20% dos incendiários detidos neste ano eram reincidentes. O que está a falhar no controlo?
Desempregado, 45 anos, ateou fogo a 13 sítios diferentes no concelho de Tondela, durante mais de duas semanas, até ser detido pela GNR e pela PJ a 19 de junho. Queimou toda uma zona florestal junto a habitações e, segundo a PJ, "os incêndios teriam tido proporções mais gravosas caso não tivesse havido uma rápida intervenção de bombeiros e de meios aéreos".
No início do ano, este homem "já tinha sido investigado e acusado pelo crime de incêndio florestal", sublinha a Diretoria do Centro desta polícia.
Neste mesmo concelho, em maio, tinha também sido detido outro homem, desempregado, com 51 anos, suspeito de ter ateado um fogo na região. Este, segundo os investigadores da Judiciária, "no passado já foi condenado pelo crime de incêndio florestal".
No passado dia 6 de agosto, outro homem, este com 30 anos, foi apanhado por populares que alertaram a GNR. Foi detido e, segundo o departamento de investigação criminal da PJ de Aveiro, "é já reincidente pelo mesmo tipo de crime tendo, inclusive, já sido condenado e cumprido pena de prisão preventiva".
No dia a seguir, um pastor, com 59 anos, suspeito de ter ateado três fogos, foi detido em Gouveia. Conta a PJ que, "recorrendo a chama direta, fazendo uso de isqueiro que transportava e que lhe foi apreendido, colocando fogo em pasto e mato, em três pontos distintos". Tinha também antecedentes pelo mesmo tipo de crime.
A 17 de agosto, um comunicado da Diretoria do Norte da PJ, dá conta da detenção de um "presumível autor" de três incêndios florestais" na zona de Santo Tirso. Terá utilizado um isqueiro, "num aparente quadro de adição de álcool e estupefacientes". Segundo esta polícia, o homem, de 53 anos, "possui antecedentes por dois crimes de incêndios anteriores".
São 20% do conjunto de detidos, uma percentagem que confirma que as reincidências neste crime estão a aumentar: a média entre 1997 e 2018 estava nos 17%, segundo um estudo feito pelo Gabinete de Psicologia e Seleção (GPS) da PJ.
Mas, no ano passado, de acordo com os dados que foram avançados ao DN por Jorge Leitão, magistrado do Ministério Público, responsável pelo Gabinete Permanente de Acompanhamento e Apoio (GPAA) da PJ, que coordena toda a prevenção e investigação de crimes de incêndio, o número de incendiários reincidentes atingiu os 35% do total.
Até ao passado dia 15 de agosto, os dados oficiais do Ministério da Justiça (MJ) indicavam que estavam a cumprir pena de cadeia 35 condenados por crime de incêndio florestal, menos quatro do que no final de 2019 , e menos sete do que em 2018 e 2017. A esta data, havia 36 reclusos em prisão preventiva, boa parte deles já detidos neste ano, em que esta medida de coação bateu todos os recordes.
Afinal o que é feito para prevenir que estas pessoas não voltem a cometer estes crimes? Que controlo fazem as autoridades sobre estes suspeitos, já referenciados e, até, alguns deles, com origem em pequenas localidades e conhecidos por todos?
Há dois anos, em julho de 2018, o Ministério da Justiça anunciou um programa, inédito no nosso país, para reabilitar , comportamental e emocionalmente, este género de reclusos e prevenir reincidências. Chamava-se Programa de Reabilitação de Incendiários (PRI) - foi desenvolvido por investigadores da Universidade de Kent, no Reino Unido.
Conforme o DN noticiou, o projeto-piloto arrancou nesse ano, no Estabelecimento Prisional de Lisboa, com nove reclusos. Estava previsto que durasse 28 semanas, até novembro desse ano, e depois fosse "exportado" para todo o país, estando a ser feita formação de técnicos também em Coimbra.
Questionado nesta semana sobre o estado de execução desta terapia, fonte oficial do MJ informa que "foi realizada uma avaliação da fase experimental, a qual concluiu pela necessidade de reformulação do formato inicial, com vista a melhor a ajustar às necessidades dos utentes do referido programa".
Quer isto dizer que o programa "revolucionário" não avançou mais e se ficou pelo anúncio da medida, numa altura em que o pais ainda recuperava dos trágicos incêndios de 2017.
Os resultados desse estudo, destaca a mesma fonte oficial, com uma amostra de 247 arguidos/condenados "evidenciaram tendências globais relativas à presença de determinadas características nos autores destes atos, o que permitiu efetuar as adaptações necessárias ao programa".
Embora não refira que "características" são essas, alcoolismo e problemas mentais já foram identificados em várias investigações nos últimos anos.
O MJ sublinha que as novas ações de formação "ainda não se realizaram por adiamento por força das medidas de prevenção da pandemia de covid-19".
O responsável da Polícia Judiciária, Jorge Leitão, desconhece se há articulação nesta matéria com a DGRSP . Num balanço feito para o DN em 2018, a psicóloga Cristina Soeiro, responsável do GPS da PJ, explicava os casos de reincidência por se tratar de pessoas que "não são tratadas ou acompanhadas e que vêm de famílias de poucos recursos", considerando que "devia haver uma melhor articulação com a saúde mental".
"Se houvesse maior controlo dos consumos e um tratamento mais eficaz das dependências, juntamente com uma sólida intervenção na formação de cidadania das pessoas, o cenário poderia ser outro", admitia Cristina Soeiro.
Outra medida que o governo tinha anunciado para prevenir reincidências e controlar os incendiários referenciados era os tribunais poderem ordenar a prisão domiciliária, nos períodos de maior risco de incêndio, nos casos de condenações a pena suspensa ou situações de liberdade condicional.
Até ao passado dia 15, estavam sujeitos a essa medida três incendiários, igual número do que em 2019 e menos um do que em 2018, ano em que esta medida entrou em vigor.
Um rapaz de 14 anos foi identificado pela PJ e pela GNR como autor confesso de um fogo, na aldeia de Granja, na zona de São João da Pesqueira. "Não fosse a pronta e eficaz intervenção dos bombeiros, que contaram também com a afetação de um meio aéreo, o incêndio poderia rapidamente ter evoluído sobre uma vasta área de pinheiros adultos e de alguns palheiros, colocando assim em perigo também algumas casas da referida aldeia", sublinhou a PJ em comunicado.
Conta a Judiciária, no seu comunicado, que "o referido menor terá atuado num quadro suscetível de evidenciar preocupante tendência de incendiarismo, já que manifesta desejo de ser bombeiro e de apreciar a atuação concreta destes profissionais".
Foi o mais novo dos 54 detidos, até à última quinta-feira, por suspeitas de crime de incêndio florestal.
O mais velho tem 80 anos. É suspeito da prática de vários crimes de incêndio florestal. Segundo a PJ, o homem "vivia sozinho e, durante três dias consecutivos, com o uso de um maçarico a gás e um isqueiro, ateou vários fogos". A investigação, entretanto, "apurou que o detido já desde 2019 vinha cometendo idênticos e continuados delitos de fogo posto".
Este homem foi um dos que ouviu o tribunal ditar-lhes a sentença de prisão preventiva e contribuiu para os 60% de suspeitos que ficaram sujeitos às designadas "medidas privativas de liberdade", que incluem também a prisão domiciliária - um valor recorde.
Jorge Leitão, do Gabinete Permanente de Apoio e Acompanhamento da PJ, que coordena a prevenção e a investigação dos crimes de incêndio, atribui este sucesso "à maior eficácia da investigação que conta com a pronta reação e articulação entre a PJ e a GNR, que rapidamente chegam aos locais dos crimes para recolher provas, permitindo melhorar a recolha de informação e apresentar aos tribunais indícios mais fortes".
Este responsável recorda que em 2019 a taxa destas medidas privativas de liberdade era de 47% e em 2018 de 40%. "Há uma boa resposta na prevenção e na investigação e os números espelham isso mesmo. Existe de facto uma melhoria da capacidade investigativa e da relação institucional entre a PJ e a GNR", acrescenta ainda.
O perfil padrão dos incendiários detidos continua a confirmar o de anos anteriores: desempregados, agricultores, pastores, dominam o tipo de ocupação dos detidos, na casa dos 40-50 anos. Vários deles com indícios de alcoolismo e/ou distúrbios mentais.
Uma tendência já detetada em anos anteriores, confirma-se em 2020: seis mulheres foram detidas (11% do total), um aumento em relação a 2019 (quatro) e menos três do que em 2018, ano em que foram detidas nove mulheres.
Segundo os dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), até ao passado dia 15 de agosto, foi registado um total de 6622 incêndios rurais que resultaram em 36343 hectares de área ardida.
Comparando os valores do ano de 2020 com o histórico dos 10 anos anteriores, assinala-se que se registaram menos 44% de incêndios rurais e menos 48% de área ardida relativamente à média anual do período.
O ano de 2020 apresenta, até ao dia 15 de agosto, o 2º valor mais reduzido em número de incêndios e o 5º valor mais reduzido de área ardida, desde 2010.