Durante séculos os estudiosos viram nele o jogo cenográfico de Velásquez. Outros ainda julgaram reconhecer o claro-escuro que eternizou Zurbarán, mas, na verdade, o homem que pintou O Martírio de São João Damasceno não era espanhol, mas italiano, e chamou-se Luigi Miradori, dito Il Genovesino. Até 10 de abril, este óleo sobre tela de grandes dimensões pode ser apreciado em todo o seu esplendor no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, no âmbito do ciclo "O Belo, a Sedução e a Partilha" que traz a esta instituição, por períodos breves, obras de coleções privadas que, de algum modo, dialoguem com o acervo do museu..Para Maria e João Cortez de Lobão, os proprietários desta obra desde 2020, a sua aquisição, dizem-nos, "obedeceu a um impulso de paixão." Mas não foi o capricho dum momento. Ainda hoje, quanto mais olham para ela, mais se sentem interpelados. "Sentimo-nos a entrar na cena retratada, que é a do martírio do santo, e interrogamo-nos quem somos nós ali. Os que assistem em aflição ao que se está a passar? Os indiferentes, o próprio carrasco? É perturbador mas também desafiante.".O Martírio de São João Damasceno é uma das obras da vasta coleção de pintura antiga dos colecionadores (com um arco temporal situado entre os séculos XIII e XVIII), que constituíram a Fundação Gaudium Magnum em 2018. "Hoje as nossas obras estão dispersas por várias instituições, em vários pontos do mundo, mas andamos à procura de um local que possa acolhê-las e expô-las ao público nas melhores condições", dizem ao DN. E onde procuram? "Em Lisboa, de preferência. Por uma razão muito simples: Lisboa foi, em determinado momento histórico, a cidade europeia que mais acolheu diferentes culturas, sem as procurar transformar na sua essência. Consideramos que essa capacidade de acolher e aceitar o outro é o que torna os portugueses tão particulares." Essa convicção levou Maria e João Cortez de Lobão a assinar, no Verão passado, um protocolo de cooperação com o Instituto Camões, organismo que, como se sabe, promove a difusão da língua e cultura portuguesas no mundo..Para Joaquim Oliveira Caetano, diretor do MNAA, "é um privilégio receber esta obra", não só pela sua qualidade estética, como pela sua relevância para a História da Arte pós-renascentista. A obra Martírio de São João Damasceno, de Luigi Miradori, inscreve-se na que é considerada a época mais criativa do artista e data de um período histórico em que a influência da pintura espanhola se fazia sentir em todo o Sul da Europa, em particular em Itália já que, nesta época, quer o ducado de Milão, quer o reino de Nápoles e a Sicília integravam a Coroa espanhola..Nascido em data incerta (provavelmente em meados da primeira década do século XVII) em Génova, Luigi Miradori beneficiaria, aliás, do favor mecenático do governador espanhol de Cremona, Don Álvaro de Quiñones, que não só lhe deu proteção, como lhe deu a conhecer a sua importante coleção de arte em que estavam representados os grandes mestres do chamado siglo de oro. Não admira, pois, que sob essas influências, Miradori tenha absorvido algumas das principais características de Velázquez, Zurbarán, entre outros. Muitas das pinturas que hoje sabemos serem da autoria do Genovesino foram durante muito tempo atribuídas a pintores espanhóis: O Anjo Custódio do Museu de Bucareste esteve atribuído a Pereda e também a Zurbarán, o Retrato de Gian Giacomo Trivulzio a Mazo, o Retrato de Criança a Rizo, o Retrato de um Monge Olivetano a Zurbarán e o óleo da coleção de Maria e João Cortez de Lobão não só foi considerada de Velásquez como, quando no século XIX pertencia à coleção de Luigi Borg de Balzan, teve mesmo uma falsa assinatura do autor de Las Meninas..A atribulada vida da obra só tem comparação com a do seu autor. Numa época em que a fortuna financeira dos artistas dependia da circunstância, sempre caprichosa, de encontrarem ou não um generoso mecenas, Miradori passou da sua Génova natal (em que a concorrência não era pouca, sempre ocupada a disputar a preferência dos ricos banqueiros concentrados na cidade) para Piacenza, mas também aqui deixou pouca obra, de que restam apenas dois trabalhos na Galleria Nazionale di Parma (Aarão estacando a peste e uma Adoração dos Magos). Aí nasceram-lhe dois filhos e casou com Maria Ferrari, genovesa como ele, em 1535. Mas no mesmo ano, em carta a Margarita de Médicis, queixava-se da falta de encomendas e anunciava-lhe a sua intenção de deixar a cidade. Teve mais sorte em Cremona, onde fez carreira e morreu em situação de relativo conforto, no ano de 1656..Hoje sabemos que este Martírio de São João Damasceno é uma das obras que o pintor deixou nesta cidade. Para a Igreja de São Clemente (hoje de Santa Madalena), assinada e datada de 1648, realizou um quadro que retrata a reposição da mão amputada de São João Damasceno pela Virgem Maria. Vivia-se então a época de ferro e fogo da Contrarreforma e a Igreja Católica (e os Reis seus aliados) voltava a apostar no poder da imagem, por oposição à austeridade de culto defendido por luteranos e calvinistas. Miradori, como muitos outros artistas seus contemporâneos, viria a ser o grande beneficiário desse furor imagético..Recorde-se que até 23 de janeiro foi possível ver, neste ciclo "O Belo, a Sedução e Partilha", outra obra desta coleção, Mulher numa despensa (cerca de 1620-1627), de Giacomo Legi (Liège, c. 1590-1600-Milão, c. 1640) e Antiveduto Gramatica (Siena, 1571-Roma, 1627). Mas há muito mais para ver nesta coleção que só agora começamos a descobrir. ..dnot@dn.pt