"Esta é a casa do meu coração, a casa do meu coração", diz Elsa Laboreiro, 60 anos, fadista residente do Café Luso, a mais antiga casa de fados de Lisboa. E neste momento, o coração está "desfeito", assume a artista com garganta presa e lágrimas a querer saltar dos olhos. O estabelecimento está fechado há mais de um ano devido à pandemia e não há previsões relativamente à data de reabertura. "As expetativas e as perspetivas não são animadoras, mas estamos cá para lutar. O fado tem sobrevivido décadas e décadas e décadas e não vai ser esta pandemia que nos vai deitar abaixo", diz Nuno Fernandes, diretor-geral do Fado & Food Group, proprietário desta e de outras três casas de fado em Lisboa, tentando manter o ânimo perante a incerteza. Mas está difícil..O Café Luso, fundado em 1927, ainda na Avenida da Liberdade - mudou-se para o Bairro Alto em 1939 - está em risco. "Estamos em risco, estamos. Não posso dizer que não estamos. Mas não é de agora. Já estamos desde há um ano e tal em risco", admite o responsável. Os sócios do grupo fecharam o Café Luso, o Timpanas, a Adega do Machado e o Clube de Fado ainda antes do primeiro confinamento, em março do ano passado, para garantir a segurança de todos. Mas quando o país desconfinou, só as portas do Clube de Fado, em Alfama, a aquisição mais recente do grupo, se voltaram a abrir. "Mas sempre com muito pouco resultado porque as pessoas têm medo, não vão jantar fora, não há turistas", assume Nuno Fernandes..O turismo representava mais de 80% da clientela do Café Luso. "Logo à partida, 80% do nosso mercado desapareceu. Temos 20% de mercado, mas esses 20% têm medo de sair à noite e a cada dia não sabem se podem circular entre concelhos, ou se podem ou não sair de Lisboa... As incógnitas são tantas que as pessoas optam, por segurança, por ficar em casa". Por isso, não tem dúvidas: "A sobrevivência desta e de todas as casas de fado de Lisboa está comprometida. Nós estamos no fio da navalha, entre o precipício e... Estamos naquele fio em que de um dia para o outro pode não se conseguir. Basta cortarem-nos algum tipo de apoio e a partir daí não funciona"..Elsa Laboreiro ouve estas palavras e reconhece o "esforço subre-humano dos sócios para conseguir manter a esperança de voltar a trabalhar - sabe lá Deus quando! - neste momento de adversidade". "Eles têm conseguido manter essa esperança viva. Acredito que vamos conseguir, mas os danos psicológicos que isto está a provocar a todos são tremendos", diz..Entre os quatro estabelecimentos são quase 80 postos de trabalho. E os apoios tardaram. "Não foram fáceis de obter e demoraram muito tempo a chegar. Posso dizer que só chegaram este ano, em março, portanto demorou tempo. Até lá, contámos com o nosso parceiro bancário. No fundo, cavámos aqui um buraco gigante de dívida ao longo deste ano e meio, sem perspetiva de saber quando é que o vamos conseguir pagar, mas tem sido assim, estamos a tentar", conta Nuno Fernandes, cujo rosto se transfigura quando recorda as noites pré-covid no Café Luso, espaço que ocupa as antigas adegas e cavalariças do palácio Brito Freire, um edifício setecentista que resistiu ao terramoto, cujas colunas em mármore e teto em abóbadas resultam numa acústica singular..Memórias de outros tempos."Viviam-se noites de fado incríveis, a começar às 19h00/19h30, com filas de pessoas para entrar - era curioso ver aqui a entrada das pessoas. Cem pessoas, 120, 130, o que fosse, a sentir o que é o fado, a sentir o que é a nossa música, a nossa alma de Lisboa. Ao longo da noite, as pessoas iam saindo e vinham outras, que vinham tomar as suas bebidas depois de jantar e que podiam ficar aqui até à uma, duas da manhã. Tínhamos tertúlias... coisas que hoje em dia não são possíveis porque às 22h30 temos de ter as pessoas fora da casa. Não funciona para o conceito do que é uma casa de fado. O fado não se coaduna com hora marcada para acabar", diz, fazendo referência às restrições nos horários que existem atualmente.."Do que eu sinto mais falta? É de tudo. É da ambiência desta casa, é de ter imenso que fazer, de ver chegar imensas pessoas, de as ver sair e ver chegar outras. Sinto falta desse ritual todo. Obviamente de cantar, de ouvir os meus colegas cantarem, de ouvir os músicos, de ouvir as guitarras", confessa Elsa Laboreiro, que aqui cantou pela primeira vez aos 18 anos e que já leva quase 40 anos de casa, com um um interregno pelo meio. Continua a cantar "aqui dentro" - e aponta para o coração - e exercita a memória para não esquecer as letras dos fados, como não esquece aquele dia, em 1987, em que conheceu Amália Rodrigues, ali mesmo, no Café Luso. "Esse dia foi um êxtase autêntico para mim. Sei lá como é que eu me sentia, nem sei explicar. Eu até caí, trazia flores para ela, escorreguei ali na rua, sei lá...", ri-se..Foi ali, em 1955, que Amália gravou, pela primeira vez, um disco ao vivo. "Basicamente, todos os nossos artistas passaram aqui. Qualquer nome que diga passou aqui", resume Nuno Fernandes..Com um "desespero por não poder exibir-se perante o público" e com saudades de "tocar o coração das pessoas" e de receber como recompensa essa vitamina que são as palmas, Elsa Laboreiro, mantém a esperança de que o Café Luso volte a abrir e a encher-se de gente. "Ah caramba, nós vamos dar o litro".