"A extrema-direita tem uma resposta muito simples: a culpa é do outro"
O subtítulo de Tambores ao Longe é bastante elucidativo: Incursões na extrema-direita mundial. O autor, Joe Mulhall, infiltrou-se em várias organizações de extrema-direita e milícias radicais ao longo de uma década e faz um relato do que viu e ouviu na América do Norte e do Sul, em vários países europeus - Alemanha, Espanha, Eslovénia, Itália, Suécia, entre outros - e mostra como o extremismo de direita se transformou num discurso mainstream, em que à islamofobia, ao antissemitismo, ao racismo e à xenofobia, foram acrescentadas mais recentemente as questões de género e de identidade.
Membro da organização Hope not hate, tentou descobrir os métodos e as estratégias das organizações que atacam diretamente as democracias, confrontando-se com inúmeros exemplos, protagonistas e personagens, mostrando ao longo de mais de trezentas páginas o negacionismo da extrema-direita e como se tornou transnacional neste século. Durante os tempos em que esteve infiltrado a situação portuguesa ainda não tinha chegado ao nível atual, daí que não exista um capítulo sobre a extrema-direita entretanto surgida. Mulhall explica esta ausência: "Enquanto estava a escrever o livro apercebi-me da situação portuguesa mais recente. Muita gente achava que a Alemanha era a exceção no crescimento da extrema-direita devido ao passado do nazismo, no entanto isso não aconteceu. A outra exceção era Portugal, devido ao legado tradicionalista de Salazar, mas também aí se verificou esse aumento da extrema-direita. Creio que se escrevesse agora, teria de ir a Portugal, afinal os discursos de ódio são em muito similares aos do resto da Europa."
Este livro pretende ser um alerta para a atividade da extrema-direita. Será que os leitores a estão a levar a sério?
Espero que sim! O livro é um aviso para a situação em que nos encontramos, mas também para o que estamos ou não a fazer. Foi pensado com esse objetivo por vivermos uma época muito perigosa e que deve ser levada muito a sério e olharmos para a extrema-direita de uma forma muito séria.
Destaca o alarme perante o crescimento da extrema-direita. Estamos no seu auge ou o pior ainda está para vir?
Creio que a situação está muito perigosa neste momento. Vivemos o tempo de Trump nos EUA, vive-se o de Bolsonaro no Brasil, temos uma série de organizações dessa direita na Europa, como é o caso da Hungria, Polónia e da Alemanha. O problema é a orientação geral que observamos a longo prazo na política e que não parece diminuir. Nem será preciso que, por exemplo, Trump concorra e ganhe as próximas eleições, porque o impacto das suas ideias mantém-se mesmo sem ele no governo da América, basta ver-se que o Partido Republicano não se distingue dos partidos de extrema-direita europeus. Quando essa direita ganha poder, mesmo que perca eleições, já normalizaram a sua presença e deixaram um legado que influencia os eleitores e as sociedades.
Essa direita assemelha-se a nível mundial ou é diferente em cada país?
Cada país é único devido às suas próprias raízes e história. Contudo, creio que existe uma dimensão global pois acontecem situações parecidas em várias partes do mundo e ao mesmo tempo. Como vivemos num mundo globalizado, as ideias e as táticas políticas tendem a coincidir, e isso tem-se visto acontecer com o aparecimento do populismo devido ao falhanço das democracias e das instituições na resolução dos problemas que afetam as populações.
Avisa sobre o efeito das redes sociais e da comunicação social na globalização das perspetivas das direitas radicais. Estão a ser cooperantes ou existe essa pretensão?
As redes sociais funcionam baseadas em algoritmos que são sensíveis às tensões e os sites dos jornais obedecem aos números de visualizações das notícias. Quando um político populista fala, as suas palavras são reproduzidas e amplificadas por todos os órgãos mundiais porque é uma história que terá muita atenção por parte das pessoas. Os partidos de direita radical também promovem as suas próprias histórias online e estas são lidas por audiências muito grandes por serem apelativas. A solução é diminuir o impacto desta propaganda, mas o que acontece é que a comunicação social acaba por dar voz a essas franjas extremistas e isso é muito perigoso devido à forma como as suas ideias chegam ao público e que faz com que muitas pessoas considerem essa extrema-direita cool se as notícias não forem escrutinadas.
O facto de as democracias aceitarem facilmente os partidos e organizações dessa direita não é uma facilitação perigosa?
Uma das situações que enfrentamos é o confronto com as normas democráticas e a uma velocidade muito grande. Isso viu-se com Boris Johnson, que testava constantemente os limites da democracia e da Constituição. A questão é até que ponto a expressão da extrema-direita não provocará danos na democracia e a possamos perder. Nos últimos anos tem havido conflitos muito grandes, há populistas que não admitem perder as eleições, daí que seja preciso que as instituições democráticas lutem e mostrem aos eleitores as tentativas de desestabilização.
Esteve infiltrado nesses grupos de extrema-direita. Descobriu a existência de uma estratégia comum entre eles?
Infiltrei-me em grupos muito diferentes e com várias ideologias, e o que vi foram estratégias muito diferentes. Uma milícia norte-americana e uma organização antimuçulmana na Inglaterra agem diferente, no entanto existem semelhanças. A primeira é entre o que dizem em público e em privado. A imagem que refletem para o mundo é sempre mais branda do que as políticas que defendem entre si. Outra, é a de levantarem questões sobre o declínio da economia que resultam da democracia neoliberal, da globalização e da industrialização. Só que estas são questões muito complexas, para as quais a extrema-direita tem uma resposta muito simples: a culpa é do outro. Dependendo da sua geografia, ou são os mexicanos, ou são os muçulmanos, ou os negros.
Refere que ouviu muitos discursos antimuçulmanos. Mudaram de orientação nos últimos anos?
Consideram que o islão está a invadir o Ocidente, que o está a conquistar, e que daí resulta um choque de civilizações. A resposta é dada através de várias organizações que têm lideranças e bases nacionais, mas também é transnacional porque há milhares de ativistas pelo mundo inteiro que colaboram online através das redes sociais, destacando assuntos que os interessam para promoverem as suas acusações. Atualmente, a extrema-direita está a utilizar uma combinação entre organizações nacionais e uma colaboração mundial além-fronteiras.
Pode-se dizer que a islamofobia e o antissemitismo eram o alvo principal da extrema-direita, contudo o espectro tem vindo a alargar-se com as questões de género. O que mudou?
Acho que a misoginia esteve sempre presente na agenda da extrema-direita, mas nos últimos anos as políticas antifeministas tornaram-se tão normais como as do racismo. Eles veem o mundo atual, a igualdade de direitos e a identidade, como um problema. Querem que os antigos papeis que vigoravam na sociedade se mantenham.
Pode-se dizer que o extremismo está muito mainstream na atualidade. Como será daqui a uns anos?
Creio que essa normalização das ideias dos indivíduos da extrema-direita se deve a terem vencido eleições e a narrativa vencedora tornar-se mais normal e difícil de condenar devido às mudanças de orientações partidárias nas sociedades. A boa notícia é que o passo seguinte, após termos muitos desafios pela frente, a maior parte das populações continua a valorizar a democracia liberal e as instituições democráticas. Portanto, mesmo que a extrema-direita ganhe eleições, a maioria das pessoas acredita noutros valores. Se esta sociedade lutar, será mais fácil manter esses valores. Não é inevitável ir noutra direção.
Revelou no livro tudo o que descobriu ou há muito por contar?
Em termo de análise referi tudo o que apurei, no entanto no que diz respeito a situações houve várias que não pude reproduzir porque nessas organizações em que me infiltrei há muitas pessoas que se mantêm ativas. Talvez daqui a dez anos possa revelar tudo sem problema.
Sofreu ameaças durante a investigação?
Sim, mas sabia que eram violentos e perigosos, contudo como esse trabalho é fundamental para a organização em que estou não desisti.
Esteve infiltrado numa milícia nos EUA que desconfiou de si mas não foram capazes de o provar. São pouco profissionais?
Gostaria de pensar que eu era muito bom a disfarçar...
Tambores ao Longe
Joe Mulhall
352 páginas
Editora Temas e Debates
Outras novidades literárias
Os títulos dos capítulos deste Figuras Excêntricas são tão diferentes como os protagonistas que os habitam: O Homem-Macaco de Aveloso, O Gigante de Farelos ou O Monstro de Alabardo. Não será por acaso que assim são apresentados, mesmo que tenham sido esquecidos pelos outros habitantes do país e que a contemporaneidade deles pouco registe. No entanto, a autora foi investigar e encontrou uma forma de os trazer até ao presente. Da maioria recolhe uma biografia completa, de outros o tempo quase apagou as suas vidas porque, não fossem as suas estranhezas físicas, também jamais seriam recordados.
Como refere Fátima Mariano na Introdução, "algumas destas personagens foram fonte de inspiração de peças de teatro e de livro romanceados, ou deram origem a teorias não comprovadas, como a que coloca a hipótese de o escritor americano Edgar Rice Burroughs se ter inspirado numa delas para criar a personagem de Tarzan". Confirmada ou não tal teoria, estamos perante uma "enciclopédia" pouco habitual de seres humanos, de que alguns leitores ainda se lembram de ver. O gigante de Manjacaze será um deles, enquanto de outros ouviram relatos de antepassados curiosos, surpreendidos e marcados pelo que assistiram nas habituais sessões públicas de divulgação de quem era tão incomum e presa fácil para empresários pouco escrupulosos. Uma "coleção" de pessoas diferentes que hoje seria impossível repetir-se - no mínimo, pelo horror que tal exposição provocaria - e que aqui ficam ressuscitados para a história mais excêntrica de Portugal e descritos com o cuidado exigido.
Grandes Figuras Excêntricas da História de Portugal
Fátima Mariano
Editora Contraponto
190 páginas
Assume-se como um livro de curiosidades sobre o Antigo Egito e faz do ainda desconhecimento sobre uma das mais velhas civilizações o seu objetivo. A egiptóloga explica vários mistérios, desde os mais flagrantes ao menos evocados. É o caso da razão de terem sido construídas as pirâmides, os maiores edifícios que o Homem fez; como era a língua dos habitantes, que tanta dificuldade criou no seu entendimento ao longo de séculos; se havia divertimentos e desportos entre os egípcios, pelo menos no que respeita à elite; qual o papel da mulher e também o do homem, face aos testemunhos que foram inscritos na sua arte; porque eram mumificados os mortos, que tantas histórias deixaram para o futuro...
Este livro, tal como é explicado num dos capítulos finais, poderá iluminar muitos dos leitores quanto ao interesse sobre a civilização egípcia, podendo abandonar um estatuto de egiptomania e dar os primeiros passos para o de egiptologia. Nada que envergonhe o leitor se estiver na primeira condição pois, como se explica, foi a primeira que deu origem à parte mais investigatória e académica. Que o diga Napoleão que, ao invadir aquele país, trouxe todo o seu imaginário para as cortes da Europa e maravilhou tantos habitantes do velho continente, bem como muitos monumentos e, felizmente, a Pedra da Roseta, que permitiu a Champolion decifrar o indecifrável ao fim de tantos séculos de ignorância. Um dos benefícios deste "manual" é a presença constante de hieróglifos, o que, indecifráveis para quasi toda a humanidade, poderá transformar-se numa boa oportunidade para aprender alguns rudimentos de uma língua tão difícil.
Como é que a esfinge perdeu o nariz?
Inês Torres
Editora Planeta
318 páginas
O novo álbum de banda desenhada de Luís Louro transforma-se em muito mais do que uma história aos quadradinhos que em 101 páginas evoca a violência dos conflitos bélicos mundiais. Quis a coincidência que a invasão russa da Ucrânia acontecesse a meio da feitura desta obra que tem por título e protagonista um jovem que se chama Dante. Para o leitor mais interessado, após o fim da história existe um encarte que revela as raízes da história, bem com as influências do autor para chegar ao coração do volume. Sabe-se assim que muitas das figuras, muitas míticas, não surgem por acaso, antes são fruto de memórias que ficaram marcadas em Luís Louro, enquanto outras fazem parte da História da humanidade.
O argumento é de autoria do próprio, comprovando um auge na escrita de uma narrativa que é capaz de prender o leitor, a par de uma capacidade gráfica que é mais do que nunca levada a extremos. A violência da história já seria por si só suficiente, daí que tenha substituído certas situações (p.24) por outras menos graves, no entanto é impossível fugir às atitudes que os exércitos de Hitler provocaram em quem esteve ou foi vítima da Segunda Guerra Mundial. Não que seja esse o único tema central, mas a janela histórica que permite reviver essa época não deixa de se repetir e de massacrar a inocência de populações inteiras que veem soldados entrarem na sua vida e desarmar os inocentes que prefeririam viver as lendas em vez da realidade da guerra. Os duendes, fadas e outras figuras da imaginação participam abundantemente neste Dante, que contraria a liberdade de certas máquinas de violência.
Dante
Luís Louro
Editora Ala dos Livros
126 páginas