O nascimento, o amor e a morte. É sob o signo deste movimento universal que começa hoje, às 19.00, o ciclo 70 Anos, 70 Filmes, na Cinemateca. O filme é O Rio Sagrado (1951), de Jean Renoir, obra inesgotável e uma das mais belas dos anais do cinema, que levou o mestre francês à Índia para colher a espiritualidade de uma civilização num olhar estrangeiro. Eis o primeiro título do vasto conjunto de sessões que assinalam o aniversário da instituição. E porquê esta escolha? Talvez porque Renoir é um dos cineastas mais respeitados e este filme o próprio gesto da vida. Também pode ser porque através dele se conta não só a história de uma família inglesa residente em Calcutá, mas igualmente se evoca a sessão especial de um ciclo ocorrido em 1984, que incluiu a singularíssima presença de Kenneth McEldowney, o florista de Beverly Hills que se tornou produtor de Hollywood só para produzir O Rio Sagrado - e garantir a Renoir uma rodagem in loco, tirando-o da prisão dos estúdios americanos. Quanta amabilidade na origem de uma obra cinematográfica....Esta é apenas uma das histórias por trás da seleção de cada um dos títulos que compõem a extensa mostra comemorativa. A ideia é então recordar a simbologia de alguns filmes a partir do seu contexto de exibição, dentro da memória global da Cinemateca Portuguesa. Entre outros exemplos que saltam à vista no mapa das recordações contam-se Tristana (1970), de Luis Buñuel, revelado num ciclo de 1982 sobre o cineasta, que foi uma das suas primeiras retrospetivas em todo o mundo, e este um dos filmes mais marcantes; Sinfonia de Estrelas (1943), de Busby Berkeley, que surgiu no grande ciclo dos musicais de 1985-86 (composto por 126 títulos), constituindo-se o mais famoso filme com Carmen Miranda; Maldone (1927), de Jean Grémillon, chegado à Cinemateca em 2001, como uma das raridades da produção francesa, cuja nova sessão será acompanhada ao piano por Filipe Raposo; O Tesouro do Barba Ruiva (1955), de Fritz Lang, exibido em 2005 na presença daquele que foi o seu jovem protagonista, Jon Whiteley; e Visita ou Memórias e Confissões (1982), o filme póstumo de Manoel de Oliveira - único título português da primeira parte deste ciclo - que proporcionou um momento histórico na sala da Rua Barata Salgueiro, em 2015, tendo sido depositado 33 anos antes pelo cineasta, com a especial condição de apenas ser divulgado após a sua morte (o que implicou um processo de preservação)..E há muito mais, claro. A nostalgia perdura até ao final do ano, num total de 35 sessões, com continuação no primeiro trimestre de 2019. Por enquanto, no que ao património nacional diz respeito, é de destacar a jornada do dia 16 - exterior ao ciclo 70 Anos, 70 Filmes -, outra das iniciativas das comemorações, que homenageia o cinema português. Com o título Que Faremos Nós com Esta Espada?, inspirado pelo filme de João César Monteiro, este evento consiste na exibição de bobinas de obras realizadas no nosso país, na linha descomprometida de uma viagem espontânea, sem ordem cronológica, pela história do cinema produzido em Portugal..Finalmente, no dia 30 tem lugar um colóquio que visa abrir um olhar sobre a trajetória da Cinemateca, incluindo os desafios do presente e do futuro. Ao longo de nove meses (ou seja, até julho de 2019), a sede da instituição será palco destas e outras ações programáticas, no sentido de assinalar o aniversário com um espírito de reflexão. Vale a pena adaptar a pergunta: que faríamos nós sem a Cinemateca?.As palavras e as imagens de João Bénard da Costa.À parte a nobreza do trabalho da programação, talvez não haja feito mais emblemático do que o lançamento do livro Escritos sobre Cinema, da autoria daquela que é a figura mais incontornável da história da Cinemateca, João Bénard da Costa (1935-2009). Ex-diretor da casa, ele é senhor de uma literatura inconfundível, espalhada no tempo, com um estilo eminentemente subjetivo, que projetou em cada um dos seus textos, em simultâneo, um peso e uma leveza extraordinários. Quem leu algumas das chamadas Folhas da Cinemateca, que acompanham as sessões diárias, terá plena noção da riqueza, da elegância e da informalidade destes escritos de Bénard da Costa, que concentram não só uma paixão de detalhe estético, como uma verdadeira arte de narrar dentro da "análise" dos filmes..O primeiro volume do Tomo I (serão dois) que está agora disponível, com mais de 1200 páginas, é então a parte inaugural de uma coleção criteriosa, visando apresentar "a matriz do que foi a sua produção literária", como escreve o atual diretor da Cinemateca, José Manuel Costa, no prefácio. Estamos a falar dos textos escritos para a instituição, mas também para a Fundação Calouste Gulbenkian, onde Bénard da Costa foi coordenador do Setor de Cinema..O corpo literário desta edição anotada é organizado alfabeticamente, por nomes de realizadores e respetivas obras (já o segundo tomo será dedicado a personalidades e temáticas), proporcionando uma abundante viagem pelo cinema, entre a sabedoria e a intimidade de um homem que conseguiu sempre contornar, através das palavras, o que dizia ser "inadjetivável".. Veja aqui a programação completa