentro. Posso escrever em espanhol, mas custa mais. Há uma matriz que se perde sem a língua materna e agora, mais do que nunca, os escritores catalães necessitam de escrever na sua língua. Não só pelo momento político mas porque é preciso manter vivo o que é um tesouro.".Quanto à opinião sobre a independência da Catalunha, nota-se que Orriols também tem dúvidas: "Durante muitos anos saí à rua defendendo a independência da Catalunha, no entanto no último ano dei-me conta de que não se pode defender ou querer uma coisa quando por trás falta um programa completo ou percebemos que tudo o que aconteceu foi mais uma situação emocional do que política. Não quero ser independente porque se criou um ódio contra a Espanha, isso custa-me.".A poeta Laia Martínez reivindica o romântico."Sou uma poeta e vim à Póvoa de Varzim para apresentar os meus livros e fazer uma residência com outros três poetas. Sou tradutora de um livro de Patti Smith, que já vai na segunda edição em menos de um ano..." É assim que se apresenta Laia Martínez, para quem a poesia é o mais importante: "Numa ligação estreita com a música e muito na linha dos trovadores e dos declamadores, a poesia que se pode comunicar em voz alta. É o meu quinto livro de poemas desde que comecei, em 2009, e trato de diferentes temas, mas sobretudo o amor, a fé e a existência, em vários estilos.".O seu último livro intitula-se Vénus Volta e conta com uma métrica mais livre: "Tenho uma tendência para experimentar tipograficamente e este livro reivindica o romântico, aquele amor que acaba sempre mal, porque a poesia catalã tem muita força mas muitos poetas jovens estão desapaixonados e o estilo que praticam é muito depurado. A minha poesia vem muito de dentro e é-me inevitável escrever. Tanto no amor como na escrita devemos deixar de pensar nas categorias, nas instituições e na parte comercial e regressar àquela que é a parte mais animada de todo este processo criativo.".Ao dizer a palavra "animada" questiona-se a animação política da Catalunha: "É demasiado animada e influencia a minha poesia. Neste livro falo muito desta frustração ao ver que o nosso país é um país imaginário, que tem muita força de ideias e de espírito, mas está limitado por outro país e outro governo e assim não pode evoluir tão rapidamente ou tão bem como eu queria que acontecesse." Para Laia Martínez, o poeta precisa de liberdade absoluta: "Quando nos encontramos numa situação de censura, mesmo que encoberta, vamos rebaixando e diluindo o discurso. Nem sempre nos damos conta disso e é uma situação muito perigosa.".Sobre a participação dos escritores na situação política, Martínez considera que "o escritor tem de estar comprometido com o seu tempo e o seu mundo e o do escritor catalão está muito confuso. A escrita contribui para se imaginar de uma maneira diferente a solução dos problemas na Catalunha e no resto do mundo - agora os problemas são tão globais que o que se passa na Catalunha pode ter repercussões noutros países, e o contrário também"..Tem a literatura catalã sido aprisionada? "Sim , sempre esteve num estado de sobrevivência e um pouco à parte da literatura castelhana. Mas há muita criatividade, até no tempo dos meus avós, quando se tinha de escrever na clandestinidade e deixaram de publicar. Agora chegou o momento de recuperar esses textos que todos pensavam estar perdidos", diz..Quanto a falta de liberdade de expressão: "Não se nota de maneira oficial, mas existe. O escritor sabe que se escreve sob certos temas e num certo tom é-lhe impossível traduzir para o castelhano. Então, o que acontece é que o escritor, sem se aperceber, suaviza o discurso porque está interessado em que a sua obra seja conhecida outros lugares." É o que acontece com a presença no Correntes: "Pudemos vir aqui como uma literatura forte e apresentar independentemente de Espanha as nossas obras no nosso idioma, isso é muito importante. A nível cultural, a Catalunha necessita de um marco normativo que nos proteja o idioma e não podemos continuar submetidos porque essa situação afeta em muito o espírito de cada um. É uma situação que os espanhóis não entendem.".Quanto à independência da Catalunha, Martínez sente-se como a sua avó, que dizia: "Isso vai acontecer, mas eu não o verei.".Clara Usón: "As grandes vítimas do franquismo foram as mulheres".Clara Usón já está publicada em Portugal, onde acaba de lançar O Assassino Tímido, depois de ter publicado A Filha do Leste. O novo romance, tal como os anteriores, não pretende mudar o mundo: "Se o desejasse, então teria de escrever O Capital, a Bíblia ou o Mein Kampf!" O que relata agora é a memória de uma certa época espanhola, histórica e pessoal: "A transição do franquismo para a democracia. Sou uma filha da transição e vivi o início da democracia como um tempo cheio de ilusões e possibilidades. Éramos ricos em esperança, tudo era possível e só queríamos modernizar a Espanha. Queríamos ser europeus em vez de espanhóis.".A atual realidade espanhola não mudou assim tanto segundo Usón: "Ainda estamos em transição pois Franco deixou tudo bem amarrado. A Igreja Católica continua a ter muito poder, o Exército também e há a imposição de uma monarquia opaca. Pior, não se pode falar dessas instituições.".Clara Usón não veio integrada na delegação catalã, mas nasceu em Barcelona e é uma das representantes dessa cultura: "Não sou independentista, nem nacionalista, nem espanhola, nem catalã. É uma identidade geográfica a que pertenço devido aos documentos oficiais. O nacionalismo está na Catalunha como em todo o lado: no Brexit, por exemplo. Cria-se um inimigo: o imigrante, o espanhol ou o catalão." A sua obra é influenciada também pelo que se passa na Catalunha: "Todas as identidades nacionais assemelham-se e vejo-me refletida no que se passa com os nacionalismos.".Desta vez o tema que trata é o da exibição do corpo feminino e da transição: "Creio que não acabou a exibição do corpo feminino, basta ver o Instagram e o Facebook e como as jovens destas novas gerações são obcecadas com o seu corpo. As grandes vítimas do franquismo foram as mulheres. Achávamos que estava tudo feito e não percebíamos que a democracia era muito precária e com bastantes defeitos. Como escrevo no meu romance, tiraram-nos a fotografia de Franco e puseram-nos a do rei. O primeiro era opressivo e omnipresente, o segundo era um rei jovem, bonito e que olhava para outro lado. Logo descobrimos que olhava para as mulheres e os negócios um pouco obscuros, como todos os Bourbons!".É neste cenário que surge a muito jovem atriz Sandra Mozarowsky, que aos 15 anos começou a protagonizar filmes antes de cair de uma varanda enquanto regava as flores às três da manhã: "Dizem que se suicidou, diz-se que a suicidaram, que era amante do rei Juan Carlos... Nessa época havia uma parte muito escabrosa da transição, que era o cinema de destape, a máxima promessa de liberdade e de democracia. Em Espanha, éramos muito inocentes e ignorantes e achávamos que o fim da opressão era a mulher que não cobria todos os centímetros do corpo. E nos filmes de destape não se viam os decotes, mas os seios inteiros. Com o tempo demo-nos conta de que a utilização do corpo feminino mantinha-se. Foi um instrumento do regime para anunciar a mudança, deliberada. Ou seja, anunciaram a liberdade com a exposição do corpo feminino.".É uma escritora espanhola ou catalã? "Sou as duas coisas, mas escrevo em espanhol. Eu reivindico que a Catalunha tem duas línguas e não uma. Ter várias línguas é uma riqueza para a Espanha e não entendo como existe uma direita nacionalista que quer suprimir a outra língua", diz. Quanto à questão sobre se um dia haverá paz entre as duas línguas, Usón responde: "Depende dos políticos, porque eles utilizam a língua como arma política. Até lhe chamam política linguística, um conceito que é uma contradição pois as línguas servem para nos comunicarmos e não para derrotar inimigos."