Enigma adolescente, corpo ágil, olhar inteligente e triste. O jovem Ahmed vive através de dois instrumentos que utiliza como armas. Observe-se a imagem: em primeiro lugar, há o Alcorão, sempre a seu lado, objeto sagrado que lê e interpreta de modo literal e fundamentalista, confirmando, e até exponenciando, as sugestões bélicas do seu imã; depois, Ahmed explora a internet como uma paisagem que lhe serve de companhia em permanente transfiguração, de alguma maneira desenhando na sua imaginação os contornos de um paraíso redentor..O novo e admirável filme de Luc e Jean-Pierre Dardenne, Le Jeune Ahmed, apresentado na secção competitiva do Festival de Cannes (onde os irmãos belgas já ganharam duas Palmas de Ouro), não é, entenda-se, uma "tese" sobre o fundamentalismo islâmico. Se nos recordarmos de outros títulos da sua filmografia, por exemplo Rosetta e A Criança (precisamente os que arrebataram a Palma, respetivamente em 1999 e 2005), compreendemos que o seu cinema nunca cedeu à facilidade de transformar um tema, seja ele qual for, numa pequena coleção de imagens estereotipadas ou sound bites, promovida a resumo de qualquer drama social ou político. Recordemos também o belíssimo Dois Dias, Uma Noite (2014), com Marion Cotillard, sobre os conflitos numa fábrica assombrada por uma vaga de desemprego..Le Jeune Ahmed apresenta-se, assim, como o retrato de um microcosmos, algures na Bélgica dos nossos dias. A postura de Ahmed, levando-o a conceber a morte do "inimigo" como única hipótese de expressão individual, surge encenada através das infinitas nuances de uma pequena comunidade: da revolta da mãe contra a cegueira moral do filho até à tentativa de acompanhamento pedagógico da sua professora, todos são seres muito vivos, a braços com problemas que os afetam, tanto quanto os transcendem..O filme dos Dardenne pode simbolizar uma atitude, de uma só vez narrativa e política, que distinguiu alguns dos títulos mais fortes da 72.ª edição do festival. Um dos exemplos mais notáveis tem o título original Evge. É uma produção ucraniana e foi vista na secção Un Certain Regard (paralela à competição para a Palma, embora integrando também a seleção oficial): o seu impacto não pode ser dissociado do facto de se tratar da longa-metragem de estreia de Nariman Aliev (27 anos)..Em francês e em inglês, Evge intitula-se, respetivamente, En Terre de Crimée e Homeward: estamos, de facto, "em terras da Crimeia" e trata-se de um "regresso a casa". Seguimos a viagem de um pai que, depois da morte do filho na guerra entre Rússia e Ucrânia, arrisca enfrentar barreiras burocráticas e militares para transportar o seu corpo até à terra natal - entenda-se: a Crimeia..Na viagem, o protagonista é acompanhado pelo filho mais novo. O mínimo que se pode dizer é que as convulsões do território se refletem em todos os elementos da ação, desde o perturbante desconhecimento mútuo dos dois viajantes até às ameaças que podem provir de cenários e personagens aparentemente banais..Há qualquer coisa de sensorial e contagiante nas imagens de Evge: o que mais conta é a intensidade dos gestos, a singularidade dos corpos, enfim, a irredutibilidade das histórias individuais numa Europa que, por mais que isso nos doa, não pode ser encarada, descrita ou vivida como a expressão de uma identidade unívoca e unificada. O mesmo se dirá, aliás, do filme francês Os Miseráveis, de Ladj Ly, sobre uma zona problemática dos subúrbios de Paris, ou Sorry We Missed You, em que o veterano Ken Loach filma os dramas financeiros de uma família inglesa (ainda) no tempo de Theresa May..Reencontramos, deste modo, a urgência de um olhar realista, transversal na produção cinematográfica contemporânea (na Europa e não só). Importa resistir ao esquematismo descritivo que, tantas vezes, se instala no nosso quotidiano mediático, escolhendo um pragmatismo moral capaz de pensar (e filmar) para lá dos impasses da cena política. Como se se tratasse de reformular a pergunta mais cândida, mas também mais radical: de que falamos quando falamos da Europa?