Foi num apartamento em Amesterdão, sem telefone ou fax, que Quentin Tarantino viveu três meses em retiro para escrever o argumento de Pulp Fiction. Ou melhor, para lhe dar uma arrumação porque já tinha rascunhado centenas de páginas em cadernos de caligrafia indecifrável, mas era preciso dar-lhes alguma ordem narrativa. Resultado? Três histórias absurdas cruzadas de dois assassinos, um pugilista e um casal de assaltantes, que lhe valeu o Óscar de melhor argumento original, reanimou a carreira de John Travolta e fez de Samuel L. Jackson e Uma Thurman estrelas de cinema..Título icónico, obra-prima recheada de cultura pop que abanou os padrões hollywoodescos em 1994, e o filme que consagrou Tarantino dois anos depois de Cães Danados, Pulp Fiction regressa agora ao esplendor do grande ecrã, numa cópia digital restaurada, para se dar a (re)descobrir nos diálogos irreverentes, imaginário vibrante e fôlego musical, que espantou o Festival de Cannes, onde venceu a Palma de Ouro nesse ano. Assente numa antologia de cenas que, pelo efeito da memória coletiva, podem ser evocadas fora de contexto, o filme é hoje um objeto à prova das balas do tempo, passível de se "desconstruir" ou dissecar num olhar à lupa. A seguir, o registo de oito momentos pulp fiction para percorrer a sua iconografia, entre a brutalidade sem filtro e uma banda sonora irresistível, que está na lista das melhores de sempre.."I love you Pumpkin".Tudo começa num ecrã negro. Em fundo, duas definições de "pulp", retiradas do American Heritage Dictionary, que lançam as linhas mestras do filme: por um lado, a palavra refere a substância "macia, húmida e disforme" (polpa), por outro, corresponde a uma publicação de conteúdo chocante e impressa em papel áspero... Confere com o filme, pois tanto a ausência de forma ou de estrutura narrativa tradicional como a violência gráfica são imagem de marca de Pulp Fiction, um produto feito à medida para quebrar o queixo a Hollywood. Feita esta clarificação, é hora de descobrir o quadro que dá início ao filme: Honey Bunny (Amanda Plummer) e Pumpkin (Tim Roth) sentados à mesa de um café-restaurante, quais pombinhos numa conversa sobre assaltos, que, antes de gritarem aos presentes no estabelecimento que lhes vão esvaziar os bolsos, protagonizam a famosa troca de carinhos na conclusão da cena: "I love you, Pumpkin", "I love you, Honey Bunny". Entram os acordes enérgicos e oxigenados da guitarra de Dick Dale, no tema Misirlou, e a festa está montada..Ezequiel 25:17.Eis a passagem bíblica que deu a eternidade a Samuel L. Jackson/Jules Winnfield. Num monólogo forjado pelo próprio e por Tarantino, a antecipar o instante em que a sua arma abre fogo contra o dono do apartamento onde ele e John Travolta/Vincent Vega foram recuperar para o patrão uma mala recheada (não se sabe de quê), Jackson deixa uma lendária impressão digital. Começa por trincar o hambúrguer e beber a Sprite do anfitrião involuntário, para logo a seguir aplicar gravidade religiosa ao discurso, proferindo Ezequiel 25:17: "O caminho do homem justo está cercado por todos os lados pelas iniquidades dos egoístas e pela tirania do homem perverso..." Prossegue. Porém, só a parte final é que consta deveras da Bíblia: "Exercerei contra eles vinganças terríveis, castigando-os com furor. Então reconhecerão que Eu sou o Senhor (...)." Se dúvidas houver, Samuel L. Jackson é o Senhor deste momento..Jack Rabbit Slims.A cena icónica de entre as cenas icónicas de Pulp Fiction não implica sangue. Vincent Vega (Travolta) leva a mulher do patrão, Mia Wallace (Uma Thurman), a jantar ao Jack Rabbit Slims. Um restaurante estilo anos 1950 que, na verdade, foi escolha dela. A certa altura, nesse ambiente retro onde se passeia uma Marilyn Monroe, Buddy Holly serve às mesas e há bifes com o nome de Douglas Sirk, anuncia-se um concurso de dança em que Mia, para além de querer muito participar com Vega, não admite a hipótese de não sair vitoriosa. E, para alcançar o troféu, é vê-los nos mais pirosos e irresistíveis movimentos de dança (segundo se relata, entusiasticamente dirigidos por Tarantino, no set), ao sabor de You Never Can Tell, de Chuck Berry. Por um momento, Travolta recupera o charme do seu Tony Manero para uma performance musical que é autêntica panaceia.."Girl, You"ll Be a Woman Soon".De regresso do Jack Rabbit Slims, Mia ainda tem apetites de dança. E, para saúde dos ouvidos dos espectadores, a sua escolha caseira é Girl, You"ll Be a Woman Soon. Música de que o compositor, Neil Diamond, não queria autorizar a venda dos direitos, mas acabou por ceder perante a insistência do realizador, permitindo a criação de um dos momentos mais voluptuosos do filme, com Uma Thurman, drogada, a balançar-se suavemente ao ritmo da guitarra, enquanto chega até ao sofá. Lânguida, fuma um cigarro, e depois inala a quantidade de pó branco que lhe faltava para uma overdose... A agulha de adrenalina espetada por fim no seu coração é uma imagem inesquecível..O relógio de Butch.A aparição de Christopher Walken em Pulp Fiction é, no mínimo, hilariante. Nessa grande arte de Tarantino que é o monólogo, ele concentra comédia e absurdo de alto nível. Capitão Koons surge no segundo capítulo do filme, em flash back, numa memória de infância do pugilista Butch (Bruce Willis), que recebeu deste militar amigo do seu falecido pai um relógio de ouro. A visita ao pequeno órfão deve-se exclusivamente à bendita relíquia, da qual Walken/Koons, numa expressão solene, conta a narrativa familiar, inclusive onde a peça andou escondida em tempos de guerra: entre as nádegas do pai de Butch, e depois, nas do próprio capitão. Um objeto - podemos concluir - com muita história, que Butch orgulhosamente herdou e que será motivo de toda uma sequência perigosa, a culminar na casa de penhores com um proprietário sadomasoquista... Butch, recorde-se, é o namorado da personagem de Maria de Medeiros, a francesa Fabienne, com quem partilha a cena mais terna do filme..A morte acidental de Marvin.Jules e Vincent Vega estão no carro, a voltar do pequeno-almoço "atribulado" no apartamento onde foram recuperar a valiosa mala do patrão. No banco de trás, assustado, vemos Marvin (Phil LaMarr), o único sobrevivente dos três jovens traficantes que se encontravam no apartamento. Os dois parceiros no crime estão a discutir sobre balas e intervenção divina - Jules acredita em milagres - até que Vega decide voltar-se para Marvin e perguntar a sua opinião, ao mesmo tempo que lhe aponta a arma despreocupadamente, e sem intenção... Com apenas um solavanco do carro uma bala involuntária sai do cano da pistola para o rosto de Marvin, espalhando sangue e pedaços de cérebro por todo o carro! Esta cena, uma das mais brutais e inesperadas de Pulp Fiction, não estava no guião com uma origem acidental. Mas essa sugestão feita por Travolta a Tarantino conferiu todo um novo tom ao episódio - o ator de A Febre de Sábado à Noite tinha receio de perder o seu público, se o disparo fosse intencional. O realizador aceitou a ideia..The Wolf.Já falámos aqui de Christopher Walken, mas também Harvey Keitel, um dos "cães danados", tem um precioso pulp fiction moment. Na sequência da grande asneira de Vega, os protagonistas vão ter à morada de um sócio, Jimmie (o próprio Tarantino), mas este está preocupado que a mulher volte para casa a qualquer momento e se confronte com o cenário de horror: Jules e Vega salpicados de sangue e miolos e um cadáver no carro. Para intervir na situação complicada é chamado o profissional Winston Wolfe, ou The Wolf, um Keitel que aparece de smoking e cabelo penteado para trás, a dar lições rápidas de como limpar o carro, mudarem de roupa e tratar do corpo da vítima... Tudo coisas da ordem do senso comum, mas proferidas com inimitável classe e tranquilidade, que se rematam com o prazer de uma chávena de café caseiro..De regresso ao café-restaurante.Na última cena do filme voltamos ao local onde tudo começou. Só que agora há a revelação de que Jules e Vega estavam no mesmo estabelecimento que Pumpkin e Honey Bunny, dando, mais uma vez, oportunidade a Samuel L. Jackson para declamar a passagem de Ezequiel 25:17 que tanto gozo lhe dá. Diante de si, está um atónito Tim Roth. A diferença é que, desta feita, a personagem de Jules está transformada e, ao pôr as suas divagações espirituais em palavras, assume estar pronto para passar de tirano a bom pastor. Uma filosofia de cordel em perfeita sintonia com a t-shirt e os calções ridículos que tem vestidos. Cool mais cool não há, e Pulp Fiction fecha com tudo o que é necessário para ser lembrado..Na terra dos sonhos e da provocação de Quentin Tarantino."Não quero ter de assistir a um filme que faça para pagar a minha piscina." Com esta frase assertiva, Quentin Tarantino revelava em 2009 que iria terminar a carreira pelos 60 anos (nasceu em 1963). O que ela contém - a frase -, mais do que a crítica a quem faz filmes abdicando da integridade artística, é o assumir de uma verdade pessoal para com o cinema, que não admite trabalhos de rotina ou passos em falso - haverá poucos cineastas com esta exigência e rigor no respeito pela sua maior paixão. Fazer filmes é a forma que Tarantino tem de a partilhar. Uma febre cinéfila que, bem se vê, faz parte da sua persona mediática..Agora com 56 anos e o seu nono (supostamente, penúltimo) título a produzir impacto nas salas de cinema, o sentido dessa honestidade para consigo mesmo assume uma ressonância maior: Era Uma Vez em... Hollywood é uma das mais íntimas obras da sua filmografia, não só por evocar uma época através do deleite visual da sua memorabilia, mas porque o traço melancólico que percorre situações e personagens é o de um realizador tomado pelo desejo de as habitar (e de fazer o espectador habitá-las). Ele que não "aprendeu" o cinema pelos livros, mas que teve a melhor escola: Manhattan Beach Video Arquives, um clube de vídeo local onde começou a trabalhar aos 19 anos e onde conheceu Roger Avary, com quem mais tarde escreveria o oscarizado argumento original de Pulp Fiction (1994)..De facto, a primeira marca autoral de Quentin Tarantino foi a escrita. Os argumentos que assinou de Amor à Queima-Roupa (1993), de Tony Scott, e Assassinos Natos (1994), de Oliver Stone, começaram por ser projetos seus, mas as dificuldades em arranjar financiamento levaram-no a vendê-los. Só com o nome e a bênção de Harvey Keitel, a liderar o elenco de Cães Danados (1992), é que a terceira tentativa teve pernas para andar, tornando-se um dos filmes de culto da década de 1990..Por essa altura ainda não existia o produtor Harvey Weinstein a encher os bolsos com a criatividade pastiche de Tarantino. Isso aconteceu logo depois, com Pulp Fiction (1994), cujo sucesso aqueceu os motores para um vínculo de trabalho fidelizado que durou até Os Oito Odiados (2015) - Weinstein costumava dizer que a sua produtora era "a casa que Quentin construiu". Um dava toda a liberdade, o outro fazia-o lucrar. Mas, quando o polémico escândalo sexual do magnata se tornou uma realidade universal e ao mesmo tempo insustentável, Quentin Tarantino cortou relações..V de Vingança."A vingança é um prato que se serve frio", lê-se na abertura de Kill Bill: Vol. 1 (2003). De entre as particularidades do universo cinematográfico de Tarantino, este é o tema soberano. Se já em Cães Danados os gangsters se voltavam uns contra os outros depois do assalto falhado, em Pulp Fiction Samuel L. Jackson autointitula-se vingador em nome do Deus, assim como em Jackie Brown (1997) a personagem dele procura vingar-se dos que lesaram o seu negócio de armas..Por sua vez, uma das mais pujantes vinganças femininas regista-se no final de À Prova de Morte (2007), com Zoë Bell, Rosario Dawson e Tracie Thoms a darem uma carga de pancada fatal a Kurt Russell, o Stuntman Mike que as perseguia para matar (se não é um tratado feminista, não se sabe o que será...). Momento só suplantado por toda a filosofia dos Kill Bill de Uma Thurman ("That woman deserves her revenge and we deserve to die") e aquela Operação Kino de Sacanas sem Lei (2009), em que a judia Shosanna (Mélanie Laurent), com espírito tribal, se veste a rigor, ao som de Cat People(Putting Out Fire), de David Bowie, na noite de estreia em que se vai rir na cara de Hitler e esturricá-lo, juntamente com a comitiva nazi, na sala de cinema de que é proprietária. Não esquecer também a vingança sangrenta do escravo em Django Libertado (2013), e a ainda mais sangrenta peça de câmara Os Oito Odiados, com vingança coletiva. Quanto a Era Uma Vez em... Hollywood, sem entrar em spoilers, é certo que a história de Sharon Tate é contada segundo as leis do cinema de Tarantino.."Are you gonna bark all day, little doggie?".A provocação é outra das armas literárias de Tarantino. Como "vais ladrar o dia todo, cãozinho? Ou vais morder?" em Cães Danados. É atirada pelo gangster de Michael Madsen ao de Harvey Keitel e pode muito bem resumir a construção de uma cena ao estilo do seu realizador: ladra-se muito até morder. E essa quintessência é o que faz degustar a escrita de cada situação, invariavelmente consumada por atores em estado de graça. Veja-se Christoph Waltz na arrastada cena inicial de Sacanas sem Lei (que próprio Tarantino elegeu como a melhor coisa que escreveu para cinema), em que o Coronel Landa, perverso até aos ossos, entra na casa de um rústico francês, faz conversa elogiosa, e pede leite caseiro enquanto desfia uma simpatia negra de burocrata, para no fim mandar chacinar os judeus que estão no esconderijo debaixo dos seus pés. Ou então, o longo jantar de Django Libertado que antecede outro massacre. Mas há também "silêncios musicais" eloquentes no universo de Tarantino, como o referido Cat People, que é uma espécie de monólogo interior de Shosanna, ou em Jackie Brown, quando Pam Grier vai embora da cidade levando a bagageira recheada de dinheiro e Robert Forster no pensamento, ao som de Across 110th Street, de Bobby Womack. Um prodigioso lamento solitário..Cultura pop e dedinhos de pé.Cada um dos títulos de Quentin Tarantino - desde a inteligente abordagem dos géneros cinematográficos à verve musical - é polpa concentrada de cultura pop. Por exemplo, em Cães Danados surge uma teoria pouco citável sobre o Like a Virgin, de Madonna... Enfim, não é preciso ir tão longe: o recente Era Uma Vez em... Hollywood presta-se à ilustração perfeita desta marca autoral, com referências do cinema e da televisão, em cartazes ou recriações, a colidirem enquanto atmosfera de um tempo, mas também como leituras da realidade. Através delas, acredita a lente de Tarantino, é possível mudar os acontecimentos. Mas há brincadeiras mais entranhadas neste universo. Uma delas é a invenção de marcas que circulam pelos filmes - para contornar o chamado product placement - como o Big Kahuna Burger, o Teriyaki Donut ou os cigarros Red Apple; estes últimos entram numa cena extra nos créditos finais de Era Uma Vez em... Hollywood. E se é óbvio que as pistolas ocupam um lugar de destaque no imaginário violento, não são mais queridas do que as espadas dos samurais, "tachi" e "katana" - armas por excelência de Beatrix (Thurman) nos Kill Bill, e que salvam uma situação de Butch (Bruce Willis) em Pulp Fiction..O que dizer do fetiche do cineasta por pés femininos? É nas janelas dos carros (mais do que nunca, em À Prova de Morte), apoiados numa mesinha de centro, a fazer festinhas a um copo de whiskey (Jackie Brown), sobre as cadeiras da sala de cinema (Era Uma Vez em... Hollywood), na conversa de Beatrix com o dedo grande ou, sem imagens, na discussão de Jules e Vincent Vega sobre massagens de pés, em Pulp Fiction..É, no entanto, uma orelha cortada, ao jeito de Vincent Van Gogh, que assinala o primeiro gesto criativo de Tarantino: em Cães Danados, Mr. Blonde (Madsen) dança improvisadamente Stuck in the Middle with You, dos escoceses Stealers Wheel, aproximando-se com uma navalha do polícia que está a torturar... O plano não mostra mas deixa ouvir o ato do corte, e depois a orelha na mão de Madsen. A música continua a tocar, a cena prolonga-se na imagem da castração auditiva, e é como se pudesse entrar em legenda, nessa obra inaugural, um irónico "bem-vindos à terra dos sonhos de Tarantino".