"​​​​​​​Comandar tem que ver com a pessoa e não com ser homem ou mulher"

A major Diana Morais (Exército) é a primeira portuguesa eleita e por unanimidade para a presidência do Comité para as Perspetivas de Género da NATO, um órgão de aconselhamento do Comité Militar criado em 1976. Este texto foi publicado a 6 de agosto de 2019 e faz parte de uma seleção de entrevistas, realizadas pelo DN durante o último ano, para voltar a ler neste verão.
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Engenheira militar, mulher do norte e "minhota com muito orgulho", Diana Morais deu continuidade à tradição familiar do lado materno de ter uma carreira militar e no Exército. Atualmente colocada no Estado-Maior do Exército e na área dos recursos humanos, a oficial tem-se distinguido na defesa e na promoção dos processos de integração de género na preparação e na execução das missões militares. A experiência operacional no Líbano ao serviço da ONU, há uma década, despertou-a para uma área que transcende as questões da igualdade de género e tem influência nos resultados das missões militares.

Porque é que escolheu a carreira militar?
Quando concorri à Academia Militar [AM], honestamente não sabia o que era a vida militar, apesar de ter familiares militares como o meu avô e os meus tios maternos...

Dos quadros permanentes?
Sim. O meu avô foi militar de carreira, fez comissões grandes em Angola e Cabo Verde. O meu pai cumpriu o serviço militar obrigatório e esteve em Angola, na guerra colonial...

Estiveram ambos na guerra colonial?
Coincidiram. Nunca serviram na mesma unidade mas estiveram em Angola ao mesmo tempo. O meu pai pediu para prestar o serviço militar ali porque já namorava com a minha mãe e o meu avô, que se reformou como sargento-ajudante, levava a família quando estava em comissão. O meu tio paterno também esteve na guerra colonial e em Angola, mas nunca falei muito com ele sobre isso.

Então o que a levou para o Exército?
Quando estava a terminar o secundário em Viana, na década de 1990, não havia internet e um dos meus tios, que estava colocado na AM, sugeriu-me ir para lá e falou também com a minha mãe. Fui pensando no assunto, a a minha mãe incentivou-me e concorri. Mas também concorri à Academia da Força Aérea [AFA] e à universidade, onde entrei no curso que queria da Faculdade de Engenharia do Porto. Com 17 anos, fui sozinha de Viana para Lisboa fazer as provas físicas e médicas na AM. Gostei muito, o espírito que se vivia era muito interessante e com pessoas de todo o país, comecei a identificar-me com os valores da instituição e decidi ficar.

Já não foi prestar provas na Força Aérea?
Fui, porque a minha mãe sempre me ensinou que não podemos dar nada como garantido. Passei nos exames, mas quando fui chamada para realizar a prova de aptidão militar já estava a fazer a da AM e, embora sem a ter terminado, decidi que ia ficar no Exército.

Na Força Aérea já seria tenente-coronel ou coronel...
[Risos] Quando tomamos uma decisão, julgamos que é a melhor. Gostava do grupo no Exército, do ramo e não fez sentido mudar. E não me arrependi.

Mas no Exército, como engenheira, pode chegar a chefe do ramo...
[Risos] E não podia ser chefe da Força Aérea [a que só chegam pilotos-aviadores].

A família aceitou bem a sua opção profissional?
O meu pai também sempre concordou, mas a minha mãe foi um grande pilar quando estava mais em baixo, quando chegava a casa à sexta-feira... agora sou mãe e imagino que não lhe fosse fácil ver-me com nódoas negras da pista de obstáculos, mas desvalorizava o meu cansaço e empurrava-me para continuar.

É casada?
Sim, com um militar do Exército e de Artilharia que entrou dois anos mais cedo para a AM. Temos uma filha, que fez 3 anos há uma semana.

Tem sido fácil conciliar a vida militar e a familiar?
Quando estive deslocada, não tinha filhos. Agora é que podia ter mais dificuldades mas, como vivemos e trabalhamos em Lisboa, conseguimos conciliar as coisas com o apoio da minha sogra quando não o podemos fazer.

Como engenheira militar, realizou muitas ações de apoio às autoridades civis?
Gostei muito de estar nas unidades de engenharia. Íamos sempre fazer um reconhecimento, falar com os autarcas, éramos sempre muito bem recebidos. Depois, nas frentes de trabalho, as populações ficavam extremamente agradecidas e reconheciam o trabalho das Forças Armadas [FA]. Tive a sorte de ter feito dois trabalhos de alguma envergadura, a terraplenagem do aeródromo de Cabeceiras de Baixo e a terraplenagem de um IP [itinerário principal]. Este era um projeto da Universidade da Beira Interior, para ligar o Sabugal à A23, mas entretanto saí e não sei se essa obra chegou a ser concluída.

Foi das primeiras mulheres a entrar para a AM. Sentiu alguma resistência ou discriminação?
As primeiras mulheres entraram em 1992. Em 1996 éramos cinco mulheres entre 120 cadetes (70 do Exército e 50 da GNR). Havia cadetes que ofereciam alguma resistência, mas entre os instrutores não senti isso. Os oficiais mais velhos nem sabiam bem como lidar com as mulheres, alguns tratavam-nos como se fôssemos filhas ou netas, não conseguiam ver-nos como cadetes. Hoje estão perfeitamente integradas na AM. A mudança cria sempre resistências, mas esses perceberam que não faziam sentido porque as mulheres fazem parte da sociedade e têm de fazer parte das FA,

E como comandante?
Nunca senti problemas. Comandar tem que ver com a pessoa e não por ser homem ou mulher. Ou se tem características de liderança ou não. Nunca fui desrespeitada, nunca tive qualquer problema e guardo muito boas recordações do tempo em que comandei.

Onde é que está colocada agora e o que faz?
Trabalho no Estado-Maior, em Recursos Humanos, e dou palestras. Sou formadora na área da integração de género. Tem sido muito interessante, porque é um tema novo. Noto nos próprios militares que não sabem o que vai ser o conteúdo da palestra, acham que vou falar de mulheres. Tento focar sempre a importância de integrar a perspetiva de género nas missões e a vantagem que isso traz ao nível da eficácia operacional. Acabam por perceber que, quando se fala de género, não estamos a falar de mulheres e que é importante integrar esse aspeto como um dos vários que têm de ter em consideração ao prepararem-se para as missões.

Dedica-se desde 2013 ao estudo das questões de género nas Forças Armadas e iniciou o doutoramento em Estudos de Género. O que é que motivou esse interesse?
Surgiu porque, sendo eu militar e estando os militares preparados para fazer operações militares, é interessante esta perspetiva de fazer análise e mudar mentalidades, de analisar o que fazemos tendo em conta as diferentes necessidades das pessoas e os respetivos efeitos. Em situação de conflito, as mulheres e as raparigas ainda são as principais vítimas e, sendo eu mulher, também me toca. Se vamos para uma operação e sou mulher, quero fazer o que é melhor para as pessoas, porque uma das nossas missões nas operações militares é garantir a segurança e o bem-estar das populações.

Participou em 2009 na missão da ONU no Líbano, integrada numa força de engenharia militar. Foi aí que nasceu o seu interesse para as questões da igualdade de género nas fileiras?
É curioso falar disso... quando lá estive, ouvi falar pela primeira vez da resolução 1325 das Nações Unidas aprovada em 2000, que veio destacar o papel das mulheres e das raparigas na prevenção dos conflitos. De certa forma, sim, foi nessa missão, em que estava integrada numa força de engenharia e com a função de oficial de ligação CIMIC [relação civil-militar] e tinha de estabelecer contactos com os presidentes de câmara. Na altura, ser mulher jogou a meu favor porque era bem recebida... talvez por a mulher ser uma figura mais pacífica, não passando um ar agressivo, talvez cumprisse melhor aquele papel. É um exemplo deste trabalho de integração de género, mesmo sendo municípios muçulmanos fui sempre bem recebida.

A percentagem de mulheres nas FA portuguesas é inferior a 12%. Da sua experiência, que medidas considera úteis para atrair e reter mais mulheres?
A integração da perspetiva de género é fundamental em tudo o que fazemos. Como as razões que fazem as mulheres vir para as FA poderão ser diferentes das que motivam os homens, e o mesmo se aplica na retenção, é importante ter políticas de recrutamento e retenção diferenciadas, ou seja, ter uma política de recrutamento e retenção específica para as mulheres. Diria que este é o primeiro passo. No caso nacional, o Plano Setorial da Defesa Nacional para a Igualdade, aprovado no dia 8 de março e que assenta em três eixos - igualdade, conciliação e formação -, é um documento estruturante neste âmbito. Dele constam inúmeras medidas, das quais destacaria as relacionadas com a promoção da visibilidade das mulheres em todas as funções, em particular de comando/direção e ou chefia, para que as jovens portuguesas percebam que podem ingressar nesta carreira e progredir de igual forma, bem como as medidas relacionadas com a conciliação da vida profissional, pessoal e familiar.

Há problemas de integração das mulheres nas FA portuguesas?
As mulheres não têm qualquer restrição à participação em qualquer função ou especialidade e classe nas Forças Armadas. Quanto a problemas de integração, desconheço que existam. Passados 30 anos desde que a primeira mulher ingressou no Exército, poderei afirmar que as mulheres estão totalmente integradas.

Foi eleita em junho para a presidência do Comité para as Perspetivas de Género da NATO. Candidatou-se porquê?
Porque gosto muito desta questão da intervenção na perspetiva de género. Já trabalho desde 2013 neste tópico, no Exército e em cooperação com o Ministério da Defesa, e tive o apoio de Portugal para lançar a candidatura porque é um assunto muito relevante para as FA e a Defesa Nacional em Portugal e na NATO também. Cada país tem a sua cultura e prioridades, mas esta questão não pode deixar de ser tomada em consideração.

Quantas candidatas eram?
Era a única candidata. Os Estados Unidos concorreram à vice-presidência.

Quais são as suas prioridades no desempenho do cargo?
Não estão propriamente definidas. Há uma série de diretivas que têm de ser cumpridas e, todos os anos, o comité executivo organiza uma conferência internacional, no âmbito da qual são elaboradas recomendações para o comité militar - que são para execução direta (estratégias, diretivas) - ou para os países membros.

Em que é que consiste o trabalho desse comité aliado para as perspetivas de género?
O comité executivo - que integra a presidente (holandesa), três vices (Canadá, EUA e Itália), a presidente eleita (agora Portugal) e a assessora de género (Canadá) do Comité Militar da NATO - reúne-se três vezes por ano para preparar a conferência anual, que se realiza no final de maio ou princípio de junho. Temos palestrantes no âmbito do tema escolhido pela presidente e as recomendações são fruto do trabalho dos participantes na conferência, no fundo de todos os países membros da NATO.

O comité existe há quanto tempo?
Foi criado há 43 anos e as presidências têm sido exercidas por Reino Unido, Bélgica, Noruega, Itália, EUA e Canadá. Portugal é o segundo país do sul da Europa a assumir o cargo.

Quais são os principais temas analisados pelo comité?
O comité trabalha muito a integração relacionada com as operações militares. O tema do ano passado teve que ver com a harmonização da perspetiva de género nas outras organizações internacionais, como a ONU e a UE. Este ano foi o da responsabilidade, numa aproximação de alto a baixo [entre os diferentes níveis da cadeia hierárquica). Já houve tópicos como o recrutamento e, há dois anos, sobre liderança e responsabilidade. Vamos tentando acompanhar a evolução...

Mas como é que se aborda essa igualdade de género ao nível das operações militares?
Em qualquer ação, documento ou estratégia produzida devem ser avaliadas as necessidades de todas as pessoas, qualquer que seja a idade. Se conseguirmos identificar as suas diferentes necessidades, vamos dar-lhes respostas mais adequadas. Temos de pensar nas consequências das nossas ações nesse universo de homens, mulheres, rapazes, raparigas, de mais velhos e mais velhas, porque isso contribui para aumentar a eficácia operacional da missão.

Qual é a situação da igualdade de género ao nível da NATO? Há grandes discrepâncias entre os países membros?
Julgo que na NATO é muito reduzida a percentagem de países com restrições às mulheres para desempenharem certas funções. Os Estados Unidos, por exemplo, só em 2015/2016 é que levantaram as restrições e a tendência é que no futuro não haja qualquer país da NATO com estas restrições.

Há algum país onde a questão de género suscite mais dificuldades? E onde há menos?
Nos 29 países aliados são muito poucos. Se a NATO incentiva a não haver restrições nas Forças Armadas dos Estados membros, esses países estão a percorrer o seu caminho, que levará mais ou menos tempo.

Um dos grandes tabus era haver mulheres a combater e o impacto que a sua presença teria nos homens, em quererem protegê-las...
Já vários estudos científicos desenvolvidos mostram que a presença das mulheres na frente de combate não afeta a coesão das unidades militares. Mas há questões associadas à cultura do país e na NATO isso é vincado muitas vezes. Se há países que têm restrições a que as mulheres participem em ações de combate, há que respeitar. Em Portugal podem ir para qualquer especialidade e fazer o que quiserem nas Forças Armadas. Por exemplo, temos mulheres na República Centro-Africana em funções de combate.

A Eslovénia já tem um chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas que é mulher. Continuará a ser uma exceção ao nível do Comité Militar da NATO?
Para já vai continuar a ser, porque há muito poucas mulheres generais. Tem ainda de passar mais tempo para haver tendências e depois, claro, têm de ter as competências para ser chefes militares.

E se daqui a cem anos se mantiver a situação atual?
É uma boa pergunta. Espero que não... se daqui a 50 anos ainda se verificar essa realidade, havendo muitos generais femininos, teremos de fazer como na Assembleia da República [ter quotas]. Ainda não temos tendências, é preciso dar tempo e perceber o que vai acontecer. Se se verificar, tem de se tomar medidas de discriminação positiva. Mas isso é futuro.

A sua missão no Líbano foi a única no estrangeiro?
Foi e gostei muito, pelo contacto com aquela realidade tão diferente da portuguesa. Apesar de ter estado lá entre dezembro de 2009 e junho de 2010, cerca de três anos após o final do conflito, o sul do Líbano ainda tinha muitas casas destruídas, com as paredes cravejadas de munições. Tive contacto com libaneses da minha idade cujos irmãos tinham morrido em 2006... é uma felicidade nós não termos noção do que é aquela situação. Também gostei pela convivência entre as diferentes religiões no sul do Líbano, pois havia povoações cristãs, xiitas e sunitas e até conseguiam conviver com alguma harmonia. Foi o contacto com forças de outros países, em especial com as forças de engenharia da ONU (turcos, belgas, italianos)... tudo isso foi muito interessante. E estar seis meses longe da família, num ambiente fechado, também é um desafio que colocamos a nós.

Há algum episódio dessa missão que a tenha marcado em particular?
Uma das nossas tarefas era construir uns maciços de betão armado que marcassem a fronteira entre Líbano e Israel. Enquanto forças de engenharia da ONU, tínhamos de o fazer do lado libanês e em território minado: as equipas de desminagem abriam corredores de dois metros de largura para termos acesso ao local, num terreno montanhoso, onde tínhamos de carregar à mão a areia, o cimento... era difícil. Mas, como do lado israelita havia muito bons acessos, propusemos à ONU prefabricar os maciços no quartel e depois ir colocá-los pelo lado israelita com uma grua. Entrámos em negociações e o pedido foi aceite. Mas só permitiram uma única vez essa missão de passar a fronteira. Tinham a IDF [Forças de Defesa de Israel] à nossa espera e foram sempre connosco. Levámos a grua com os maciços e, do lado libanês, havia militares nossos para os colocar. Atravessar a fronteira, ver uma realidade completamente diferente do sul do Líbano, ter contactos com os oficiais de ligação da IDF.... um deles era uma mulher. Eles explicaram que elas faziam o Serviço Militar Obrigatório de dois anos, enquanto para os homens eram três. Achei curioso, porque elas andavam com o cabelo relativamente solto e usavam a espingarda como se fizesse parte do vestuário... estão tão habituadas que é como se fosse um acessório do vestuário.

Foi fácil o relacionamento com os militares israelitas?
Os oficiais de ligação eram mais abertos, mas os da escolta da IDF praticamente nem falaram connosco.

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