"A biblioteca da Academia tem a maior coleção de manuscritos árabes do país" 

Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, o historiador José Luís Cardoso, quer, nos três anos do seu mandato como presidente da Academia das Ciências de Lisboa, partilhar com o público em geral a riqueza do património da instituição.
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Tomou posse este ano como presidente da Academia das Ciências de Lisboa, uma instituição que nesta década - em 2029 - vai celebrar 250 anos. Consegue sintetizar qual é o momento histórico em que aparece a Academia em Portugal?
A Academia é fundada em 1779, num contexto europeu que é o do século das luzes, onde a ânsia e a vontade de conhecimento científico marcam o interesse e a disponibilidade para a criação de instituições destinadas à promoção dos saberes científicos e, no caso da Academia das Ciências de Lisboa, do conhecimento que pudesse ser útil. O lema da Academia é de facto esse, da importância e utilidade do ​​​​​​​conhecimento para o bem comum e felicidade pública.

Estávamos no reinado de D. Maria I, ou seja, tinha acabado o reinado de D. José e o Marquês de Pombal perdera a sua influência. Muitos exilados do tempo pombalino regressaram e alimentaram também a sociedade científica da Academia.
Sim. Entre os quais os dois nomes que habitualmente identificamos como fundadores e que foram João Carlos Bragança, Duque de Lafões, e José Correia da Serra. Lafões viajou pela Europa, era um aristocrata culto, viveu em Londres e em Viena e fez vários périplos na Europa, cultivando-se, cuidando da sua educação e percebendo a importância pública das ciências. Conheceu Correia da Serra em Itália. Correia da Serra viveu a sua juventude em Nápoles, que foi um dos centros propulsores do Iluminismo europeu, onde despertou o seu interesse pelas ciências. Além de Lafões e de Correia da Serra há outra figura muito importante na criação da Academia que é Domingos Vandelli. Este nome pode não ser muito familiar, mas Domingos Vandelli foi contratado ainda por Pombal para o Colégio dos Nobres. Acabou por ter um papel importante na criação do Jardim Botânico da Ajuda e foi um dos principais artífices da reforma pombalina da Universidade de Coimbra, em 1772. Que previa a criação, essa reforma, de uma congregação geral das ciências. Era uma espécie de instituto de investigação destinado ao aprofundamento científico e especulação filosófica. E foi Vandelli quem trouxe para Lisboa, vindo de Coimbra, esta vontade de criar uma instituição dedicada à investigação científica. Por isso, quando às vezes se fala na rutura de D. Maria, em relação ao reinado de D. José, ou na tentativa de contrariar aquilo que era a orientação pombalina anterior, temos, também, de valorizar este aspeto de continuidade. Isto é, não se pode pensar a Academia de Ciências de Lisboa sem pensar na reforma pombalina de 1772, porque são os homens educados nessa reforma coimbrã que vêm instituir a Academia na capital.

Falou do abade Correia da Serra, que era realmente um grande cientista português desta passagem do século XVIII para o XIX - vai ser mais tarde embaixador nos Estados Unidos, amigo até de Thomas Jefferson. Há também uma outra grande figura, ligada à independência do Brasil, que é José Bonifácio de Andrada, outro grande cientista português, até decidir voltar ao seu Brasil natal e ser um dos campeões da causa da independência, com D. Pedro. Qual é a memória de José Bonifácio aqui na Academia?
José Bonifácio teve um papel também importante nesta instituição, posterior a Correia da Serra, como secretário-geral. Ele era um naturalista conhecido pelos seus trabalhos na área da Mineralogia. Viajou também muito e educou-se pela Europa, com o que hoje equivale a uma bolsa de investigação, e acabou por se associar à causa da independência do Brasil, sobretudo depois da Revolução Liberal de 1820.

O professor estudou muito o período da Revolução Liberal, tem vasta obra publicada sobre o tema. A ida da Corte para o Brasil em 1807, após as invasões napoleónicas, a Revolução Liberal de 1820, a guerra entre liberais e absolutistas depois da morte de D. João VI, todas estas convulsões políticas afetaram de alguma forma a Academia?
A Academia das Ciências, ao longo destes quase 250 anos, foi atravessando diferentes regimes políticos e teve sempre a capacidade de se adaptar. Porque fez sempre da ciência, da cultura e das letras o seu principal objeto de trabalho. No fundo, acabou por estar mais interessada em desenvolver as suas prerrogativas no plano científico e no plano literário e não em reivindicar um estatuto de instituição política que pudesse, de alguma forma, ser beneficiada ou prejudicada pelas suas ligações a qualquer regime político. Mas não há dúvida nenhuma que a Academia acabou por sentir as consequências do seu envolvimento, maior ou menor, na vida política portuguesa, o que marca períodos na sua história em que assistimos a momentos de grande relevância e grande pujança e a outros períodos de menor impacto na vida pública portuguesa.

No período das lutas liberais, há um momento difícil para a Academia - porque D. Miguel é o presidente, dado a regra ter passado a ser alguém da família real -, mas a verdade é que, no final, dessa época conturbada, a instituição ganha o edifício onde estamos, aliás, esta biblioteca onde estamos. Ou seja, beneficia da lei da extinção dos conventos, mas, por acaso, até estava instalada cá ainda antes. Pode explicar esse momento?
Sim. A Academia das Ciências foi criada em 1779, e o seu primeiro local de instalação foi o Palácio das Necessidades. Foi aí que começou a sua atividade. Entretanto, conheceu diversas sedes em diferentes locais de Lisboa, sobretudo nas proximidades da zona onde estamos, na Rua do Poço dos Negros, na Calçada do Combro, no Calhariz, e fixou-se em 1833 aqui no Convento de Jesus, dada a ligação íntima que existia entre os frades do Convento de Nossa Senhora de Jesus, um convento franciscano, e a própria Academia das Ciências. Diversos membros da Academia das Ciências eram frades franciscanos que a integraram desde a origem. Destacaria aqui duas figuras, o frei Manuel do Cenáculo e o frei José Mayne. Sobretudo este último, que além de ter doado muitos livros ao convento, deixou no seu testamento à Academia o encargo de continuar o ensino das Ciências Naturais, que ele tinha criado no Convento de Jesus e que a Academia assim herda, digamos, como a sua última vontade. Isso explica a ligação que a Academia tem com o convento, mas, sobretudo, a sua ligação ao ensino da História Natural, das Ciências Naturais, incorporando no seu próprio programa aquilo que era já uma atividade que foi, afinal, herdada da tradição científica e ilustrada por alguns frades do Convento de Nossa Senhora de Jesus.

A biblioteca , que é uma biblioteca sobretudo herdada dos franciscanos, tem muitas preciosidades, mas algumas mais preciosas ainda. Consegue dar exemplos?
Consigo, não é difícil. A Crónica Geral de Espanha de 1344 é uma dessas preciosidades, um manuscrito iluminado que relata o papel de Portugal na reconquista cristã na Península, um testemunho fundamental para o conhecimento da história e da língua portuguesa medieval. Possui também um raríssimo exemplar da Bíblia de Mogúncia de 1642, um Livro de Horas com fantásticas ilustrações da primeira metade do século XVI, o Missal de Estêvão Gonçalves que é considerado uma das obras-primas da iluminura portuguesa, o Atlas de Lázaro Luís e o Livro das Armadas, obras de meados do século XVI, uma primeira edição de Os Lusíadas e da obra de Copérnico, sem esquecer a sua notável coleção de manuscritos e incunábulos. A biblioteca da Academia tem, por exemplo, a maior coleção de manuscritos árabes do país, que decorre justamente da atividade de evangelização dos frades franciscanos que, nas suas viagens, traziam e recolhiam documentação para o ensino da língua árabe em Portugal

Ou seja, esses franciscanos não eram homens de mera contemplação. Estudavam árabe, usavam-no como ferramenta de trabalho de missionação e iam para o terreno.
Exatamente. E é essa sua vocação pedagógica, não apenas das línguas, mas também do ensino das ciências, que era muito característica dos frades deste convento. E a Academia ao instalar-se aqui em 1833 está, de alguma forma, a beneficiar de uma tradição que tem cuidado desde essa altura.

É possível também, quem visitar o Museu da Academia, por exemplo, ter acesso aos instrumentos do ensino da Medicina, da Física, da Química. Além disso, no vosso museu o que é que mais chamaria a atenção para quem viesse cá visitar?
Para além dessas coleções que referiu, as coleções ligadas ao ensino das Ciências Naturais na Academia das Ciências, há uma coleção espantosa de máscaras, armas, instrumentos musicais, artefactos diversos recolhidos na viagem filosófica de Alexandre Rodrigues Ferreira, nos finais do século XVIII na Amazónia. É um espólio que constitui uma das principais coleções do Museu da Academia. São coleções que foram primeiro integradas no Museu de História Natural na Ajuda, e que foram depois transferidas, quer para a Academia, quer também para o Museu da Escola Politécnica e para o Museu da Universidade de Coimbra. Sem dúvida nenhuma, esta coleção testemunha aquilo que foi a busca do conhecimento científico nos finais do século XVIII numa instituição criada nessa altura e que, hoje, aqui a mostra ao público interessado.

Além da visita física às instalações, seja a Biblioteca, seja o Museu, há a possibilidade de online consultar muito do espólio?
Sim, e essa é uma das apostas dos académicos que tomaram posse em janeiro para este mandato de três anos, uma aposta de valorização do riquíssimo património que está à sua guarda, que tem de ser entendido como um património partilhado de forma aberta, por todos aqueles que estejam interessados em estudar e em conhecer as coleções que a Academia conserva, numa perspetiva de estudo, de investigação, mas também de fruição, porque há muitos objetos da Academia que causam algum fascínio e prazer quando os vemos, quando os contactamos. E, de facto, além do Museu e da Biblioteca, a Academia dispõe de um arquivo que é fundamental para quem queira trabalhar sobre a história da ciência e da cultura em Portugal nos últimos 250 anos, porque é um arquivo dos cerca de 2000 sócios que a Academia teve até aos dias de hoje, com correspondência, materiais de cada um dos sócios, do seu arquivo pessoal e académico. É um arquivo fundamental para o conhecimento do papel desta instituição no desenvolvimento cultural e científico em Portugal. A nossa intenção é justamente de disponibilizar, através de acesso livre, os materiais digitalizados, quer do Arquivo, quer das principais coleções de manuscritos da Biblioteca. Uma delas já está disponível para consulta direta na página da Academia. Todo o catálogo do Livro Antigo que temos aqui à nossa volta nesta biblioteca, neste salão nobre que foi inicialmente uma biblioteca, está também disponível em acesso aberto. O nosso propósito é justamente fazer da Academia uma instituição que partilha as suas coleções com um público interessado, numa perspetiva em que os seus bens possam ser usufruídos de uma forma pública.

Quando falou da importância do que está aqui na Academia, falou ainda há pouco dos manuscritos árabes, falou também desta coleção tão visualmente imponente, trazida da Amazónia, ou seja, há aqui peças que num contexto, pelo menos de Portugal, são únicas.
São absolutamente únicas. Mas o que nos interessa é sobretudo chamar a atenção para a riqueza do património que está à guarda da Academia e a necessidade de a dotar de uma visão de partilha desse património, que possa ser em benefício do conjunto da sociedade. É esta postura de abertura cultural e cívica que estou a procurar incutir enquanto presidente da Academia, não apenas em relação ao seu património material. Há um outro aspeto do património que queria também referir, que é o património imaterial da língua portuguesa, em relação ao qual a Academia tem estatutariamente uma responsabilidade de aconselhamento do governo e das agências que têm a seu cargo a política da língua. E a Academia tem também o propósito de assumir maiores responsabilidades no aconselhamento científico independente em matérias relevantes para a definição de políticas públicas que exigem o conhecimento científico como base para a sua formulação.

Disse que desde a fundação foram dois mil membros. Hoje quantos são?
A Academia tem um conjunto de sócios, efetivos e correspondentes, que atualmente ronda o número de 200. Tem depois uma rede de correspondentes estrangeiros, incluindo correspondentes de países de língua portuguesa.

De todas a áreas do saber?
Exatamente. Distribuídos em duas classes, de ciências e de letras. E em cada uma das classes de ciências e letras existem diversas secções que correspondem às divisões habituais do saber nas áreas das ciências exatas, medicina e engenharias, e nas áreas das humanidades e ciências sociais.

Falou da promoção da língua portuguesa. Uma das iniciativas próximas tem exatamente a ver com o Dia da Língua portuguesa.
O Dia Mundial da Língua Portuguesa, dia 5 de maio, foi criado pela UNESCO em 2019, por iniciativa do embaixador português, na altura, na UNESCO, António Sampaio da Nóvoa. E vamos ter aqui, no dia 5 de maio, uma sessão em parceria com academias de ciências e de letras de países de língua portuguesa. Vão participar em videoconferência as academias brasileiras de letras e de ciências, as academias de Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe, e vão participar representantes da CPLP e do Camões, Instituto da Língua e Cooperação. Trata-se, portanto, de uma iniciativa de intercâmbio e colaboração na promoção da língua como instrumento de aproximação cultural e científica dos países que referi e, sobretudo, na discussão dos desafios que se colocam a uma língua universal que quer ter maior projeção mundial e que se deseja que possa ser estudada e aprendida por mais pessoas a uma escala global.

São hoje 270 a 280 milhões de falantes, entre primeira e segunda língua. O português pode ser língua também de ciência?
Sem dúvida nenhuma, e nós temos essa preocupação na criação de tesauros científicos. Um dos nossos institutos, o Instituto de Lexicologia e Lexicografia, é muito ativo na promoção e na realização desses tesauros. Além destes instrumentos de nomenclatura e de fixação da língua em matérias científicas, a Academia disponibiliza já um vocabulário online (melhor dizendo, em linha) da língua portuguesa e tem em fase avançada de preparação uma versão atualizada do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. E este é um dos aspetos também centrais da nossa atividade no futuro, ou seja, permitir a consulta em acesso direto destes instrumentos fundamentais para o adequado uso da língua portuguesa.

Sendo o professor um homem da economia e da história das ideias económicas, mas estando à frente desta Academia, como é que vê a polémica do acordo ortográfico? Faz sentido esta permanecer?
Sinceramente, do meu ponto de vista, não faz sentido. Essa pergunta deve dirigi-la preferencialmente aos especialistas - e temos muitos na Academia - que nos dão contributos científicos nesse domínio. Mas a minha opinião é que a língua é demasiado importante para se reduzir a uma querela ou polémica ortográfica. E eu creio que os nossos filhos e os nossos netos aprendem uma língua sem que saibam, nessa aprendizagem, qual é o acordo que está em vigor. Eles aprendem a língua e têm de ser ensinados a fazer bom uso dela, a conhecer os grandes autores que a foram escrevendo e escrevem com diferentes ortografias. Por isso, muito sinceramente, creio que a discussão do Acordo Ortográfico não pode adquirir o estatuto de questão central de uma política da língua. Tenho igual respeito por todas as pessoas que queiram utilizar, ou não, o acordo em vigor, mas há muito mais língua além da ortografia.

O Banco de Lisboa e a Revolução Liberal de 1820 é o mais recente livro de José Luís Cardoso, que aqui o explica. Publicado em 2021, integrou as celebrações dos 175 anos do Banco de Portugal e tem nota de apresentação pelo vice-governador Luís Máximo dos Santos.

Antes do Banco de Lisboa, e do de Portugal, houve o do Brasil, certo?
Sim, a primeira instituição bancária em Portugal e seus domínios foi o Banco do Brasil, estabelecido em 1808, na sequência da transferência do rei e sua corte de Lisboa para o Rio de Janeiro, no contexto das guerras napoleónicas. Antes dessa data, as tentativas de criação bancária não tiveram sucesso. No entanto, existiam diversas instituições (montepios, misericórdias, casas comerciais de negociantes privados) que cumpriam as funções habitualmente reservadas aos bancos, tais como depósitos, desconto e transferência de letras de câmbio e amortização de papéis de crédito. Não há dúvida de que a presença do rei no Rio de Janeiro exerceu forte pressão para a criação de uma instituição especificamente vocacionada para coordenar a emissão e a circulação monetária, para garantir meios de pagamento expeditos e para financiar atividades económicas públicas e privadas.

Como faz a Revolução Liberal, no Porto, surgir um banco em Lisboa?
Na verdade, a revolução de 1820 trouxe consigo uma explosão de debates na esfera pública sobre temas relacionados com a regularização da circulação do papel-moeda, o restabelecimento do crédito público e o financiamento das despesas do Estado. No livro, procuro documentar e explicar o significado desses debates, nos jornais, no Parlamento, em múltiplos folhetos e livros escritos por juristas, homens de negócio ou cidadãos comuns interessados em contribuir para a criação de uma nova instituição, que viria a ser o Banco de Lisboa, fundado no final de 1821.

O Banco de Lisboa cumpriu o seu papel junto do público?
Sim, sem dúvida. Apesar de ser um banco de capitais privados, a sua missão estatutariamente definida era de natureza pública, pois o que estava em causa era a criação das condições da modernização financeira e fiscal do Estado: a gestão de títulos de dívida pública, a emissão de notas de banco convertíveis, o controlo da emissão e circulação monetária e a concessão de empréstimos ao Estado, para financiamento das necessidades de tesouraria dos organismos públicos.

Como se explica a posterior integração no Banco de Portugal?
Apesar das dificuldades decorrentes do ambiente político de forte conflitualidade e de guerra civil, tão característico das primeiras décadas da monarquia constitucional, o Banco de Lisboa foi conseguindo cumprir a missão. E acabou por ser no início da década de 1840, com o restabelecimento de alguma estabilidade política e com a criação de novos bancos e companhias financeiras, que se verificou a fusão entre o Banco de Lisboa e a Companhia Confiança Nacional, dando origem ao Banco de Portugal, fundado em 1846. Às funções tradicionais de bancos privados com finalidades públicas viria a juntar o atributo de "banco central", garantindo o monopólio da emissão monetária e a regulação do sistema financeiro através de uma privilegiada relação com o Estado.

leonidio.ferreira@dn.pt

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