Emmanuel Macron e Jean-Luc Mélenchon são os atuais protagonistas políticos em França, apesar de nenhum deles ser candidato a deputado nas eleições legislativas que hoje se celebram. Os dois antigos ministros de governos socialistas (o primeiro no Executivo de Manuel Valls durante a presidência de François Hollande, o segundo no de Lionel Jospin aquando da última coabitação, com Jacques Chirac no Eliseu) têm objetivos distintos: o primeiro quer manter a maioria absoluta na Assembleia Nacional, o segundo sonha com o cargo de primeiro-ministro, pelo que a coligação eleitoral de esquerda NUPES, por si engendrada, terá de sair vencedora. De permeio eclipsaram a líder da extrema-direita nesta campanha. Marine Le Pen, que há dois meses recebeu votos de 41% dos eleitores na segunda volta das presidenciais, queixou-se de um "acordo secreto" entre os dois homens para prejudicar o seu partido, o União Nacional..Na realidade, a rivalidade entre os dois homens data de 2017, quando ambos criaram os seus partidos políticos e concorreram às eleições. Foi o início do naufrágio dos partidos tradicionais de centro-direita e centro-esquerda, tendência que se tem acentuado em cada ato eleitoral. Ao divergirem em quase tudo, o ex-banqueiro e o antigo professor são vistos como o espelho um do outro: ambas as formações políticas vivem à volta do seu líder e não há espaço para divergências ou correntes minoritárias. A estratégia de bipolarização no chamado "campo republicano" (isto é, excluída a extrema-direita) tem resultado e aglutinou personalidades diversas. Por exemplo, Macron tem ao seu lado antigos socialistas como Valls, mas também o ex-presidente Nicolas Sarkozy, de centro-direita..Segurança e despique entre Macron e Mélenchon marcam campanha ."Mélenchon comporta-se como um selvagem para com os seus futuros aliados. Fê-los engolir sapos mas apenas lhes concede alguns círculos eleitorais, apenas o suficiente para sobreviverem", terá dito Macron junto dos seus conselheiros quando a Nova União Política Económica e Social (NUPES) foi criada, segundo o Le Canard Enchainé. Frente aos microfones, o presidente reeleito não usa termos tão fortes. Numa entrevista aos jornais regionais, arrumou Mélenchon e Le Pen no mesmo armário: "Vejo no projeto de Jean-Luc Mélenchon ou de madame Le Pen um projeto de desordem e submissão [face à Rússia]. O que propõem é um blackout, um risco de rutura.".Em plena campanha presidencial, o líder da esquerda chamou Macron de "liberal" por "ter feito entrar o privado no Estado", referência aos mil milhões de euros gastos na consultora McKinsey só em 2021, e fechado serviços públicos, tendo dado como exemplo os hospitais, onde há menos 17 mil camas do que em 2017. Depois de ter ficado às portas da segunda volta na corrida presidencial, o homem que fundou a França Insubmissa proclamou: "Elejam-me primeiro-ministro!" Ao que o chefe de Estado respondeu desafiando a prática da V República, ao afirmar que "nenhum partido pode impor um nome ao presidente"..Os constitucionalistas confirmam o teor da frase. Mas seria um jogo suicida. Um primeiro-ministro designado sem uma maioria na Assembleia Nacional corria o risco de não receber a confiança dos deputados e, pior, o presidente podia ser demitido em resultado de uma moção de censura..Na campanha anterior à primeira volta das legislativas, Mélenchon e Macron mostraram, uma vez mais, as profundas diferenças - o líder da esquerda criou uma pequena onda de choque ao dizer "a polícia mata", na sequência de quatro casos em que a polícia disparou mortalmente sobre veículos em fuga, e depois do fiasco da segurança na final da Liga dos Campeões, nos subúrbios de Paris. "Não posso aceitar que insultem aqueles que arriscam a sua vida para proteger a nossa", respondeu Macron..Nesta semana, o presidente francês juntou-se ao primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, e ao chanceler alemão, Olaf Scholz, numa viagem de comboio a Kiev, depois de ter passado uma noite numa tenda junto dos militares franceses estacionados na Roménia (e corrido com eles). Antes de partir, Macron fez uma declaração aos media na pista do aeroporto, na qual apelou para uma "maioria sólida" em nome do "interesse superior da nação" e alertou os eleitores para não somarem uma "desordem francesa à desordem global"..DestaquedestaqueHá 415 candidatos da coligação centrista Ensemble na segunda ronda. A NUPES tem 384. Em 270 círculos, há um confronto direto entre candidatos destes dois blocos..A resposta de Mélenchon não tardou. "Mal me atrevo a dizer que está sobreaquecido, dada a temperatura. Este sketch ao estilo Trump para avisar contra o inimigo interior é o símbolo de uma era", criticou no seu blogue, embora sobre o encontro com Zelensky a conversa tenha sido outra: "Associo-me à sua mensagem de solidariedade para com a Ucrânia", disse mais tarde. Mélenchon, que foi acusado de ser um "Chávez gaulês" pelo ministro da Economia, Bruno Le Maire, mudou de opinião sobre a Rússia depois da invasão, e sobretudo depois de ter criado a aliança NUPES, acertando a agulha pelas posições sem ambiguidades do Partido Socialista ou dos Verdes na condenação a Vladimir Putin..O fim da campanha eleitoral, "inexistente" e uma "caricatura" segundo o Le Monde, ficou marcado por outros episódios menores, como a visita da primeira-ministra, Élisabeth Borne, a uma fábrica de tachos (um manancial de piadas), o ataque com gás lacrimogéneo ao carro em que seguia a candidata da NUPES Raquel Garrido e o único debate televisivo que juntou três candidatos das três formações mais votadas na primeira volta..A onda de calor que se abate sobre França é mais um elemento a juntar à equação num escrutínio em que se esperava uma taxa de abstenção de 53% a 56%. Se as populações mais frágeis não se deslocarem às mesas de voto, a coligação de Macron fica a perder. Mas para Mélenchon conseguir tornar o seu sonho em realidade os jovens terão de sair de casa e votar em massa. As últimas sondagens projetavam 140 a 200 deputados para a NUPES, bem longe da vitória..Por seu lado, a coligação macronista poderá ter entre 255 a 305 assentos. No cenário sem maioria absoluta, os centristas podem virar-se para Os Republicanos (60 a 80 deputados) ou, caso a maioria fique por um fio, tentar acordos com pequenas formações. A União Nacional, que chegou a ter como meta a eleição de 100 deputados, deverá eleger de 20 a 50, podendo criar um grupo parlamentar. A confirmar-se, será uma vitória amarga para Le Pen, confinada a figura secundária do xadrez político..Quantas eleições existem? Sete, sendo seis diretas e uma - a dos senadores - indireta. Os eleitores franceses são chamados às urnas para as presidenciais, legislativas, departamentais, regionais, municipais e europeias. Os 348 senadores são escolhidos por um colégio eleitoral composto pelos eleitos em funções..Destaquedestaque8 triangulares. Nos 572 círculos em disputa na segunda volta, há oito em que se apresentam três candidatos. Essa situação, que só se verificou num círculo em 2017, acontece quando um trio supera os 12,5% de votos do total de eleitores inscritos..As legislativas são em duas voltas porquê? É uma particularidade francesa. A maior parte das democracias divide-se entre o sistema maioritário e o sistema proporcional, mas numa única eleição. A V República, nascida em 1958, é um compromisso entre os dois sistemas: dá voz a uma diversidade de tendências na primeira volta e produz maiorias na segunda. Além disso, entre a primeira e a segunda volta "os eleitores podem refletir sobre os resultados da primeira volta e os candidatos podem adaptar a sua oferta eleitoral, mediante a realização de comícios", explicou o investigador Jean-François Laslier ao Ouest-France..Quanto tempo há entre a primeira e a segunda volta? Uma semana, como as restantes eleições com segunda volta. A exceção é a escolha do presidente, onde há duas semanas entre os sufrágios, para os dois finalistas poderem percorrer o território em campanha. Considerou-se que a existência de círculos eleitorais e a ausência de candidatos nacionais explicam o período menor de intervalo nos restantes atos eleitorais..Quantos deputados elegem os franceses de além-mar? Os habitantes dos territórios franceses nas Caraíbas, Pacífico, Índico e América do Sul (Guiana) elegem 27 deputados no total. Os círculos com menos eleitores têm um representante na Assembleia Nacional e o maior, Reunião, tem sete. Como curiosidade, na ilha mediterrânica da Córsega, que não é considerado um território ultramarino, elege-se quatro deputados..DestaquedestaqueTrês candidatos da coligação de esquerda NUPES estão virtualmente eleitos após a desistência dos respetivos adversários que passaram à segunda volta - um deles a ex-ministra do Ultramar Marie-Luce Penchard no consulado de Sarkozy..Quantos eleitores há em França? Estão inscritos 48,9 milhões de eleitores. Todavia, só 47,5% se deram ao trabalho de se deslocar até à mesa de voto, o que marca um novo recorde de abstenção na primeira volta das legislativas..Quem venceu a primeira volta? A coligação Ensemble, que junta o partido de Macron, República em Marcha, entretanto rebatizado de Renascimento, a outras pequenas formações centristas, como o MoDem, e do centro-direita, como o Horizontes, fundado no ano passado pelo ex-primeiro-ministro Édouard Philippe, com 25,7%. Teve mais 21.441 votos do que a coligação de esquerda NUPES, a qual junta a França Insubmissa e os partidos socialista, comunista e ecologista. Juntos, os dois blocos concorrentes receberam 51,4% dos votos..Como é que o resultado foi visto? Em relação a 2017, se compararmos o partido macronista de então com a aliança atual, recuou apenas 2,5 pontos percentuais, mas então ficou com um avanço confortável (12,5 pontos) sobre o segundo classificado, Os Republicanos. Obtendo uma vantagem de 0,1% em relação ao bloco da esquerda, Macron foi criticado pela estratégia de aceitar a demissão do primeiro-ministro Castex e remodelar o governo muito em cima do ato eleitoral, bem como de "anestesiar a campanha". Por outro lado, a Nova União Política Económica e Social limitou-se a somar os resultados dos partidos individualmente. Em 2017 alcançara 25,4% e agora chegou aos 25,6%. Isto em termos percentuais, porque, ao unirem-se sob o mesmo chapéu (apesar das mais de seis dezenas de candidatos do PS que se rebelaram contra a aliança), a NUPES assegurou um número mais elevado de candidatos na segunda volta e deverá, no mínimo, mais do que duplicar os assentos na Assembleia..Quais foram os temas da campanha? A campanha foi uma espécie de terceira volta das eleições presidenciais que se disputaram em abril, tendo em conta que os quatro candidatos mais votados voltaram a candidatar-se, exceto Macron, que também fez ações de campanha. As promessas da NUPES, de aumentar o salário mínimo para 1500 euros, ou da Ensemble, em ser o primeiro grande país a descarbonizar por completo, cruzaram-se com outras controversas, como a idade da reforma (65 para o bloco de Macron, 60 para o de Mélenchon) ou a "desobediência" às leis da UE preconizada pela NUPES para aplicar o seu programa. As acusações de abusos sexuais por parte do novo ministro Damien Abad ou a atuação da polícia abriram novas vias de debate..cesar.avo@dn.pt