O vosso livro celebra os 70 anos da NATO, referindo-se à fundação da Aliança Atlântica em 1949, no contexto da Guerra Fria e da oposição entre o Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, e o bloco comunista, dominado pela União Soviética. Até que ponto é vital esta pertença à NATO para as Forças Armadas portuguesas, em termos históricos, mas também à luz da atualidade? Nuno Lemos Pires (NLP): É importantíssimo. Portugal é duplamente beneficiário dessa situação: é fundador, está na origem dos países que iniciaram a NATO em 1949, e Portugal cresce com a NATO. A nossa transição para a democracia também passa por aí, tanto quanto a modernização das Forças Armadas. E a nossa entrega como aliado credível e fiável nas várias missões igualmente. Somos um parceiro credível junto da NATO e crescemos com ela, mas ela também ajudou Portugal a crescer nas suas forças armadas, na sua modernização e na sua democratização, porque abrindo as portas a muitos oficiais que fizeram formações, fizeram exercícios e contactaram com outros países, também contribuíram com um leque de valores e princípios extremamente importantes..Em termos de organização do livro, mais do que abranger os agora já 72 anos da presença de Portugal na Aliança Atlântica, foi pedido aos autores que olhassem para o futuro? João Marreiros (JM): É um livro de textos de autor e foi solicitado que pensassem numa perspetiva de futuro e que evitassem uma história da NATO desde o seu início. O resultado é que aborda mais o pós -Guerra Fria e os desafios atuais da NATO. Há um livro publicado a propósito dos 50 anos da NATO, que fez uma retrospetiva histórica, e assim seria redundante fazer o mesmo.. Que tipo de contributo há no livro? JM: Estão envolvidos contributos de individualidades políticas, de diplomatas, de militares, de académicos, um vasto leque, cerca de 30 individualidades, entre as quais o Presidente da República, o primeiro-ministro, os ministros da Defesa e dos Negócios Estrangeiros, embaixadores que estiveram na NATO, académicos e, claro, membros das Forças Armadas. A NATO não é só militar, é também um tema muito debatido nos meios universitários..Há uma NATO antes da Guerra Fria e uma NATO depois da Guerra Fria. E esta NATO depois da Guerra Fria está a ter desafios novos. A Rússia de hoje não é a União Soviética de 1991 e ao mesmo tempo há a emergência da China, que, não sendo comparável à União Soviética, é já percecionada como uma ameaça pelos Estados Unidos. Como é que este livro olha, do ponto de vista da NATO, para a Rússia e a China? NLP: Olha de forma diferente e convém separar as duas situações. De facto a China não é uma ameaça para a NATO, é um competidor no domínio da segurança internacional. E que representa um desafio para a NATO. Embora alguns países membros a possam considerar uma ameaça, a NATO, como organização, não considera. A Rússia é diferente porque tem feito ações deliberadas junto da fronteira externa da NATO onde põe em causa interesses e direitos adquiridos que nos são próximos, como são os casos da invasão da Ucrânia, da Crimeia. Há uma ação deliberada da Rússia em alguns países da NATO ou em países próximos da nossa identidade europeia e, como tal, a Rússia é considerada como um adversário. A China é diferente, é um competidor importante que tem um crescimento significativo em termos políticos, económicos e militares que provoca alguma apreensão à NATO sobre aquilo que pode causar como efeitos disruptivos. Daí que também exista a preocupação de trazer a China para o diálogo. É preciso dialogar com a China, encontrar parcerias e dizer-lhe que não vá para áreas geopolíticas que não lhe interessam, ou seja, que não vá disputar áreas onde já está uma aliança bem consolidada, como é o Atlântico Norte. Esta diferenciação a NATO tem-na feito e continua a fazê-la de forma bastante clara. As grandes ameaças para a NATO continuam a ser o terrorismo transnacional e obviamente as ameaças híbridas. Temos agora uma novidade que são as tecnologias disruptivas. Há neste momento uma preocupação em saber o que é robótica, nanotecnologia, inteligência artificial, pois tudo isto pode provocar uma grande disrupção em termos de valor. E o que acontece é que potências que começam a crescer como a China, se tomarem a liderança nessas tecnologias, a NATO, que neste momento tem uma coesão muito forte, pode ser ultrapassada. É preciso assegurar que não há um desequilíbrio de poderes global que leve a que haja a ascensão de uma potência que ponha em causa esta organização. É nesta perspetiva que a NATO vê a China..Olhando para a era soviética, a NATO tinha um inimigo ideológico que pretendia se expandir para Ocidente e portanto tinha a oposição de um bloco coerente, que eram os Estados Unidos, o Canadá e a Europa Ocidental. Neste momento, olha-se para a NATO versus Rússia e parece que a NATO se transformou sobretudo num bloco protetor dos antigos países do espaço imperial russo. Não é uma transformação da missão? NLP: Tem razão quando diz que a NATO e o Pacto de Varsóvia tinham de facto uma oposição de vontades muito geográfica, ou seja, tinham quase uma fronteira que definia e que tinha de um lado e do outro aquilo que a opunha. Agora falamos de uma defesa de 360 graus em que a Rússia representa uma direção estratégica. Mas não é a única. A transformação da NATO tem a ver com a transformação do próprio mundo. Hoje estamos num mundo muito mais globalizado e globalizante e portanto as ameaças transnacionais - muito a parte da demanda de recursos, das alterações climáticas, da gestão da demografia - são problemas que obrigam à NATO, como uma aliança que é de defesa coletiva mas também de segurança cooperativa, a olhar 360 graus. É por isso que queremos manter um Ártico livre, seguro e sustentável. Que queremos olhar para o Atlântico navegável e com segurança, que queremos olhar para o Mediterrâneo, e a sul para África, como espaço de desenvolvimento e segurança, que queremos olhar para o Médio Oriente como espaço de prosperidade. E a Rússia é mais um. Esta é a grande diferença da Guerra Fria para agora. Nesse tempo havia dois blocos que se opunham e uma geoestratégia localizada à volta desses poderes e neste momento só há uma grande organização de segurança no mundo, que é a NATO e tem uma postura de 360 graus, o que coloca a Rússia no seu lugar: é mais uma ameaça mas não a única..Os militares que escrevem neste livro tiveram experiências em diferentes operações a envolver a NATO? JM: Não há praticamente militares em Portugal que não tenham tido uma experiência inserida na NATO. Logo desde as academias, a doutrina era NATO, nos equipamentos também beneficiamos de estarmos integrados na NATO, e em termos de cenários operacionais - falo do meu caso, que sou da Marinha - todos nós passámos por missões da NATO, uma das quais a STANAFORLAND, missão que se mantém desde os anos 1980 e que todos os anos envolve navios portugueses..As reflexões que estão no livro só são possíveis porque são militares portugueses enquadrados no âmbito da NATO? JM: São militares portugueses enquadrados e que também chefiaram ações da NATO. Temos atualmente oficiais-generais a chefiar operações da NATO, esquadras, missões no terreno, no exterior. Não há praticamente nenhum militar, principalmente oficiais, que não tenha tido uma experiência operacional fora do território nacional no âmbito de uma missão da NATO..No seu caso também? JM: Foi logo. Logo após a escola, a minha primeira missão foi numa fragata da esquadra do Atlântico, em 1990, 1991. Depois começou a Guerra do Golfo e destacamos dessa missão para ir para o Mediterrâneo, aí já fora da NATO mas também em missão internacional..E no seu caso quando é que foi a primeira experiência NATO? NLP: Estive cinco anos em unidades NATO. Três anos no corpo de intervenção rápida em Valência, Espanha, e dois anos no CINCIBERLANT, aqui em Oeiras, em que era o chefe de gabinete de um almirante americano. Além disso, estive no Paquistão; depois no Afeganistão, seis meses entre 2009 e 2010, e ainda fiz parte da primeira missão no Darfur, que foi o primeiro auxílio da NATO à União Africana para preparar forças e transporte estratégico. Estive na única missão verdadeiramente de Nature Response Force, no Paquistão, em 2005, de ajuda às vítimas do terramoto. E foram cinco anos dentro de quartéis-generais de unidades da NATO..Quando fala de uma experiência NATO como militar não é sinónimo de uma experiência americana? JM: Não, é completamente transnacional. A força de que fazíamos parte era constituída por navios de dez, 12 países. Além de americanos, holandeses, canadianos e franceses, etc. Uma força muito heterogénea em termos de nacionalidades..Uma das críticas que é feita pelos Estados Unidos aos países europeus da NATO é praticamente não cumprirem a fasquia dos 2% do PIB em investimento em defesa. Isso significa que os europeus, o governante mas também o cidadão comum, têm menos consciência do que os americanos da necessidade de umas Forças Armadas capazes de defender a soberania? NLP: São visões diferentes dos dois lados do Atlântico, que têm que ver com perspetivas geopolíticas. Os Estados Unidos e o Canadá têm uma perspetiva global sobre o mundo e daí a afetação de recursos e a própria posição geopolítica ser muito mais dominadora no investimento de defesa. A Europa está em paz desde o fim da Guerra Fria e até se chegou a anunciar o fim da História. A perceção de grande parte dos europeus quando caiu o muro de Berlim, porque na memória estão a Guerra Fria, a I e a II Guerras Mundiais, era que depois da Guerra Fria e de duas guerras mundiais a necessidade deste instrumento militar não fazia sentido. Daí que tenha havido de uma forma genérica um grande desinvestimento nas Forças Armadas na década de 1990. Mas inverteu-se com o 11 de Setembro e desde 2014 com a Cimeira de Gales, em que os países se comprometeram a chegar a 2% do PIB até 2024. E tem havido uma subida constante de todos os países. Não quer dizer que todos vão atingir os 2%, não vai acontecer isso, mas está toda a gente numa tendência crescente. O mundo apercebeu-se dos tais desafios 360. Não se pensa hoje em dia que toda a defesa é coletiva, essa é quando alguém nos ataca. Hoje em dia têm mais importância as outras duas dimensões da NATO: a gestão de crises e a segurança cooperativa..A NATO é a aliança militar mais duradoura da História e provavelmente a mais ampla. Pode dizer-se? NLP: Sem dúvida. E não há outra, uma formulação como esta, com estruturas partilhadas, estamos a falar de microestratégia, quartéis conjuntos. Ou seja, não estão só lá os três ramos das forças armadas de cada país, estão lá os países representados nos vários cargos, postos e funções. Quando estamos num quartel-general da NATO, de nível estratégico, como os de Mons e de Norfolk, estão lá todas as nações representadas e todos os ramos das Forças Armadas e os novos domínios também. Ou seja, estão lá representantes de Terra, Mar e Ar e Ciberespaço também, porque neste momento o Ciberespaço e o Espaço já são domínio da NATO, passaram a fazer parte do complexo de defesa e segurança que a NATO também cuida. Depois quando vai para o nível operacional, a mesma coisa..Num cenário de conflito está tudo preparado para que militares de diferentes países atuem coordenados. Ou seja, não haveria problemas de cadeia de comando? NLP: A beleza da NATO, seja para a defesa coletiva, seja para a segurança cooperativa, é que já temos identificado o tal plug & play. Os países que dão as forças já sabem onde vão entrar. E lá está, não entram só com pessoas e com meios, entram com organização, estrutura, princípios, cadeia de comando, comunicações compatíveis, formas de reagir - e isto é a grande mais-valia da NATO: é um corpo coeso porque as pessoas dão organizadamente..Se houvesse uma agressão neste momento a um país membro da NATO e fosse necessário haver uma reação, está tudo pensado? JM: Está. Temos um sistema que tem a ver com o planeamento estratégico e cenarização estratégica. A NATO planeia com base em cenarização. Ou seja, levantam-se todos os cenários possíveis de agressões à NATO ou, não sendo agressões, riscos. Por isso é que há ameaças e há riscos. Nesse caso prevê-se ao máximo, mas sabe-se que na guerra os planos são todos válidos até ao momento em que ela começa....Não tendo a NATO ambições globais, quando foi para o Afeganistão não saiu fora da esfera tradicional de ação? E temos agora esta retirada decidida pelos Estados Unidos, 20 anos depois do 11 de Setembro que originou a intervenção contra os talibãs. É um alerta de que a NATO tem limites à sua ação , se esticou demais? NLP: Não tem a ver com isso. Estamos a falar do out of area, ou seja, a NATO por princípio tem de garantir a defesa dos seus membros e essa é a sua missão fundamental. Mas além disso participa em gestão de crises e segurança cooperativa, nomeadamente naquele tipo de ameaças transnacionais que não olha a fronteiras. Numa ameaça terrorista, por exemplo, o perigo é haver santuários em determinadas zonas que possam criar ameaças, como vimos com o Daesh no Iraque e na Síria, que criou uma ameaça de tal maneira gigante que chegou a criar armas químicas e nucleares. Uma aliança como a NATO obviamente que colabora na segurança cooperativa também em espaços mais alargados do que o seu in area. No caso do Afeganistão a NATO esteve lá, não desde o início, mas está lá e garantidamente que as populações que vivem no Afeganistão, vivem melhor do que há 20 anos. As crianças vão à escola, as mulheres têm os mesmos direitos dos homens na maior parte das circunstâncias. Claro que está longe de estar resolvido mas isso não quer dizer que seja overstretch, são lógicas geopolíticas em que depois de algum nível de estabilização convém que sejam os parceiros regionais a assumirem as responsabilidades para que a NATO possa pensar em problemas mais próximos, como o Mediterrâneo e o Atlântico. Não é uma lógica de retirada, é uma lógica evolutiva e de passar a outros campos, a outras prioridades..É errado apresentar a saída do Afeganistão como derrota da NATO? NLP: Não acho que haja derrota nenhuma da NATO. Falar em derrota significa que alguém tinha vencido e outro tinha perdido. A NATO não iniciou o conflito, quem o começou foi a Al-Qaeda, utilizou um santuário com base num regime absurdo que eram os talibãs. Pergunto-me: neste momento existe a possibilidade de a Al-Qaeda ter ali uma área completamente segura para representar os terroristas em qualquer parte do mundo? Parece-me que não. Neste momento os talibãs controlam o território com leis absurdas? Também me parece que não. Falar em vitória e derrota são termos que não fazem sentido nesta questão. Estamos aqui a falar de evoluções geopolíticas normais. Passou-se de um estado de 2001 para um estado de 2021... a população está longe de estar protegida e todas as organizações mundiais e regionais estão cientes de que há um esforço grande a fazer, mas já não se compara aquele estado de ameaça que havia relativamente aos povos porque normalizou-se a situação. E o resultado final da presença da NATO ali foi empowerment no âmbito da justiça, da economia, da diplomacia e também do ponto de vista militar. Ajudou-se as forças afegãs a criarem resiliência. Veremos se foi ou não suficiente mas já há compromisso político para continuar a apoiar o Afeganistão, não com esta presença física da NATO mas de outras formas..leonidio.ferreira@dn.pt