Que países da NATO estão neste momento a rever a sua estrutura de comando das Forças Armadas? Sabemos que desde 2019 houve novas reformas neste campo em três países da NATO: República Checa, Hungria e Espanha. A estes acresce ainda a Suécia, que tem Forças Armadas muito capazes, é membro da UE e tem uma parceria cada vez mais próxima com a NATO. Temos também a informação de que estará a ser preparada uma reforma na Grécia, país que tem sido tradicionalmente avesso a esta tendência, veremos se se concretiza. Aliás, ao contrário do que tenho ouvido, é normal as Forças Armadas levarem a cabo reformas mesmo em períodos de grande exigência operacional, desde logo em situações de guerra, em que pode ser necessário fazer mudanças para uma resposta mais eficaz. Quem quer uma vida pacífica e serena não pode dedicar-se à exigente carreira militar. A história militar de Portugal tem bons exemplos, por exemplo, com o conde de Lippe durante a Guerra dos Sete Anos, na época do marquês de Pombal, ou ainda em resposta às invasões francesas. E nas campanhas a partir de 1961, também foram feitas mudanças importantes, como a criação de comandos conjuntos..As mudanças em curso nesses países passam em regra ,como no caso de Portugal , pelo reforço do CEMGFA? Efetivamente sim. Essa tendência é muito clara em todos os países onde se verificaram reformas desde o final da Guerra Fria - nomeadamente, isso é muito claro nos 14 países em relação aos quais foi possível reunir informação mais detalhada. E num webinar recente no IDN com colegas especialistas nestes temas de vários países ocidentais confirmei essa impressão. Portanto, não conheço qualquer estudo que mostre o contrário ou que aponte para as desvantagens destas reformas. Em vários países com dimensões semelhantes a Portugal, com Forças Armadas muito capazes e elogiadas internacionalmente pelo seu desempenho em missões - como a Holanda, a Dinamarca ou a Suécia -, optou-se mesmo por os ramos deixarem de ter estados-maiores autónomos e passarem a comandos de componentes subordinados diretamente ao CEMGFA. Claro que há variações nacionais, desde logo, na designação da figura no topo da hierarquia militar, mas esta tendência corresponde a desafios e ameaças semelhantes..Que vantagens são identificadas nesse reforço dos poderes do CEMGFA? São várias, mas destacaria duas. A primeira tem que ver com uma melhor gestão de todos os meios das Forças Armadas, os presentes e os a adquirir futuramente. Fazê-lo em função da sua eficácia operacional para o todo e não do que são as prioridades tradicionais dos ramos. Isso é especialmente importante para um país com recursos limitados como Portugal e é das questões mais destacadas a nível do debate europeu sobre este tema. É uma questão que tem ganho peso quando, por exemplo, é preciso utilizar fuzileiros em missões expedicionárias em terra para as quais são necessários meios que são tradicionalmente do Exército. Ou ainda quando se trata de desenvolver novas tecnologias como os chamados drones ou meios de ciberdefesa ou espaciais. Não se pode correr o risco de que estas novas capacidades em novas tecnologias disruptivas não tenham investimento suficiente por não serem as plataformas com que os ramos tradicionalmente se identificam, que continuarão a existir, mas terão de se adaptar. A segunda vantagem é haver uma clara linha de comando único e claro. A unidade de comando é aliás um princípio básico e universal do bom funcionamento das Forças Armadas. Apostar em dividir para reinar nas Forças Armadas é típico de regimes ditatoriais ou disfuncionais. O que se passa em Portugal, nomeadamente desde 2009 e 2014, é que o CEMGFA deixou de ser mero coordenador, mas continuam a abundar situações equívocas que dificultam o eficaz exercício das suas funções. Isso significa que, por exemplo, na resposta à pandemia a coordenação teve de ir sendo feita de forma ad hoc e só numa segunda fase, por despacho, foi clarificado o papel do CEMGFA. Há que aprender com estas lições..O fim da Guerra Fria foi o impulsionador deste movimento no sentido da reforma da cadeia de comando no sentido de a tornar mais eficaz? Para sermos historicamente rigorosos, essa tendência do reforço das estruturas de comando superior das Forças Armadas vem mais de trás. A própria criação e desenvolvimento dos estados-maiores dos ramos ao longo do século XIX é um primeiro sinal desta tendência. Mas, sim, o fim da Guerra Fria deu um novo impulso nesse sentido. Desde aí verificam-se mudanças crescentes em todos os fatores que afetam o nosso posicionamento estratégico e a postura das nossas Forças Armadas. Nomeadamente com o surgimento de novas grandes potências e a intensificação da competição geopolítica sobretudo por via indireta e irregular; mas também o rápido desenvolvimento de novas tecnologias com grandes aplicações e implicações na defesa. Cada vez mais temos de lidar com ataques irregulares e ciberataques, e há que empenhar meios muito diversos para lidar com crises de segurança multidimensionais e emergências complexas. Todas essas mudanças reforçam a necessidade de uma resposta holística, integrada, conjunta e multidomínio. É o que resulta do Conceito Estratégico da NATO de 2010 ou da Estratégia Global da UE de 2016, e do nosso Conceito Estratégico de Defesa Nacional de 2013, e os novos documentos estratégicos em preparação não deixarão de acentuar isso..Em Portugal, as mudanças maiores na estrutura de comando das Forças Armadas decorreram da entrada na NATO em 1949 e sobretudo da Revolução de Abril de 1974? Sim, e ainda aquando de efetiva subordinação, nos termos normais numa democracia, das Forças Armadas ao poder civil eleito, através da primeira Lei de Defesa Nacional de 1982. Esta reforma exigiu enorme coragem política e teve uma grande oposição, originando rumores bastante alarmantes. Quem diz que a atual reforma foi a que provocou mais oposição desde 1974 não tem bem presente a história das relações civis-militares em Portugal. Mas, realmente, a criação do CEMGFA e o gradual desenvolvimento do EMGFA, a criação da figura do ministro da Defesa - antes havia apenas ministros do Exército e da Marinha - dá-se nos anos imediatamente a seguir à entrada de Portugal na NATO em 1949 e isso não é um acaso. Também os estados-maiores dos ramos foram evoluindo muito nas suas funções. Demoraram mais de um século a passar do papel, a terem funções mais próximas do que entendemos por um verdadeiro estado-maior, contrariando o hábito de uma enorme autonomia das unidades militares. Mas, realmente, a última grande mudança ocorreu em 1974 quando os estados-maiores dos ramos absorveram as funções dos Ministérios do Exército, da Marinha e da Secretaria de Estado da Aeronáutica..No ensaio que assina, faz remontar à Prússia no século XIX para enquadrar a evolução do conceito de estado-maior. Que ensinamentos vieram desse reino, futuro componente essencial da Alemanha? Da Prússia dizia-se que não era um Estado que tinha um Exército, mas um Exército que tinha um Estado. Isso teve consequências trágicas na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Mas, realmente, a Prússia primeiro e, depois, a Alemanha unificada, entre a guerra com a Dinamarca em 1864 e o fim da Segunda Guerra Mundial, foram o termo de referência em termos de excelência militar tática e operacional, bem como de sistema de comando, tirando o máximo partido de novas tecnologias de comunicação e transporte. E, portanto, os demais países perceberam que não podiam continuar a ter forças militares muito fragmentadas e um sistema de comando incipiente. Claro que a Alemanha perdeu em 1918 e 1945. Na famosa frase de Clémenceau, "as guerras são demasiado importantes para serem deixadas apenas aos generais". A postura extremamente agressiva e a aposta apenas na dimensão militar significou que a Alemanha falhou ao nível da estratégia - nomeadamente, na dimensão económica ou diplomática. A essência da boa estratégia é saber equilibrar diversas grandes prioridades fundamentais para um país..As resistências que existem em Portugal à atual reforma, com antigos chefes militares em desacordo com a intenção do Ministério da Defesa, têm acontecido noutros países com processo semelhante? Este tipo de reformas suscita sempre alguma resistência. Há uma literatura vasta que recua até Maquiavel que mapeia bem isso. E por três razões: prudência; questões corporativas (receio de perda de recursos ou de estatuto); questões identitárias (as instituições militares promovem um necessário espírito de corpo, mas isso leva, por vezes, a um sentimento de identificação com certas estruturas independentemente da sua utilidade presente). Claro que tem havido textos de crítica normal em linha com o que se vê pelo resto da Europa - por exemplo, do almirante Reis Rodrigues ou do general Carlos Branco. Sendo que este último até parece querer uma reforma mais ambiciosa do conjunto da Defesa Nacional, algo com que simpatizo. Parece fundamental que as Forças Armadas e a Defesa continuem a adaptar-se a evoluções rápidas e significativas na geoestratégica global. Agora, alguns dos termos em que esta resistência tem surgido e que têm sido dos que têm tido mais eco, infelizmente não são normais. O GREI foi ao ponto de afirmar num texto enviado ao Presidente da República e ao primeiro-ministro e amplamente difundido pelas redes que uma reforma deste tipo "seria de tal modo destrutiva das Forças Armadas (...) que jamais poderia ser aceite", parecendo assumir-se como porta-voz das Forças Armadas e ameaçar com a desobediência ao poder democraticamente eleito. E a AOFA veio dizer em comunicado público que "repudia o processo em curso (...), relembra que o juramento dos militares é feito perante toda a comunidade (o povo) e não qualquer partido, qualquer governo, qualquer composição circunstancial da Assembleia da República, sequer perante qualquer Presidente da República"! Como se todos os portugueses - e especialmente os militares - não estivessem obrigados a respeitar a única forma legal e legítima de expressão da vontade popular que são as eleições. E nos últimos dias surgiu uma campanha de rumores relativos a ligações com "negócios" na Defesa, mas que depois não se esclarecem - como se fosse crível que a Suécia, a Dinamarca ou a Holanda, que levaram este tipo reforma bem mais longe, com o fim dos estados-maiores dos ramos, o fizessem para facilitar quaisquer negócios escusos. Eu sou acima de tudo um académico, e, portanto, gosto muito do debate. Concordo que é fundamental haver mais debate sobre estes temas entre militares e civis. Mas um debate com regras mínimas e olhando a sério para o futuro da Defesa e das Forças Armadas. Ainda bem que o texto dito dos 28 ex-chefes militares, que evidentemente merecem respeito pelo seu serviço, veio deixar claro que as Forças Armadas obedecem sempre ao poder democraticamente eleito. Como diz um dos autores de referência sobre este tema, o Peter Feaver, um governo, um parlamento democraticamente eleitos até têm the right to be wrong, ou seja têm o direito a estar errados. Para o evitar deve-se ouvir, debater, ter em conta os pareceres dos chefes militares nos termos da lei, mas são os eleitos pelos cidadãos quem, em última análise, decide..Esta reforma em curso é justificada mais pela necessidade de garantir a operacionalidade das Forças Armadas ou responde também a uma necessidade de reforçar a supremacia do poder político sobre a instituição militar? Não se deve reformar qualquer instituição, e menos ainda as Forças Armadas, apenas quando falharam ou foram derrotadas. Infelizmente isso aconteceu no passado, nomeadamente em Portugal, que tem uma cultura estratégica muito reativa. Mas qualquer pessoa sensata percebe que isso é uma péssima opção. Esta reforma visa essencialmente garantir maior eficácia das Forças Armadas através de uma estrutura de comando mais adaptada às possibilidades e às necessidades do presente e do futuro. Não se trata de alterar os termos da tutela do poder civil sobre as Forças Armadas, tanto assim que o Conselho Superior Militar, onde estão os chefes dos ramos e o CEMGFA para aconselhar o ministro da Defesa, se mantém nos termos atuais. E o Conselho Superior de Defesa Nacional, presidido pelo Presidente da República, também se mantém inalterado nas suas competências. Esta reforma é bastante prudente e moderada..Com conhecido apoio maioritário no parlamento, e, portanto, com muito provável aprovação, a nova estrutura de comando português poderá servir de modelo a outros países do espaço euro-atlântico? Creio que teremos de ver como decorre a discussão no parlamento e os seus resultados. O que posso dizer como leitor atento dos documentos que vão sendo produzidos a este nível é que desde pelo menos 1995 que sucessivos programas de governos apontaram a necessidade de se avançar neste sentido. Esta tendência vem desde o final da Guerra Fria na Europa, como referi. A mudança atual procura completar a lógica das reformas de 2009 de um governo PS e de 2014 de um governo PSD-CSD e aprender com as dificuldades da sua implementação, como mandam as boas práticas em políticas públicas. Também é certo que as propostas recentemente apresentadas pelo PSD nesta área convergem em vários aspetos com as do governo e do PS, e vão até mais longe nalguns aspetos interessantes. Portanto, se se sair deste debate com uma visão de futuro para as Forças Armadas creio ser claro que nos podemos juntar a esta discussão a nível europeu. Já o tipo de declarações que temos ouvido sobre esta reforma ter por objetivo destruir as Forças Armadas não me parece que fossem credíveis no debate europeu sobre este tema. Acho que todos, ou quase todos, nos apercebemos de que o mundo está a mudar a grande velocidade e que temos todos de nos adaptar..Esta mudança, para se revelar de facto garante de maior eficácia das Forças Armadas, precisa de ser acompanhada por mais investimento em defesa e por dar melhores condições a quem siga uma carreira militar? Há problemas de falta de capacidade de recrutamento e retenção de militares em qualidade e quantidade suficiente por toda a Europa. Têm causas diversas, e há quem fale até de uma era pós-heroica. E houve no pós-Guerra Fria um período longo de desinvestimento na defesa por toda a Europa, fruto de um excesso de confiança na pacificação geral do mundo, que se tem vindo a revelar cada vez mais ilusório. Esta reforma não resolve todos estes problemas da Defesa. Mas, no que respeita ao problema do recrutamento e da retenção há todo um plano de ação que está a ser implementado, que inclui a criação de um quadro de praças e uma variedade de outras medidas. É um problema difícil e sem soluções imediatas, até porque é impossível que os militares, mesmo com suplementos salariais, possam competir com o setor privado. Aí, o facto de a reforma apontar para os ramos se focarem no recrutamento, no treino e no aprontamento pode ajudar a que dediquem mais energias a este problema crucial. Quanto à questão do nível de despesa em defesa, ele deve efetivamente continuar a ser reforçado em linha com o Compromisso de Gales de 2014 no seio da NATO. Portugal tem acompanhado essa tendência com um reforço da despesa de 25,5% deste esse ano e esse esforço deve continuar. Estamos neste momento em percentagem do PIB um pouco abaixo da média NATO, mas acima de países como a Holanda, a Alemanha ou a Espanha. Devemos continuar a melhorar, sobretudo na rapidez de resposta a problemas operacionais, mas sem que isso afete o controlo necessário da despesa. Esta reforma não resolve todos os problemas da Defesa, que são reais e merecem atenção do país, mas não me parece um argumento válido dizer que só depois de se resolver tudo o resto é que se pode fazer esta reforma, ou começar a debate sobre o que fazer..Quanto tempo demorará a mudança, caso se confirme a aprovação, a ter efeitos práticos? Tendo em conta que é sobretudo uma reforma organizacional e legal, creio que os efeitos poderão ser relativamente rápidos. Mais lento será desenvolver uma doutrina, uma forma de pensar verdadeiramente conjunta nas Forças Armadas.