O combate ao covid-19 veio exigir também medidas excecionais na área da justiça. Aliás, foi mesmo a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, quem veio alertar para a necessidade de se tomarem medidas urgentes, de forma a impedir uma situação sanitária dramática dentro das 49 prisões de todo o país, caso aparecesse um infetado - já que está definido que um infetado com este novo coronavírus, de transmissão agressiva, pode infetar em média entre 2,5 e 3 pessoas..E foi neste sentido, e tendo por base o princípio da precaução em saúde pública bem como razões humanitárias - no caso de reclusos com doenças graves -, que, numa semana, o governo legislou, o Parlamento aprovou e o Presidente da República promulgou a Lei 9/2020, que entrou em vigor na passada sexta-feira..Desde este dia que os mandados emitidos pelos tribunais de execução de penas estão a chegar aos serviços centrais e aos estabelecimentos prisionais para ser dado andamento aos processos de libertação, mas deste grupo a lei exclui os reclusos que cometeram crimes de homicídio, sexuais, violência doméstica e "contra membros das forças policiais e de segurança, forças armadas e guardas dos serviços prisionais, no exercício das respetivas funções"..Até esta segunda-feira, dia 13 de abril, e de acordo com fonte da Direção-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP), já tinham sido cumpridos 760 mandados de execução, mas os critérios definidos na nova lei deverão abranger entre 1700 e 2000 reclusos, segundo avançou a própria ministra..Esta tomada de posição do governo já foi criticada por alguns, aplaudida por outros. As associações que trabalham com reclusos e com vítimas defendem que não comentam decisões do poder político tornadas legais, mas alertam para o facto de a situação poder ser uma oportunidade para se repensar o sistema prisional e o trabalho de reinserção social que está a ser feito..O presidente de uma destas associações, a Confiar - Associação de Fraternidade Prisional, que integra o projeto Prison Fellowship International, que trabalha com reclusos, promovendo a reinserção social e a justiça restaurativa, já veio lançar um alerta: "É altura de repensar o sistema prisional e a reinserção social. É altura de se olhar para as associações como parceiros e não como voluntários que apenas servem para entreter reclusos", defendeu ao DN Luís Gagliardini Graça..Reforçando: "É uma excelente oportunidade para se usar as associações, IPSS e a comunidade como um todo para melhorar a reinserção social. Não é soltando as pessoas que o Estado vai aumentar o que já faz na reinserção social. Por isso, o que solicitamos ao poder político é que deem condições às associações para que essa reinserção possa ser melhorada e passar a ser feita de forma sistematizada e com mais apoio.".Estado vai poupar quatro milhões, parte deveria apoiar a reinserção social.A Confiar tem como projeto o desenvolvimento de um programa de justiça restaurativa, que assenta na recuperação e na reinserção dos reclusos. Na verdade, um projeto que já resultou na assinatura de um protocolo com a DGRSP, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, com a Associação de Apoio à Vítima (APAV) e com a Câmara Municipal de Cascais, para o desenvolver e alargar, já que o objetivo é estendê-lo ao resto do país..Neste momento, estão a funcionar só com uma casa de saída no concelho de Cascais, onde são recebidos os reclusos que aceitam integrar o projeto, e que tem capacidade para acolher cinco a seis reclusos. "Temos três pessoas na casa e já comunicámos ao Estabelecimento do Linhó que temos capacidade para receber mais duas pessoas que possam sair no âmbito das medidas agora aprovadas e que não tenham para onde ir. Mas, sejamos realistas, estamos a falar de duas vagas, quando poderá haver pessoas nesta situação em todo o país. Daí o nosso alerta para que este projeto possa ser alargado a muitos outros concelhos.".Luís Gagliardini Graça vai mais longe e apela mesmo ao poder político para que use uma pequena parte do que vai poupar com a saída destes reclusos para poder apoiar as associações que promovem a reinserção social.."Um estudo realizado pela Nova Business School of Economics prova que por cada euro investido no nosso trabalho, na nossa ação enquanto IPSS na área da reinserção social, devolvemos à comunidade quatro euros. Ora, com a libertação de dois mil reclusos o Estado terá poupado, em números redondos, cerca de quatro milhões de euros ao fim de um ano - tendo em conta custos diretos, cama, mesa e roupa lavada. Se uma pequena parte deste montante fosse investido no trabalho das associações mais centros de apoio familiar poderiam ser abertos no futuro para se melhorar o regresso destas pessoas à sociedade.".O presidente da Confiar argumenta que um milhão de euros bastaria para se abrir, pelo menos, dez centros de apoio familiar aos reclusos, tendo em conta que cada centro custa à volta de 80 mil euros. Sublinhando que todo o dinheiro investido seria poupado à sociedade..Holanda é exemplo na justiça restaurativa.Luís Graça dá ainda como exemplo outras associações congéneres da Confiar existentes em países da União Europeia e que estão a dar resultados tendo por base a filosofia da justiça restaurativa. "É assim que se está a funcionar na Holanda através da integração da atividade das associações privadas com os poderes públicos, voluntariado e comunidade. A nossa congénere da Prison Fellowship tem 24 funcionários e cerca de 500 voluntários e está a ser um sucesso. As prisões como as conhecemos estão a encerrar", assegura..Portugal ainda está longe de uma realidade assim. A prová-lo estão os números da reincidência no crime - 75% dos reclusos acabam por reincidir. Uma situação que poderia ser diferente se houvesse uma verdadeira aposta num modelo de justiça de recuperação dos reclusos. "O problema não é do Ministério da Justiça nem da DGRSP. O problema é de todos nós e se os reclusos forem mal enquadrados, os problemas podem ser muito maiores do que se os deixarmos confinados na prisão", alerta.."O governo tomou a decisão de libertar reclusos mediante determinadas regras. As propostas têm um tempo, a ação tem outro. E este é o momento de a Confiar e as suas equipas irem ao encontro desta população que precisa de apoio e orientação", sublinha. O que está em causa não é, portanto, a decisão política, "essa fica para os políticos, mas a dignidade da pessoa humana no contexto de um Estado de direito que tomou uma medida legítima e que a tornou legal"..É por isso que a Confiar vem alertar para a manutenção do investimento nas associações, acreditando que a redenção social também pode ser conseguida através desta libertação antecipada e neste contexto. "Há mais na justiça do que mero castigo, há integração, há redenção, há humanidade, há esperança. Deem-nos os meios e garantiremos apoio a esta comunidade, com a qual trabalharemos no sentido de prevenir comportamentos de risco e à qual prestaremos apoio social e psicológico. Não nos substituímos ao Estado e nem às instituições públicas, somos um parceiro social com provas dadas e com um espírito de missão e de cidadania.".APAV espera que seja cumprido direito de informação à vítima.A APAV, parceira da Confiar neste projeto de justiça restaurativa, não comenta a decisão política, até porque deste grupo de reclusos estão excluídos os que cometeram crimes de sangue, sexuais e de violência domestica, que são aqueles com que trabalha mais pelo apoio que dá às vítimas..No entanto, Frederico Marques, jurista desta associação, espera que estejam a ser cumpridas todas as regras que constam do Código de Execução de Penas, nomeadamente o direito de informar uma vítima que o autor de um crime irá ser posto em liberdade. "Esta é uma das nossas preocupações em relação a esta medida e às vítimas, já que em tempos normais, tal regra é muitas vezes esquecida", frisa o jurista. "O código prevê em vários pontos que seja tido em conta o interesse da vítima, mas muitas vezes isso não acontece. Desde logo há um dever de as autoridades informarem a vítimas em caso de libertação ou de fuga por parte de um autor de crime, que possa colocar em causa a segurança da vítima. Esta é a nossa preocupação e esperamos que seja cumprida.".Os mandados de execução de penas emitidos pelos tribunais vão continuar a chegar aos serviços centrais e aos estabelecimentos prisionais,. Além dos reclusos que estão abrangidos pelo perdão de penas, pela antecipação da condicional e pelos indultos atribuídos pelo Presidente da República, o que só deverá acontecer no final desta semana ou início da próxima, há outros que terão direito a uma licença especial de saída precária de 45 dias..Neste momento, garantiu fonte oficial da DGRSP, está a ser ultimado todo o expediente que permitirá a alguns reclusos usufruírem de uma licença de 45 dias, desde que aceitem o confinamento ao domicílio. Esta medida destina-se a reclusos que já usufruíram desta medida e que a cumpriram, saindo e regressando conforme as regras..A mesma fonte disse não se saber quantos reclusos poderão estar enquadrados nesta medida. Sabe-se, no entanto, que por ano há cerca de dez mil saídas precárias, podendo cada recluso ter três a quatro saídas precárias. Portanto, "o número não chega sequer a metade das saídas, nem de longe nem de perto". O diretor-geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais esteve durante esta terça-feira a assinar documentação destinada ao cumprimento desta medida. Por isso, é natural que a partir desta quarta-feira os estabelecimentos comecem a executá-la para que os reclusos possam usufruir dela.