A história de Diana e Jessica e de como as mulheres estão a comandar navios da Marinha

A 1.ª tenente Diana Azevedo está a comandar o navio patrulha NRP Douro e Jéssica Machado é a sua imediato. Fazem parte do grupo de 10 mulheres que a Marinha já tem em funções de comando nos seus navios, uma tendência que se está a consolidar com o número crescente de candidatas a oficiais
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Diana percorre com segurança e sem nunca se desequilibrar os estreitos corredores do NRP Douro, o navio patrulha que comanda há pouco mais de um mês e que, apesar de ancorado no porto do Funchal, balança freneticamente.

Ao seu lado está Jéssica, a sua imediato (os postos nas Forças Armadas ainda não mudaram de género), igualmente segura, mas admitindo que toma regularmente "gotas para o enjoo".

As duas mulheres pertencem a uma elite de oficiais militares escolhidas para o comando dos navios patrulha que fazem parte da frota da Marinha - atualmente há seis mulheres a comandar esta unidades navais e quatro como imediatos, num universo de 137 mulheres embarcadas (42 oficiais, 22 sargentos e 73 praças), segundo dados oficiais facultados ao DN pelo Ramo.

Aos 30 anos Diana Azevedo, 1.ª tenente, assumiu o topo da hierarquia no NRP Douro, um dos cinco patrulhas costeiros da classe Tejo, que tem como principais missões a fiscalização e controlo das águas sob jurisdição Nacional e a Busca e Salvamento Marítimo.​

A oficial tem sob sua responsabilidade uma tripulação de 27 militares (seis oficiais, cinco sargentos e 16 praças) durante os três meses e meio seguidos que estão no mar. "Não é complicado, cada um sabe bem a sua missão. Funcionamos como uma família, com respeito, disciplina e apoio mútuo", afirma a 1.ª tenente na pequena divisão que lhe serve de quarto e gabinete de trabalho.

Citaçãocitacao "Somos todos militares, não há diferença, nunca senti diferença, nem discriminação"

Diana tem consciência da relevância de ser uma mulher ao comando de unidades militares e de como isso significa uma evolução, embora lenta, na mudança de paradigmas - e no caso no NRP Douro ainda ter como braço direito outra mulher, Jéssica - mas, sem querer desvalorizar, garante que o género "não conta" para ali. "Somos todos militares, não há diferença, nunca senti diferença, nem discriminação", sublinha.

Conhece bem os cantos ao NRP Douro, pois em 2018 já tinha sido oficial imediato do navio, depois de ter assumido as mesmas funções no NRP Andrómeda e de ter estado dois anos a bordo, como guarda-marinha.

Nascida na Damaia, Amadora, sem ninguém militar na sua família que inspirasse ou instigasse a sua decisão, chegou a candidatar-se (e entrou) à licenciatura de Biologia Molecular na Faculdade de Ciências de Lisboa, mas entre ter uma vida a olhar para microscópios ou sentir o sol e vento da cara enquanto navegar pelos mares do planeta, a escolha foi a segunda e entrou na Escola Naval em 2008, aos 17 anos.

"Optei pela Marinha, sem dúvidas ou hesitações. Aqui conhecemos novos sítios, viajamos, temos funções diversificadas", assinala a oficial que se especializou em navegação.

Esta competência levou a que fosse escolhida para o cargo de chefe de serviço de navegação do NRP Sagres, o navio-escola, onde, em janeiro de 2020, começou ainda a fazer a viagem da volta ao mundo, no âmbito do programa das comemorações do V Centenário da Circum-navegação de Fernão de Magalhães, interrompida em maio por causa da pandemia.

"Tinha-me mentalizado para esta grande viagem, um ano no mar, as expectativas eram enormes, conhecer novos sítios, outros países, pessoas. Ainda fomos ao Brasil, Argentina e passamos, para uma paragem logística, na África do Sul. Em maio estávamos de volta a Lisboa", recorda.

Jéssica Machado, quatro anos mais nova, acompanha as palavras da sua superior hierárquica e reforça-lhe a opinião sobre ser "normal" e "nada surpreendente" ver mulheres ao comando dos navios.

Esta 2.ª tenente vinda de Alenquer, tinha entrado em gestão bancária no ISCTE quando apanhou de surpresa a família ao anunciar que abdicava da faculdade para ir para a Marinha.

"Na verdade não estava muito convencida e foi quando vi na internet o concurso para a Escola Naval. A decisão era a Marinha, pela aventura, pelo desafio. Foi o melhor que fiz".

Uma semana depois desta reportagem, Diana e 13 membros da sua tripulação testariam positivo para a covid-19, ficando em isolamento num hotel do Funchal até dia 16 de agosto.

De acordo com a porta-voz do Chefe de Estado-Maior da Armada, Nádia Rijo, "a Marinha tem sido alvo de escolha de cada vez mais mulheres". De acordo com os últimos dados disponíveis isso é notório principalmente entre os oficiais: em 2020 candidataram-se à Marinha 313 mulheres, quase o dobro das 170 de 2017.

O primeiro embarque de mulheres militares integradas em guarnições nos navios
da Marinha ocorreu a 9 de dezembro de 1993, exigindo todo um complexo processo de adaptação dos navios, de forma a criar espaços para uso exclusivo das mulheres, mas também de mudança de mentalidades e de previsíveis resistências.

Num trabalho que desenvolveu em 2020 designado "Navios igualitários - a implementação na igualdade de género nas unidades navais", a Marinha lembra que "os primeiros embarques das militares, em cada navio, foram precedidos de ações de sensibilização com vista à promoção de comportamentos que acautelassem a não-discriminação no desempenho das funções entre homens e mulheres a bordo e salvaguardassem um ambiente saudável e de camaradagem (...) Do ponto de vista operacional, impunha-se efetuar uma integração positiva desmistificando qualquer potencial impacto no cumprimento das missões dos navios com a constituição de guarnições mistas".

Atualmente, além de Diana Azevedo há outras quatro mulheres a comandar navios patrulha - Ester Lopes (NRP Sines), Joana Costa (NRP Escorpião), Inês Severino (NRP Cassiopeia) e Catarina Aresta (NRP Sagitário) - e além de Jéssica Machado outras três imediatos - Catarina Rolo (NRP VIana do Castelo), Filipa Marracho (NRP Auriga) e Maria de Sousa (NRP Mondego).

Proporcionalmente, garante a porta-voz do CEMA, "existe equilíbrio entre o número total de mulheres e as oficiais em funções de comando", facto que é atestado pelo estudo já referido.

"A monitorização qualitativa e quantitativa da evolução de militares embarcados, desagregada por homens e mulheres e em função do posto, evidencia uma representação equilibrada nas funções desempenhadas (chefia, direção, comando e execução) face ao rácio existente entre homens e mulheres disponíveis para embarcarem e embarcados", é escrito.

"Atendendo que, a bordo de unidades navais, os oficiais desempenham funções de chefia ou comando e que os sargentos desempenham funções de chefia pode-se concluir que ao longo dos anos a Marinha procurou promover uma representação, entre homens e mulheres, mais equilibrada nos quadros de chefia, direção e comando. Observa-se um aumento no número de mulheres embarcadas no posto de primeiro-sargento, sobretudo a partir de 2014, o qual é justificado pela evolução natural da carreira (promoção do posto de segundo-sargento a primeiro sargento)", refere o estudo.

Os primeiros tempos foram um verdadeiro desafio, como testemunhou, neste estudo, o Comandante Vítor Birne, que foi o responsável pela incorporação das primeiras praças e identificou, logo à partida "a necessidade de promover a imagem da "mulher militar" em detrimento da imagem da "menina delicada vestida de cor-de-rosa com rendinhas".

No seu testemunho conta o seguinte episódio: "foi identificado um "constrangimento" que passo a descrever: Não era exequível a materialização de um vestiário feminino no edifício da piscina, onde iriam decorrer atividades do plano da recruta e onde todas as atividades seriam efetuadas em
ambiente misto. Solução encontrada: as recrutas iriam equipar-se à sua coberta e
fariam os trânsitos entre a coberta e a piscina em "fato de treino"
. Não estando previsto
o fato de treino na andaina fornecida aos recrutas, fui eu que acionei os mecanismos
para que, às recrutas, fosse considerada a distribuição de fato de treino. Chegou o dia! Elas foram incorporadas, fizeram a sua recruta, obtiveram a sua "classe" (umas como grumetes outras como marinheiras) e passaram para as unidades. Houve problemas? Afirmativo! Foram resolvidos? Obviamente! Para isto contribuiu a entrega de quem prestava serviço na EAM, nas escolas e nas "unidades" e a transferência da experiência adquirida e das lições aprendidas de uns para os outros".

A Marinha assegura que "atualmente, volvidos quase 25 anos desde a primeira guarnição mista, não
existe qualquer condicionamento à forma de prestação de serviço militar de mulheres na Marinha,
sendo que, o cumprimento das regras para as colocações nos navios, os condicionamentos de embarque e o desempenho de funções a bordo ocorrem, de forma exemplar, com vista ao desenvolvimento igualitário de carreiras".

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