A formação exigida para fazer golpes de Estado
"History may be servitude / History may be freedom."
T. S. Eliot, Four Quartets
Quando eu trabalhava na Cooperação Portuguesa, recebemos um dia um bolseiro militar de um PALOP que estudava em Coimbra, onde preparava uma tese sobre golpes de Estado. Após ler o clássico de Curzio Malaparte lamentava-se este militar: "A minha gente é muito atrasada. Nunca conseguiremos fazer um golpe de Estado em condições."
Penso que este estudioso (entretanto falecido) poderia consolar o seu desgosto e superar os seus complexos culturais se assistisse aos extraordinários eventos ocorridos no passado Dia de Reis em Washington. Trump, o presidente da mais poderosa nação do mundo, falhava clamorosamente o seu 18 do brumário, fazendo-nos crer que não leu Malaparte. Mas terá falhado?
A recordação arrepia-nos, mas anos antes da sua tomada do poder Hitler falhou também um golpe (o da cervejaria de Munique), e isso não o impediu de vir a chegar ao poder e destruir o seu país e, de caminho, a Europa. Poderá ser este levantamento ridículo (mas que custou quatro mortos) apenas o princípio de uma longa marcha?
Ao ver na reportagem da BBC as declarações de alguns dos manifestantes, era impressionante sentir o desejo de revolução que por ali passava. "O nosso país nasceu de uma revolução", lembrava um trumpista enrolado num casaco de couro, e era uma nova revolução que ele via chegar naquela ocupação do Capitólio tão facilmente levada a cabo por umas centenas de civis armados. Uma revolução conservadora e reacionária, por certo, mas sempre uma revolução, com toda a sua carga de promessa e de esperança.
Os engenhos explosivos encontrados nas sedes dos dois partidos, Democrata mas também Republicano, poderão talvez (não sabemos ainda) indicar que estes revolucionários trumpistas não se identificam mais com um Partido Republicano que, pelas vozes de Mike Pence e Mitch O'Connell, traiu os apelos do seu chefe. Do que estamos seguros é que esta gente quer continuar a luta e por todos os meios.
A história mostra-nos que a complacência com estes movimentos cava a sepultura de um regime. Hitler sobreviveu politicamente ao fiasco do golpe da cervejaria de Munique e continuou, com aura de mártir, a consolidar o seu movimento. Poderá Trump sobreviver politicamente à maior ofensa à Constituição que pode conceber-se da parte de um chefe de Estado, o levantamento de um movimento sedicioso contra as instituições da União? A resposta a esta pergunta pode encerrar o destino das nossas democracias.
Assisti aos acontecimentos na CNN e, por casualidade de fins de festas, na companhia dos meus dois familiares norte-americanos. Um deles concentrava-se, com o rosto fechado, na sua tablet. A outra atirava, rindo, um brinquedo ao ar. O meu otimismo diz-me que era a segunda que tinha razão.
Escritor e diplomata