"A ditadura salazarista hostilizou o cooperativismo associativo, reprimiu as mutualidades e mesmo as misericórdias não tiveram vida fácil"
É possível definir economia social em poucas palavras?
A economia e social é uma forma alternativa de economia, a "outra economia", como lhe chamou Jean-Louis Laville. Alternativa, porque as suas organizações são independentes do Estado e assentam em princípios e valores eminentemente sociais, uma vez que não se orientam pela lógica capitalista do lucro. Atualmente, em Portugal, a economia social é um conceito eminentemente jurídico e, por isso, a sua definição é normativa. A economia social inclui valores e práticas organizativas muito diversificadas, mas o que a faz forte é o seu enraizamento local e aquilo que há de comum nessas organizações: a cooperação, a solidariedade, a socialização do risco e a reciprocidade.
De certa forma, é a institucionalização da mão invisível que Adam Smith dizia existir nas relações económicas?
Não, de todo. Ainda que o conceito e as práticas de economia social também tenham resultado de afluentes liberais, sobretudo do liberalismo social oitocentista, a sua construção histórica em nada se relaciona com o liberalismo clássico e com a economia política liberal. Os autores que primeiro subscreveram ideias de economia social eram críticos contundentes da visão económica de Adam Smith e seus pares. No liberalismo económico, o interesse próprio justifica os fins sociais dos indivíduos e da vida económica em geral; na economia social, pelo contrário, os fins sociais é que enquadram a ação dos indivíduos.
Onde surgiram os primeiros exemplos de economia social?
O conceito doutrinário de economia social nasceu em França nas primeiras décadas do século XIX e depressa se estendeu a diversos países, em especial através das escolas de Direito e dos cultores da "sciencia social". No entanto, as práticas e organizações identificadas com esse conceito são muito anteriores. Basicamente, toda a tradição mutualista é medieval. Esse é um afluente de experiências fundamental na história da economia social. Devido à ação de Charles Gide e da Aliança Cooperativa Internacional, e devido à influência decisiva das correntes solidaristas, o cooperativismo acabou por conquistar uma certa primazia institucional.
Em Portugal, a economia social pouco ou nada existia no Estado Novo, mas explodiu depois do 25 de Abril. Porquê?
Ainda que Salazar tenha ensinado economia social na sua juventude, durante o Estado Novo nunca existiu uma verdadeira economia social. A ditadura salazarista hostilizou o cooperativismo associativo, reprimiu as mutualidades e, mesmo as misericórdias, que correspondiam a um modelo de assistencialismo católico, não tiveram vida fácil. O corporativismo autoritário era incompatível com o associativismo livre e com os principais valores da economia social. A revolução de 25 de Abril de 1974 ocorre num período de redescoberta e de reafirmação da economia social no contexto europeu, movimentos que cresceram como reação à vaga neoliberal que começou a pôr em causa o Estado-providência em muitos países que eram democracias liberais. Contra os ventos da história, Portugal liberta-se do autoritarismo e conhece uma explosão de movimentos sociais que impulsionam organizações de economia social, em especial as cooperativas. Entretanto, além das liberdades públicas e cívicas Portugal cria, contra a corrente internacional, o seu Estado-Providência democrático. Os direitos sociais de cidadania inscritos na Constituição de 1976 abrem caminho a um reconhecimento inequívoco do papel da economia social, nomeadamente na área da solidariedade. Não por acaso, a criação do estatuto jurídico das IPSS nasce em 1979, por iniciativa do "governo dos cem dias" de Maria de Lurdes Pintassilgo.
A economia social está a reinventar-se na era digital?
O pilar europeu dos direitos sociais reconhece explicitamente o papel das organizações da economia social na transição digital e na "transição verde". Esse é o apelo institucional da União Europeia que, por via dos programas de financiamento e modernização, se assume cada vez mais como um driver da economia social. Historicamente, as organizações da economia social sempre se caracterizaram pela sua capacidade de adaptação e resiliência. No contexto atual, a tendência é a mesma, mas devemos reconhecer que as políticas europeias não são neutras e parecem empurrar a economia social para uma lógica eminentemente mercantil, demasiado subordinada ao conceito ambíguo de "inovação social". No entanto, as competências e infraestruturas digitais são objetivos centrais de modernização e de boa gestão das organizações da economia social. Os objetivos sociais das organizações de solidariedade, por exemplo, podem ser tanto melhor concretizados, quanto mais conseguida for a transição digital. Esse desafio é central, por exemplo, nas mutualidades que trabalham na área da saúde.
leonidio.ferreira@dn.pt