No dia 29 de Dezembro recebi um comunicado da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA). Sob o título "Liberdade Criativa e Juízo Crítico" o seu conteúdo transmite valores com os quais me identifico e que advogo. Contudo, não posso, neste momento, subscrever este mesmo comunicado. A defesa de valores não se pode escusar à ocasião da expressão dos mesmos. Por muito que nos sejam basilares, há que resistir à tentação de os expor quando, por razão de conjuntura, os mesmos podem ser instrumentalizados como medida proteccionista e remeter os direitos e liberdades de um colectivo para o entendimento de acções individuais..Este comunicado surge no meio da controvérsia sobre a representação Portuguesa na 59ª Bienal de Arte de Veneza e a sua formulação vem justificar as acções do curador e crítico Nuno Crespo, membro do júri do concurso. Faço esta associação desde logo pela citação de Walter Benjamin que enceta o texto e que é reiterada, em forma de clarificação, mais perto da conclusão onde se lê: "a crítica pode exercer-se sobre todas as qualidades de uma obra de arte, também sobre a sua tendência política que, em si mesma e só por si, não a legitima.". Crespo, que tem sido alvo de acusações de racismo pela sua actuação enquanto membro do júri, quebrou recentemente o silêncio através de uma notícia do Público, onde considera que o discurso e a ideologia não se podem sobrepor à obra de arte e que para isso é fundamental "admitirmos todos os contributos que promovem a discussão e o pensamento sobre as práticas artísticas contemporâneas sem medo da sua expressão pública"..Apesar de concordar com Nuno Crespo, tal como com as premissas expressas no comunicado da AICA, preocupa-me que se possa estar a legitimar a actuação de Crespo. É que, além do juízo crítico ser livre é também necessário que seja responsável e que não se isente de seriedade. Para mim, é aqui que radica a discussão sobre os resultados para a Bienal de Veneza, nas irregularidades que denunciam a ética do comportamento de Crespo enquanto membro do júri..A polémica instalada, tanto na imprensa como nas redes sociais, tem-se toldado por concepções de relações sociais e por ideologias políticas (ambas já habituadas a serem distorcidas para obedecer às realidades individuais). Poucos têm sido os que olham criticamente para o conjunto de documentos disponibilizados pela DGArtes, no trilho de formulação da sua opinião. Mas os que o fazem deparam-se com um conjunto de evidências que naturalmente causam desconforto..Como não são de acesso público as propostas candidatas, não podemos tentar compreender as avaliações de cada júri em cada critério e muito menos fazer comparações entre propostas e entre jurados. Este confronto permitir-nos-ia, talvez, formular um juízo crítico próprio sobre as propostas e, quem sabe, até sobre as pontuações do júri. Podemos, contudo, retirar algumas ilações em relação ao quadro de pontuações dos resultados das candidaturas. Em primeiro, que existe consenso entre três membros do júri em relação aos 4 projectos em apreciação, com pequenas variações relativamente à avaliação de alguns critérios. Em segundo, que Nuno Crespo se alinha com as restantes juradas em duas das candidaturas - Paula Nascimento e a dupla João Mourão e Luís Silva - e total discrepância nas restantes - Bruno Leitão e Sara Antónia Matos..A única coisa que temos por certa, é que Nuno Crespo tinha preferência pela proposta de Sara Antónia Matos, apesar de consensualmente ser a menos valorizada pelas restantes juradas, e que a de Grada Kilomba era a sua preterida, apesar de ser a mais bem cotada pelas restantes membros do júri. Podemos argumentar que é um processo democrático no qual ninguém elegeu o seu preferido e que foi uma ordem aritmética que determinou o vencedor. Mas é a expressividade da discrepância entre valores que sugere que Crespo, mais do que beneficiar uma proposta, queria impedir que fosse escolhida a proposta que reúne maior consenso. O acto não é ilegal, mas não deixa de faltar à ética e ser revelador de um certo despotismo..Muitas são as vozes que têm encontrado justificação para estas discrepâncias na liberdade de expressão, de opinião ou, como nos traz agora o comunicado da AICA, de juízo crítico. Qualquer liberdade deve ser exercida em pleno, mas não deve ser corrompida e incorrer em abuso. E aqui falha, novamente, o processo da DGArtes que, fundamentado na necessidade de transparência e clareza, não permite analisar devidamente as irregularidades. Acontece que, apesar de dois critérios corresponderem a uma avaliação com parâmetros em que a subjectividade pode ser invocada, o critério b) Viabilidade - consistência do projecto de gestão dificilmente aplica esse pressuposto..Portanto, não se trata apenas do facto de a classificação média atribuída à candidatura de Bruno Leitão pelos restantes elementos do Júri ser de 19 valores (actualizada para 20 após a Audiência de Interessados) e a de Nuno Crespo ser de 12 valores; e de a classificação média atribuída à de Sara Antónia Matos ser de 16 valores e a de Crespo ser 20 valores. Trata-se de um critério de quantificação objectiva que encontra uma disparidade de 5 valores de diferença entre a média da maioria dos membros e o valor atribuído por Crespo, em detrimento do projecto de Leitão. A mesma expressividade acontece na avaliação de Antónia Matos de 15 para 20 valores, desta vez com Crespo a atribuir 5 valores a mais em comparação com a média das restantes..A discussão sobre a subjectividade da arte (que, na realidade, deveria focar a subjectividade da experiência estética, de forma a não diminuir a especialização e o rigor dos profissionais da área), serve sistematicamente para desresponsabilizar as opções tomadas em matéria de avaliação de projectos artísticos. Se este caso rondasse em torno de um concurso público para a construção de um equipamento público, usando uma área onde o factor da subjectividade também é invocado, este nível de discrepância estaria a ser alvo de profundo escrutínio, visto com naturalidade. Como o caso é Arte permitimo-nos ficar na subjectividade..Mas retomemos o juízo crítico e o exercício da sua liberdade. Tendo sido aluno de Crespo, quando confrontado com tamanha discrepância de valores de avaliação (que só se pode interpretar como uma reprovação total da proposta artística) o meu desejo era de encontrar na sua justificação o tipo de argumentação inteligente e informada, que reconheço como características suas, sobre as qualidades estéticas e conceptuais da proposta. Argumentos de especialista que sustentassem a sua análise. No fundo, esperava uma argumentação que reflectisse seriedade para com o cargo que ocupava, demonstrando respeito para com um colega e uma artista. Este sim, seria um exercício de liberdade legítimo e digno, mas, além disso, seria sinal de profissionalismo; liberdade para expressar de forma metódica, séria e exemplar, os argumentos que o levaram a fazer uma avaliação tão depreciativa de uma proposta artística. Isto, porque o que se infere é que, na sua opinião, a proposta era tão má que afectava drasticamente todos os critérios de avaliação da candidatura, independentemente da competênciada equipa artística, da presença de nomes de referência internacional como Paul Gilroy, Bonaventure Soh BejengNdikung, Cristina Roldão, Elvira Dyangani Ose e Jota Mombaça, entre outros, e mesmo do currículo da artista e do grau de reconhecimento internacional sobre o seu trabalho. Contudo, de forma a justificar o seu desinteresse pela obra da artista, Crespo não desenvolveu a sua apreciação da proposta recorrendo ao seu conhecimento e especialização para legitimar a sua posição; centrou-se, antes, numa interpretação da pertinência do tema como base para a sua avaliação. Ainda que a crítica se possa exercer "sobre todas as qualidades da obra, entre elas a tendência política", recuperando-se a citação do comunicado da AICA, mesmo que a tendência política (entenda-se o tema identificadocomo centro de A Ferida, proposta de Kilomba) por si só não legitime a obra de arte, a sua recusa também não pode invalidar uma apreciação das restantes qualidades. Assim, ao desconsiderar uma argumentação de especialista sobre as restantes qualidades da proposta artística, Crespo incitou a um debate sociopolítico, o que me leva ao ponto seguinte e que tem sido o foco da leitura internacional: O discurso racista instituído..Conheço Nuno Crespo, tenho respeito e admiração pelo seu trabalho, como curador, crítico e professor. Não o considero uma pessoa racista nem misógina, mas falo do lugar de homem branco. Contudo, os seus argumentos denunciam um problema de racismo latente, instituído, sistémico e institucional. A Ferida é uma proposta ambiciosa e complexa que aborda três crises centrais à revisão da sociedade contemporânea: Crise climática; crise dos direitos humanos; e a militarização das relações humanas. Para Crespo o tema é o racismo. Esta ilação não estará de todo incorrecta, o que, por si só, deveria contrariar o seu argumento de que o projecto não é inovador. Só que Crespo sugere, pela sua argumentação, que incluir o tema do racismo numa representação portuguesa não é relevante e que não está comprometida com a dinamização e internacionalização da "cena artística" portuguesa. O racismo, além de ser um tema central no debate actual, nunca foi um tema abordado numa representação portuguesa em Veneza. São poucos os artistas e os espaços que, em Portugal, se dedicam ao tema, apesar de muito trabalho relevante que tem sido desenvolvido e apresentado. Com as suas palavras, Crespo minimiza a experiência de racismo de uma mulher negra e a sua validade para se expressar sobre o tema; com as suas acções, retira-lhe esse espaço e esse tempo. Fá-lo com justificações insuficientes e, lamento dizê-lo, com alguma arrogância (especialmente no tratamento à artista). As acusações de racismo contra Crespo existem porque os seus comentários, mesmo que não intencionalmente, o são. Acusam-no de racismo porque, quando olham para o quadro de classificações, não conseguem compreender a discrepância, a virtude dos argumentos, nem a formulação de um juízo crítico, que deve ser livre de exercer, sim, mas de forma responsável..Por estas razões, e pelo momento em que este comunicado emerge, não posso acrescentar o meu nome a uma lista de pessoas (muitas delas colegas e amigos que admiro) que, apoiando correctamente os valores expressos, se tornaram cúmplices (creio que injustamente) de um regime de protecção de classe. Este comunicado, na sua formulação generalista de ideais comuns, contribui para desvirtuar o debate necessário sobre a ferida aberta pelo passado colonial e as suas repercussões num racismo institucionalizado; e, neste caso particular, deturpa a noção de crítica e o exercício de funções de júri..Sou solidário com Grada Kilomba, Bruno Leitão e toda a equipa que, durante pouco mais de um mês, se sujeitaram a um processo difícil e desajustado que é rude para artistas, curadores e outros agentes e que, ainda assim, viram a sua dedicação e esforço ser tratados com displicência e falta de dignidade por um membro do Júri..Sou ainda solidário com o artista Pedro Neves Marques e a dupla de curadores João Mourão e Luís Silva, que se vêm envolvidos num processo lamacento..Apelo ao tratamento sério deste caso, e à solidariedade de todos aqueles que lutam para uma sociedade e um sistema artístico mais responsáveis, conscientes e inclusivos. Perante as particularidades deste procedimento, Bruno Leitão tem o direito e o dever de recorrer a todos os mecanismos disponíveis no quadro legal e cívico, de forma a proteger e defender a artista que convidou. Estes são momentos de grande pressão emocional, que um meio responsável e compreensivo deve respeitar..Apelo, por isso, também, a que se centre o debate num processo concursal irresponsável, que não reúne nem promove condições condignas para artistas e curadores, que normaliza um sistema de trabalho precário, e que não permite uma discussão saudável dos resultados..Miguel Mesquita.Curador e co-fundador do PARTE - Portugal Art Encounters