Numa das notas finais da nova versão ilustrada de um dos maiores clássicos da literatura norte-americana está um aviso sobre a linguagem: "O uso da palavra 'preto' em Mataram a Cotovia causou alguma controvérsia." Explica a nota que Harper Lee, que utilizou o termo nigger, "incluiu a palavra intencionalmente para ilustrar a sociedade sobre a qual escrevia" e que o ilustrador Fred Fordham manteve na sua adaptação porque, afirma, "não pretendo reinventar a história e as personagens", optando por reproduzir o texto conforme o original..Ora se a nova versão deste clássico literário é um tanto inesperada pois trata-se de um romance gráfico com 273 páginas - o romance tem 340 -, esta aposta em respeitar a linguagem em tempos do politicamente correto ainda o é mais. Quem chegar à página 99, por exemplo, lerá uma das frases de Harper Lee que a passagem do tempo tornou polémicas: "Não tens culpa por o Atticus ser amigalhaço dos pretos", a que se segue um conjunto de imagens em que a jovem protagonista bate no rapaz que tinha feito a acusação..O livro que o inglês Fred Fordham foi convidado a transformar em romance gráfico continua na moda apesar dessas polémicas e é um dos títulos que todos os anos mais vendem nos Estados Unidos, apesar de ter sido publicado originalmente em 1960. Esta nova versão comprova que as décadas entretanto passadas não eliminaram o valor da narrativa como acontece com várias outras "obras-primas" à sua época de publicação..Tudo começou no próprio ano da morte da autora, 2016, quando Fordham foi convidado pelos herdeiros a adaptar Mataram a Cotovia. Deslocou-se a Monroeville, a terra de Harper Lee, para as negociações, onde percebeu que a Maycomb do romance era muito aproximada da terra natal da autora. Fred Fordham aceitou o projeto e ao fazer a releitura do romance decidiu manter o máximo possível do texto original: "Selecionei as partes que me interessavam e eram essenciais e comecei a fazer o guião.".O objetivo de Fordham era proporcionar ao leitor "um romance gráfico muito próximo do próprio livro", daí a adaptação cuidadosa que executou. Quanto aos cenários, ao deslocar-se a Monroeville, fotografou os exemplos de arquitetura antiga que permanecem na localidade. Segundo Fordham, a paisagem do seu romance gráfico deveria ser um "espelho" da Monroeville que a autora usou em muito como cenário..A história de Mataram a Cotovia é simples: Nos anos 1930 o advogado Atticus Finch defende um negro acusado de ter violado uma mulher branca. A história é contada através de Scout, a sua filha, refletindo em muito a experiência de vida de Harper Lee. Tão real que o romance ganhou o Prémio Pulitzer de 1961 e a escritora foi posteriormente homenageada com a Medalha Presidencial da Liberdade..Mataram a Cotovia foi durante décadas o único romance que Harper Lee publicou, sendo que em 2015 os herdeiros retiraram do seu baú uma prequela deste romance e publicaram um segundo livro, contrariando o desejo da autora - que nessa altura já estava demente..Segundo Fordham entre os argumentos que o levaram a aceitar o desafio estavam "os diálogos poderosos" do romance. Tal como segue com muita fidelidade o original, o mesmo fez o ilustrador na sua versão gráfica, transformando os cenários atuais que fotografara na visita a Monroeville e produzindo um estilo de desenho tão realista como o de anteriores ilustrações suas, como é o caso de AsAventuras de John Blake: Mistério do Navio Fantasma, de Philip Pullman..Nascido em 1985, a biografia de Fordham não fazia adivinhar que se dedicaria ao desenho pois a sua formação universitária, na Universidade de Sussex, era em Política e Filosofia. No entanto, uma outra novela gráfica iria mudar radicalmente os seus propósitos profissionais: Persépolis. Ao ler o livro de Marjane Satrapi foi-lhe impossível fugir a um destino que agora tem o ponto alto com a versão gráfica de Mataram a Cotovia..As críticas à adaptação foram positivas e a versão portuguesa permite avaliar um romance que se tornou um clássico mal chegou às livrarias e nunca perdeu esse estatuto até à atualidade..Mataram a Cotovia.Harper Lee.Adaptado e ilustrado por Fred Fordham.Editora Relógio D'Água.273 páginas