Começando pelo fim, a Líbia está atualmente na chamada fase 5 da guerra, sendo que esta equivale também ao fim da 2.ª Guerra Civil. Confuso? Eu explico! A fase 1 foi o levantamento popular em 2011 contra Kadhafi, não se podendo considerar uma guerra civil, já que apenas 20% dos apoios tribais de sempre se mantiveram fiéis a Kadhafi, juntamente com a família. Ou seja, não houve uma rutura na população dividindo-a ao meio, antes um "todos contra Kadhafi/família/regime". Os anos que se seguiram, 2012-13, até foram "anos bons", já que o preço do crude estava em alta, permitindo consensos e alguma reconstrução. O verão de 2014 marca o início da 1.ª Guerra Civil líbia (fase 2), cuja disputa principal se centrou no controlo do aeroporto de Trípoli e é este o momento que marca o princípio do fim dos consensos, com o desmembramento da "Frente Revolucionária" que se formou para derrotar Kadhafi. Zintane e Misrata que se uniram separaram-se, tornando-se inimigos. Em simultâneo realizam-se eleições para o Novo Parlamento Líbio, Câmara dos Representantes, cujo resultado é contestado pelos islamistas, com várias fações a controlarem diferentes pontos estratégicos da capital e o Parlamento decide mudar-se para Tobruk/Cirenaica, no leste do país (fase 3)..Esta guerra acalmou um pouco com esta solução de recurso, levando ao acordo político de dezembro de 2015 que, ao invés de simplificar a situação complicou-a ainda mais, pois introduziu um terceiro governo, o GNA (governo de acordo nacional), "cozinhado" a partir do exterior, com reconhecimento das Nações Unidas (ONU), a qual na verdade apoiava várias fações no seu seio, criando uma "dinâmica proxy". Este facto fez os líbios entrarem na fase 4 do conflito, que na verdade e em simultâneo é a 2.ª Guerra Civil líbia do pós-Kadhafi, ou simplesmente a "guerra por Trípoli", que começou em abril de 2019, em que uma vez mais antigos aliados e inimigos mudam de posição, mas neste caso fruto de divisões internas no seio dos referidos Zintane e Misrata, por desgaste e/ou simples interesses clânicos, uns aliam-se ao polo agregador que surgiu na Cirenaica à volta do marechal Haftar, outros contra..Para resumir este processo ao essencial, neste momento há duas frentes antagónicas, o referido GNA que controla a Tripolitânia, a oeste e, o LNA (Exército Nacional Líbio), liderado pelo marechal Haftar e que controla a Cirenaica, a leste..A atual fase 5 corresponde também ao fim da 2.ª Guerra Civil líbia, que se concretizou com a tomada da Base Aérea de Al-Watiya pelo GNA, em maio último, o quartel-general do LNA de Haftar, na frente ocidental a meros 130 quilómetros de Trípoli. A conquista desta base aérea tem a importância de permitir aos turcos terem uma infraestrutura segura e permanente para deslocar todo o aparato militar que quiserem para a Líbia, por via aérea..Alinhamentos internacionais nas duas frentes líbias.O GNA sustenta a sua legitimidade ao ser reconhecido pela ONU, tendo no terreno os apoios da Turquia e da Itália, dois Estados-NATO, mas também do Qatar. O LNA tem apoio militar da Rússia, Grupo Wagner, uma agência de contratos militares privados, considerada hoje uma das maiores organizações militares privadas do mundo. Falamos naturalmente de mercenários, o que nos remete para uma nova e interessante realidade do século XXI, a privatização da guerra. Para além dos russos, o LNA conta também com os apoios do Egito, dos Emirados Árabes Unidos (EAU) e, curiosamente, da França, embora esta se mantenha num registo mais discreto, já que se trata também de um Estado-NATO, aparentemente do lado errado da barricada..Interesses.Começando já por "descascar" a França, este alinhamento aparentemente contranatura está ancorado nos megacontratos assinados com os EAU, nos setores ferroviário, da construção civil e das indústrias aeronáutica (Airbus A380) e espacial. No particular da indústria espacial há a realçar, sobre os dois satélites óticos encomendados à França que, na cascata de subcontratações, cuja cabeça é o Grupo Airbus, a empresa Thales Alenia Space tem capitais da italiana Finmeccanica, ilustrativo das interceções de interesses dos Estados, que têm provocado a inação da União Europeia (UE) neste tabuleiro. Considerar ainda os setores energético e militar..Concluindo o vetor França, é esta dependência comercial que a faz ir a reboque dos EAU na equação líbia, beneficiando ainda do petróleo do Golfo..O principal interesse da Turquia de Erdogan prende-se muito com o ego do "novo sultão". Desde logo, tem ambições a uma reconstituição mediterrânica do antigo Império Otomano, o que automaticamente o legitimaria como líder muçulmano num mundo islâmico sem hierarquia e competitivo nesse sentido. Continuando no âmbito do ego, Erdogan quer vingar a destituição de Mohammed Morsi da presidência egípcia pelo general Sissi, consequente prisão do primeiro e tratamento desumano no cárcere que o levou à morte. Neste particular, Erdogan quer fazer de Sissi o seu mameluco, o seu escravo. O presidente da Turquia aproveita também esta deslocalização do confronto turco-russo da Síria para a Líbia para finalmente arrumar um assunto vital neste processo de consagração no poder e ter mão completa num exército moldado por Mustafa Kemal Atatürk, estruturalmente laico e avesso à islamização crescente do "novo sultão". Tendo este assunto resolvido, terá duas pedras na mão, uma para atirar à UE e outra para atirar à NATO..Para concluir os interesses dos restantes apoiantes do GNA, a Itália é o ex-colonizador da Líbia, cuja petrolífera ENI quer manter os seus interesses contratuais de prospeção intactos. Sobre a ENI, realçar que em 2011 era detentora de cerca de um terço do capital da Galp, pelo que hoje os interesses da ENI na Líbia deverão continuar a ser coincidentes com os da portuguesa Galp. A Itália também é o país europeu mais prejudicado pela vaga de migração clandestina vinda da África subsariana, precisamente via Líbia, e vê na estabilização deste país um dado essencial para a sua segurança, bem como da Europa..Quanto ao Qatar, parceiro prosélito desta nova Turquia na divulgação do ideário da Irmandade Muçulmana (IM), tem também contas a ajustar com o Egito de Sissi desde o golpe que o levou ao poder. Por outro lado, o Qatar é a chamada "potência mediática" e esta guerra não seria a mesma sem a presença da Al-Jazeera. Por isso mesmo, neste canal de TV o marechal Haftar é sempre (des)considerado como um senhor da guerra e não mais do que isso..Do outro lado da trincheira o LNA tem na Rússia a sua âncora, a qual tem como objetivo estratégico e inegociável o clássico acesso a "águas quentes". Por isso mesmo nunca deixou de apoiar a família Assad na Síria, nem nunca abandonou as bases de Tartous e Latakia na costa mediterrânica síria. Dito isto, talvez a Crimeia faça agora mais sentido neste binómio mar Mediterrâneo/mar Negro, para quem até aqui ainda não tenha tido uma perspetiva macro. Acrescentar também que em aliança com o Egito, como se verifica, com acesso livre ao canal de Suez, rapidamente acede ao mar Arábico, ao golfo Pérsico, ao Índico e ao Pacífico. Isto é imperativo para quem compreende que quem dominar os mares domina o mundo..O Egito tem um presidente com um ego faraónico do mesmo tamanho que o de Erdogan e a parada é pessoal entre os dois, sobretudo pelo destino que o general Sissi deu ao ex-presidente Morsi. Destino esse que não teria valido a pena dar caso a vizinha Líbia se torne uma plataforma de projeção de força para o ideário da IM no norte de África. Para Sissi se manter no poder necessita de uma Líbia livre da IM e do consequente salafismo em que sempre descamba, ora em apoio ora como sabotador da hegemonia da Irmandade. O Egito joga agora um jogo mais seguro do que o que foi obrigado a jogar durante a Guerra Fria, quando era obrigado a optar entre soviéticos e americanos. Agora joga nos dois tabuleiros em simultâneo, estando com os russos nesta frente e mantendo três mil milhões de dólares anuais (valores nunca confirmados) vindos através da cooperação técnico-militar que mantém com os americanos. Foi para não perder o Egito da sua órbita que a administração Obama nunca considerou a chegada de Sissi à presidência como um golpe de Estado, apelidando-a sempre como um military takeover. Caso assumisse que se tinha tratado de um golpe, teria de pôr fim a esta cooperação estratégica e perder um aliado indispensável na região, no rescaldo da Primavera Árabe..Os EAU usam a Líbia para, ao enfrentarem o Qatar, garantirem o equilíbrio da guerra fria que decorre no golfo Pérsico pela liderança do islão e pelo petróleo, sendo também quem paga as contas, apostando em ganhos posteriores..3.ª Guerra Civil.Voltando ao início, à atual fase 5, que se iniciou no mês passado com a tomada da base aérea de Al-Watiya e que marca também o fim da 2.ª Guerra Civil. Desde então, o momento tem sido de pedido de cessar-fogo de russos e egípcios, na tentativa de que o mesmo aconteça enquanto continuam numa posição de alguma vantagem na "fronteira" entre a Tripolitânia e a Cirenaica, que veio a perder-se durante esta semana, pois a Turquia hegemónica com a recente conquista, continuou a avançar para sudoeste, Tarhuna, a porta de acesso a Bani Walid e, para o leste, com Sirtre praticamente conquistada pelo GNA ao LNA. Será provavelmente a tomada de Sirtre que poderá resultar num breve cessar-fogo, não desejado pela Turquia, mas que permitirá aos russos substituírem o marechal Haftar por Aguila Saleh, o presidente da Câmara dos Representantes, dando-lhes, aos russos, uma maior oportunidade de ganhos, numa negociação entre uma nova liderança do LNA com o primeiro-ministro Al-Sarraj. Para os russos, basta-lhes a Cirenaica para garantirem os seus interesses. Mas, como aos turcos só interessa uma Líbia unificada vão continuar a avançar para leste, independentemente de haver negociação ou não, o que suscitará uma oposição firme da Rússia e do Egito, abrindo a porta finalmente à entrada dos americanos em cena, com o principal e clássico interesse de travar os russos nos seus intentos estratégicos. Os comunicados/avisos crescentes do AFRICOM têm apontado nesse sentido e Trump ainda não teve uma guerra, o que, com eleições dentro de cinco meses, será o timing perfeito para a dramatização, num momento em que para a atual administração é imperativo fazer esquecer os "momentos covid & Floyd". A 3ª Guerra Civil líbia será a consolidação de uma guerra proxy às portas da Europa, fruto da "sirianização" deste confronto entre Tripolitânia e Cirenaica..Politólogo/arabista