"A China é uma superpotência que planeia realizar o sonho nazi de criar o super-homem"
José Rodrigues dos Santos gaba-se da investigação que realiza antes de escrever cada livro. O mais recente, Imortal, trata do domínio da internet sobre a humanidade e concretiza algumas das piores previsões que, por exemplo, Yuval Harari tem vindo a anunciar nos seus ensaios. O romance está pronto há mais de seis meses e nele pode ler-se que a Google sabe do aparecimento das epidemias de gripe antes das autoridades devido à recolha de dados pelo seu motor de busca. Curiosamente, na semana passada surgiu uma entrevista num jornal português em que uma cientista alertou para essa situação - sem ter lido Imortal.
O romance, repleto de conjeturas sobre o perigo da internet e, principalmente, da emergência da inteligência artificial, é um alerta para o que nos espera. Aliás, o autor põe na boca do seu protagonista e do amigo americano com quem divide a ação longas dissertações sobre um futuro para breve e o leitor fica consciente de para onde o mundo contemporâneo se encaminha, informações trabalhadas sobre estudos e situações reais ou muito próximas de acontecer.
Em entrevista ao DN, José Rodrigues dos Santos desvenda do que trata Imortal, romance lançado no fim de semana, e que é situado nos cenários de Lisboa e da China. E alerta: "O último aviso que Stephen Hawking fez antes de morrer foi sobre a inteligência artificial e Bill Gates já avisou que estamos à beira de perder o controlo das máquinas. Elon Musk também está muito preocupado com o problema. Muitas personalidades de renome nesta área consideram a inteligência artificial muito mais perigosa do que as armas nucleares. Enquanto romancista, era meu dever expor a situação e explicá-la aos leitores."
Este livro, Imortal, faz lembrar os de ficção científica dos anos 1960. Por isso é que coloca na entrada que "toda a informação científica deste romance é verdadeira"?
O problema é que não estamos a falar de ficção científica, mas de atualidade pura e simples. A imortalidade encontra-se de facto ao nosso alcance. A ciência está à beira de vencer a morte e muitos cientistas realmente acreditam que o primeiro humano que nunca morrerá já nasceu. O professor Arlindo Oliveira [presidente do Instituto Superior Técnico], um dos maiores peritos no assunto em Portugal e revisor científico deste romance, disse-me que, com exceção de um detalhe da intriga, tudo o que neste romance é apresentado já existe ou está prestes a existir. O extraordinário é que a maioria das pessoas não o sabe. Daí que seja necessário esclarecer o leitor à cabeça de que "toda a informação científica deste romance é verdadeira". Porque é. Porque acredito que cada pessoa gostará de saber que pode viver muito mais tempo do que se pensava possível e que isso está à beira de se tornar uma realidade. Porque sei que saber isso irá ajudar cada um.
A nota final surpreende pela sua dimensão. Sem ela, os leitores não acreditariam no que leram?
Os meus romances envolvem sempre notas finais detalhadas que ajudam o leitor a compreender o contexto verídico do tema que o romance aborda. Uma vez que estamos a falar de obras de ficção, parece-me útil, e interessante, esclarecer o leitor sobre o que há de verdadeiro na obra de ficção que acabou de ler. O que, no caso de Imortal, é praticamente tudo. E considerando a importância do tema, a possibilidade de prolongarmos a vida a um ponto em que podemos nunca morrer, creio que se justifica um enquadramento não ficcional da questão.
Foi necessário uma maior investigação antes de escrever este romance ou repete-se o tempo que as anteriores lhe ocuparam?
Todos os meus romances são muito pesquisados, como sabe quem me lê habitualmente, e este não é exceção.
George Orwell nunca imaginaria que o perigo viria da China?
Ninguém imaginaria, creio. Quando fui viver para Macau, em 1979, a China era um país atrasado, muito pobre, totalmente terceiro-mundista. Hoje, a China é uma superpotência que planeia realizar o sonho nazi de criar o super-homem e tem os meios para o fazer. Além disso, dispõe de 300 milhões de câmaras espalhadas pelo país para vigiar a sua população. A China mistura as distopias de Orwell e de Huxley a um ponto que ninguém imaginaria possível.
Acredita que a China está à frente da inteligência artificial geral ou incorporou esse país devido ao argumento que tinha em mente?
A China ainda não está à frente dos Estados Unidos na inteligência artificial, mas em breve estará. Por exemplo, na China muitos restaurantes já não aceitam pagamento em dinheiro. Os pagamentos fazem-se através de reconhecimento facial. Ou seja, o facto de Imortal falar sobre o que se está a passar hoje na China, e que os europeus desconhecem, não resulta de necessidades da intriga mas da necessidade de explicar a realidade que a maior parte das pessoas desconhece. Alheios às inibições éticas existentes no Ocidente, os chineses estão a fazer experiências científicas que vão mudar a face da humanidade. Já manipularam geneticamente embriões humanos para os "melhorar" e estão a inserir células cerebrais humanas em embriões de chimpanzés, experiências destinadas a criar super-homens superinteligentes. Isto não é ficção, está a acontecer e é reportado em publicações científicas respeitáveis.
Os seus livros estão a deixar os enredos mais "históricos" como os de A Filha do Capitão ou A Vida num Sopro para se focar nos avanços e perigos científicos. É um destino irreversível?
De modo nenhum. O meu romance do ano passado, A Amante do Governador, é um romance histórico que decorre durante a Segunda Guerra Mundial em Macau. No outro dia, uma leitora com 90 anos escreveu-me a dizer que viveu em Macau nesse tempo, era ainda criança, e lembrava-se de ver o coronel Sawa e a sua concubina chinesa, ambos personagens centrais desse romance, a passarem a Porta do Cerco e entrarem em Macau. Os romances históricos, sempre baseados em acontecimentos verídicos, continuam bem presentes na minha obra.
Depois do que escreve neste livro ainda mantém a sua ligação à internet ou toma outros cuidados?
Da mesma maneira que uma mão não trava o vento, o que quer que eu faça não travará o que se está a passar na internet. O meu romance coloca uma possibilidade que, embora perturbadora, é encarada muito a sério pelos cientistas: e se a internet de repente se tornar consciente? Pode parecer absurdo, mas há muitos cientistas que conhecem o problema a fundo e que admitem seriamente esta hipótese. O último aviso que Stephen Hawking fez antes de morrer foi sobre a inteligência artificial e Bill Gates já avisou que estamos à beira de perder o controlo das máquinas. Elon Musk também está muito preocupado com o problema. Muitas personalidades de renome nesta área consideram a inteligência artificial muito mais perigosa do que as armas nucleares. Enquanto romancista, era meu dever expor a situação e explicá-la aos leitores.
Tem uma fase perturbadora: "Isto vai acontecer no nosso tempo de vida!" Acredita?
Não é uma questão de acreditar, é uma questão de ler os sinais do tempo. Antigamente ocorriam mudanças fundamentais de milénios em milénios. Entre a invenção da agricultura, da roda e da escrita passaram-se milhares de anos. Mas tudo começou a acelerar. No século XX as mudanças eram já de geração em geração. Agora há mudanças incríveis dentro de uma única geração. Quando comecei a fazer jornalismo, os telefonemas à distância eram muito complicados, havia máquinas de datilografar e telexes. Depois apareceram as máquinas de escrever elétricas e logo a seguir os computadores pessoais e imediatamente depois a internet. Um dia ouvi um telefone a tocar no metro de Londres - o primeiro telemóvel que vi. Depois os telemóveis tornaram-se pequenos, a seguir já enviavam fotografias e num instante tornaram-se computadores. Já decorrem experiências para fazer implantes cranianos que nos permitem, através de sistema Bluetooth, entrar nos computadores por pensamento e assim comunicar com outras pessoas também por pensamento. Tem a noção de como está tudo a acelerar? As mudanças dispararam e daqui a cinco anos o mundo mudará tanto quanto mudou nos últimos dez - e olhe que nos últimos dez já mudou muito. Parece que o Facebook já é uma coisa antiga e o facto é que só apareceu em 2009, há apenas dez anos! Mudanças dramáticas sobre o que é ser humano vão ocorrer "no nosso tempo de vida", claro.
Faz uma previsão de a humanidade quase triplicar o seu tempo de vida. Também acredita?
Já está a acontecer. A esperança de vida do homem de Cro-Magnon, por exemplo, era de 18 anos. No início do século XX era de 50 anos nos Estados Unidos. Quanto é agora? Oitenta? Noventa? E, com todas estas mudanças, quanto vai ser daqui a dez ou 20 anos?
De tudo o que colocou no livro, o que duvida que possa vir a acontecer?
Quer que seja sincero? Acho que vai tudo acontecer. Pelos motivos que o romance explica, incluindo na nota final.
Recupera uma frase de Vernor Vinge; "Não podemos impedir" o momento em que a inteligência artificial vai gerar uma singularidade. É um tema que dará para outro romance ou este assunto está encerrado por agora?
Não tenho nada planeado, mas quem sabe? O tema é riquíssimo e os escritores têm a obrigação de ajudar a desvendar o mundo em que vivemos. O futuro é uma treva e a literatura uma luz que a rasga.
Não é costume ver uma cidade como Lisboa atacada tão violentamente como acontece noutras partes do mundo. Um "fogo-de-artifício" necessário ao livro?
Imortal é um romance em torno de um tema real. A informação prestada no livro é verídica, mas esta não deixa de ser uma obra de ficção. Se José Saramago pode lançar o caos em Lisboa à custa de uma epidemia de cegueira, o que me impede de fazer o mesmo à custa de uma epidemia de inteligência artificial? Ou também vai acusar Saramago de usar fogo-de-artifício?
Aceitou bem que o Metro de Lisboa se recusasse a dar-lhe informações sobre os seus protocolos de segurança?
Claro. Sobretudo, percebi que tinha tocado em cheio num ponto muito sensível.
Escreveu este livro a pensar num futuro filme?
De modo nenhum. Sou um romancista, não um cineasta. Só sou cineasta no sentido em que, usando as palavras, procuro que o leitor realize um filme na sua cabeça. Escrevo por imagens e são elas que enchem a mente do leitor enquanto me lê.
Como surgiu a ideia?
Talvez quando escrevi A Fórmula de Deus. De certo modo, este romance é uma continuação de A Fórmula de Deus, no sentido em que mostra como vão acontecer algumas das previsões feitas nesse livro.
José Rodrigues dos Santos
Editora Gradiva