Que os livros levam um leitor em viagem é um lugar-comum. Que o leitor leve a sua biblioteca em viagem por três continentes já é um caso bem mais raro, mas foi o que aconteceu à biblioteca de Luís Filipe Castro Mendes, que antes de assentar nas estantes da sua casa em Lisboa viajou para o Rio de Janeiro e daí para Budapeste, mudou-se para Nova Deli e depois para Paris, para acabar instalada em Estrasburgo até regressar a Portugal em 2016. Uma biblioteca nómada de uns bons milhares de exemplares - 20 a 30 mil por esta altura - nos passos do diplomata que descobriu cedo a leitura e que, talvez consequência das deambulações pelo mundo, vê nela não tanto um espaço físico, mas uma memória vívida.."A minha relação é com os livros, com cada um deles. A biblioteca como organismo... não é bem aquela biblioteca do [Jorge Luís] Borges, os corredores que se emaranham, que se perdem noutros corredores, é mais uma coisa ambulante, que anda comigo, de referências, personagens, situações, as memórias dos versos. A biblioteca está na minha cabeça", conta ao DN..Ministro da Cultura entre 2016 e 2018, Luís Filipe Castro Mendes iniciou em 1975 uma carreira diplomática que passou por Luanda, Madrid, Paris. Em 1998 assumiu as funções de cônsul no Rio de Janeiro, onde ficou até 2003. Depois foi para Budapeste como embaixador na Hungria e mais tarde para Nova Deli, na Índia. Em 2010 assumiu a chefia da representação de Portugal junto da UNESCO e dois anos mais tarde junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. Publicou a sua primeira obra poética, Recados, em 1983..O gosto pelas letras acompanha-o desde tenra idade. "Tive uma infância muito fechada na leitura, de tal forma que até me isolava um bocado das pessoas, era fechado nos livros. Na altura era a única evasão que havia, já tinha 7 anos quando começou a haver televisão em Portugal. Mas não foi só por isso, os livros acompanharam-me toda a vida". Filho de um magistrado, Castro Mendes começou na infância a vida de nómada que viria a reproduzir já adulto - fruto da vida profissional do pai, mudava de cidade a cada três, quatro anos. "Há um corte, e esse corte sente-se, mas ao mesmo tempo há uma descoberta de outras coisas, de outras pessoas. Há uma época em que se sente mais a separação, na adolescência é complicado o corte com os amigos, fazer novos amigos. Foi uma coisa que reproduzi depois na minha vida de diplomata, uma vida de nómada, aí internacional, os meus filhos também sentiram isso.".O círculo de amizades renovava-se, já os livros eram companheiros mais perenes: "Tendia muito a fechar-me com os livros, a andar por esses mundos imaginários todos, a imaginar as personagens que os romances me traziam.".Começou a ler muito cedo, das primeiras leituras recorda O Feiticeiro de Oz, teria "uns 5, 6 anos". "Lembro-me de me comover muito com O Coração, de Edmundo de Amicis, de gostar de viajar com os patos em A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia, de Selma Lagerlöf, da banda desenhada, que comecei a ler com Tintin", relembra. O primeiro livro que comprou também lhe ficou na memória - O Capitão Fracasse, de Théophile Gautier, então publicado na coleção Biblioteca dos Rapazes..Depois vieram os romances: "São realmente uma grande aprendizagem da vida, podem levar-nos a idealizar, a imaginar a vida de uma maneira romanesca, mas dão uma aprendizagem do humano que é muito importante". Já na adolescência, recorda A Montanha Mágica, de Thomas Mann, ou Os Maias, de Eça de Queiroz, exemplo de um choque entre o mundo que se lhe abria nas estantes da biblioteca de casa e o que ditava a convenção: "Na minha escola lembro-me de que era proibido ler os livros do Eça de Queiroz porque eram perversos. Fiquei muito impressionado, eu lia-os na biblioteca dos meus pais, na biblioteca da escola não se podia pegar neles porque aquilo era uma pouca-vergonha.".Não foi o único embate deste género. Outro foi com um (mais um) dos livros que lhe ficaram para a vida: "Quis fazer um trabalho no liceu sobre Álvaro de Campos. Na altura foi considerado muito estranho interessar-me por um poeta tão estranho, tão avesso às normas gerais. Não quiseram que eu fizesse o trabalho sobre o Fernando Pessoa, havia um espírito de desviar a nossa atenção das coisas modernas." Solução? "Fiz sobre o Bocage. Gosto muito de Bocage, é um grande poeta." Mas ficou-lhe o autor, o heterónimo e o livro - "Hoje há edições críticas, edições muitíssimo mais completas, mas eu continuo muito fixado nestas edições que li em mais novo. Fiquei fiel à leitura de infância, embora reconheça que é bom ver que afinal o Fernando Pessoa queria pôr mais isto, que o texto completo afinal estava assim, o Gaspar Simões arranjou-o de outra maneira. Mas eu continuo ligado a este livro." Como às Elegias de Duíno, de Rilke, ou O Ofício de Viver, de Cesare Pavese..Há outros, "leituras seminais, encontros que temos e que marcam a nossa vida", como foi o do ainda jovem Luís Filipe com o Pedro, o André e a Natasha de Guerra e Paz, "aquele triângulo fantástico em que nos revemos nuns e noutros". Mais tarde, "já numa adolescência mais avançada" Augusto Abelaira, Agustina Bessa-Luís - "Lembro-me de me ter provocado um choque tão grande como, depois, o Álvaro de Campos, o Livro Sexto de Sophia... E, já mais crescido, Jorge de Sena.".À leitura seguiu-se, bem cedo, a escrita: Castro Mendes começou aos 15 anos a publicar poemas no suplemento juvenil do Diário de Lisboa. E se estes são os livros que o fizeram leitor, há os livros que fizeram o escritor, o poeta? A obra de Castro Mendes responderia por si à pergunta, mas diz o autor: "Existem, absolutamente, há livros que nos fazem escritores. Há um livro muito importante na minha vida, que é o Tonio Kröger, do Thomas Mann. Era a história de um menino que se interessava por coisas que os colegas de escola não se interessavam, tinha umas paixões por meninas que também não se interessavam pelas coisas literárias e bonitas que ele se interessava. Devo ter-me identificado com essa criança, foi um livro importante na minha formação de escritor. Melhor dizendo, na minha apetência para escrever. Há A Cidade das Flores, do Abelaira...".Mas voltemos ao colecionador. Ao "acumulador de livros", como se designa, que não bibliófilo: "Não, não sou propriamente um bibliófilo. Não compro um livro pela antiguidade, ou pela edição rara, ou pelo valor como livro. Estimo a beleza de um livro, gosto evidentemente de boas capas - e acho que já tivemos, em Portugal, capas muito melhores do que as que temos atualmente, há capas horrendas - mas o que me atrai é o que está lá dentro. Tenho uma relação desprendida do objeto livro.".Aos 70 anos um acumulador consegue acumular mesmo muitos livros. Luís Filipe Castro Mendes estima que sejam 20 a 30 mil. Quando voltou a Portugal, a ideia era juntá-los todos na biblioteca em casa, mas foi demovido pelo engenheiro que o avisou que não havia chão que aguentasse tanta estante. Ainda assim ficaram estantes em todas as salas e a solução foi comprar quatro boxes de garagem e passar para lá parte dos exemplares. Não será uma ideia muito romanesca de biblioteca, mas Castro Mendes já observou que não tem essa visão e a prova disso é que para esses espaços passaram nada menos do que os livros de poesia. Os mesmos que o poeta se esforça ainda por ordenar, visto que encaixotar e desencaixotar livros de três em três anos ao longo de décadas resulta em quê? "Numa grande desordem.".E eis-nos chegados ao dilema de qualquer biblioteca, palco para brilharem espíritos meticulosos ou simplesmente uma enorme dor de cabeça para os menos dados às tarefas de classificação. Luís Filipe Castro Mendes conta que tenta ser meticuloso. Primeiro, a divisão por áreas: ficção, ensaio, poesia, literatura infantojuvenil, para citar os grandes grupos. Dentro destes, divisão por autores portugueses e estrangeiros, depois por cada nacionalidade e, dentro desta, por ordem alfabética por apelido do autor. "Estou agora a classificar a poesia, já tenho todas as antologias e toda a poesia portuguesa. Vou entrar agora na poesia de expressão portuguesa, primeiro os africanos, depois os brasileiros, depois será a poesia espanhola...Poderia ocupar-me todos os dias com este trabalho.".E as ovelhas negras, os livros de que não gosta? "Se não gosto deixo a meio. Há várias maneiras de não gostar: posso não me identificar, mas reconheço que é bom, ou não gostar mesmo, mas deitá-lo fora não deito. Mesmo em relação à poesia, tenho estado a arrumá-los e encontro algumas coisas que enfim... mas não consigo." O poeta e ficcionista diz ter uma superstição: "Acho que no momento em que eu deitar fora um livro de poesia alguém estará a deitar fora um livro meu. As pessoas podem deitar fora os meus livros... mas é uma espécie de superstição que me leva a guardar coisas inenarráveis." Que acabam na estante: "Ao lado do Alexandre O"Neill pode estar um livro que eu acho inenarrável. Ao lado da Sophia [de Mello Breyner] pode estar uma criatura que fez uns versozinhos. Mas não sou capaz, tenho muita dificuldade em deitar fora um livro.".Alguns, os que juntou mais por dever de ofício, foram doados. Mas nem sempre as coisas correram bem: "A determinada altura resolvi pegar em livros, sobretudo de política, e ofereci-os a uma biblioteca, não digo qual. Dez anos depois os livros continuavam nos mesmos caixotes, na mesma cave, e isso entristeceu-me." "Tenho gosto em ter estes livros todos", diz Luís Filipe Castro Mendes. "Perguntar-me-á: para quê? Pois, não sei. Sobretudo quero que os livros que tenho sirvam para alguém, sirvam para alguma coisa."