A história do sem-abrigo filósofo que se tornou uma estrela da Internet
A mais recente sensação da internet na China é um sem-abrigo que cita filósofos e escritores clássicos como Aristóteles, Confúcio e Dante. Deram-lhe o nome de "Vagrant Master", mas Shen Wei, de seu verdadeiro nome, cansou-se da fama e de o procurarem e fotografarem como um macaco de circo. "Ninguém me procura com o coração", lamentou-se.
Abandonou o local a que chamava de casa há mais de 20 anos e deixou um papel: "O sr. Shen está exausto, tanto mental quanto fisicamente, e estará ausente por um tempo. Obrigado!"
A última vez que Shen, de 52 anos, foi visto estava a ser levado por um Mercedes-Benz branco e escoltado por um homem de meia-idade. Quando lhe perguntaram para onde ia, respondeu: "Vou procurar refúgio." Mas antes de entrar no carro que o levou não se sabe para onde, ainda houve um jovem que correu atrás dele para lhe pedir um autógrafo. E ele acedeu a dar-lho.
O Washigton Post conta que a mais recente atração da internet não é pois um gato selvagem, um empresário rico a acariciar os seus patos de mil dólares ou um coro infantil a cantar uma música dedicada à Huawei. Longe disso: é um sem-abrigo que não tem smartphone e muito menos conta em qualquer rede social. Mas é um homem culto e eloquente.As suas palavras têm sido gravadas por streamers ao vivo e os vídeos são compartilhados nas redes e vistas por milhões de pessoas.
Foram três meses de fama. E "Vagrant Master" ou "Master Shen", cansou-se, quis fugir do estrelato. "Não culpo ninguém, mas odeio a internet. A internet não me trouxe nada além de problemas."
Tudo começou quando surgiram vídeos curtos de Shen a citar filósofos e clássicos da literatura na plataforma Douyin. Era difícil às massas não ficarem espantadas com o homem de cabelo desgrenhado, barba grande e sujo que afinal é dotado e culto. Chegaram a comparar os seus discursos às pregações de Jesus.
O problema foi quando um vídeo deixou perceber, através de um sinal de trânsito, a localização exata de Shen. Estava-se em meados de março e a partir dai iniciou-se o martírio - o bairro Pudong, no distrito de Xangai, começou literalmente a ser inundado de gente que queria conhecer e ouvir as citações do sem-abrigo mais famoso da China, Liu Lang Da Shi, ("Grande Mestre Vagabundo"). A partir desse momento, os vídeos, transmitidos no Weibo, passaram a ter milhares de visualizações.
A toda esta história não e alheia a tendência chinesa em matéria de vídeos online. A China tem cerca de 830 milhões de utilizadores de Internet e mais de 70 por cento deles usam agora aplicativos de vídeo curto ou streaming ao vivo - o setor de vídeos curtos deverá ultrapassar 4,4 mil milhões de euros em 2020, explica o Washington Post.
E para atrair mais tráfego, essas aplicações, como o TikTok, Kuaishou e Vigo Vídeo procuram estrelas pop, artistas e grandes nomes de outros media. Ou histórias e protagonistas surpreendentes como Shen Wei.
Desde 17 de março que o nome "Shen Wei" liderou no mecanismo de busca chinês Baidu, e os posts do Weibo relacionados ao #VagrantMaster foram lidos por dezenas de milhões.
Todas as manhãs quando abria a porta de um escritório abandonado onde vivia, Shen já tinha uma multidão à sua espera. E sempre que abria a boca, dezenas de telemóveis e câmaras eram empunhadas para gravar e não perder uma palavra. Mal terminasse uma citação, era presenteado com aplausos e mais aplausos como se estivesse numa sala de espectáculos.
"Sei que me estão a tratar como a um macaco. Ninguém me veio ver com o coração puro. Fazem isto por dinheiro", chegou a lamentar-se. E a verdade é que logo surgiram pessoas que se quiseram aproveitar da situação: uma mulher que dizia ser sua namorada atraiu 400 mil seguidores em quatro dias depois de criar uma conta no TikTo; um jovem desempregado, que dizia ser seu filho, tornou-se um convidado regular em canais populares de transmissão ao vivo; um pedaço de papel com 10 palavras escritas por Shen foi vendido por mais de 11,5 mil euros num leilão online.
Os grandes media também viram o potencial e foram à procura da história de Shen. Descobriram que nasceu numa família relativamente abastada da cidade de Chengdu. Esteve entre a primeira geração de chineses após a Revolução Cultural que entrou na universidade, segundo contou o Diário Económico de Chengdu. Quando terminou o curso, trabalhou como auditor num departamento do governo distrital de Xangai.
Mas o seu comportamento "anormal" - que passava por exemplo por apanhar papéis nos contentores do lixo e dos pontos de reciclagem - levou a que fosse despedido. Foi hospitalizado duas vezes e, em 1995 decidiu viver, como um homem do lixo.
"Estava destinado a ser o homem do lixo. Admiro Gandhi e quero viver uma vida ascética como ele", disse Shen ao Red Star News.