Já não há mesas nem cadeiras nem louças nem computadores nem papéis nem plantas nem nada. As divisões estão completamente vazias. No domingo, pela última vez, vai abrir-se ao público a porta do Atelier Real, a estrutura dirigida pelo coreógrafo João Fiadeiro desde 1990 e que há 15 anos funciona no número 55 da rua do Poço dos Negros, em Lisboa. A partir das 15.00, e durante sete horas, Joana Gama vai estar a tocar as Vexations de Erik Satie no piano numa das divisões, enquanto Fiadeiro vai dançar pelos vários espaços do edifício. O público poderá entrar e sair livremente durante esta despedida. "A verdadeira estrela desta performance não sou eu nem a Joana", diz o coreógrafo. "Será a casa, completamente esvaziada."."É o fim", admite João Fiadeiro. Durante 29 anos de atividade, a Real desenvolveu uma programação no cruzamento disciplinar (com outras artes e com o pensamento científico), e entre estas e a criação, a investigação, a formação e a programação. Em 2015, quando o projeto ficou excluído dos apoios sustentados atribuídos pelo Estado através da Direção Geral das Artes, ele já tinha admitido que seria impossível manter a estrutura tal como estava. "O fim demorou quatro anos a consumar. Deixámos de ter residências artísticas e de fazer investigação, conseguimos alugar as salas todas, fizemos coproduções para as nossas criações", explica. "Sem o apoio do Estado ainda conseguimos continuar, mas sem espaço torna-se impossível.".A porta fecha-se agora perante a recusa do senhorio em renovar o contrato de arrendamento. "É uma situação típica da gentrificação", explica o criador. "Há cinco anos ninguém dava nada pelo espaço. Entretanto, é como se tivesse passado um tsunami por este bairro. Fomos informados de que o contrato não seria renovado e não vamos procurar outro espaço. Fecha-se um ciclo.".Nos últimos anos, apesar de alguns apoios pontuais, a Real não voltaria a ter apoios sustentados. "Todo o sistema de apoios e a burocracia em volta torna muito difícil o acesso a projetos mais híbridos como o nosso, que é também um projeto que procura estar muito atento ao presente, sem querer prever a sua atividade com anos de antecedência. Eles olham para os projetos artísticos como olham para os projetos de construção civil, com rigidez e desconfiança, como se os artistas estivessem sempre a tentar enganar o Estado. Isso também é um sinal dos tempos", explica João Fiadeiro.."Há uma sensação enorme de desperdício. Desperdício do investimento que nós fizemos e que o Estado fez em nós." Embora a programação da Real tenha sido bastante diminuída, Fiadeiro continuou o seu trabalho como criador, intérprete e professor. "O problema não era eu, era o projeto de acolhimento, de ligação aos outros criadores e com a comunidade. Há uma ideia de bairro e de cidade que se perde quando projetos como este não têm condições para existir.".Apesar de tudo, Fiadeiro não quer perder muito tempo a lamentar-se. Nas últimas semanas, a Real programou uma programação intensa de "Desocupação", com muitos artistas, jovens e menos jovens, que ali mostraram uma criação "vital e potente". "Essas são as imagens que quero guardar", declara..A jornalista Maria João Guardão acompanhou essa programação e está a realizar um documentário sobre a atividade da Real. O documentário será apresentado no próximo ano, no festival Temps d'Images, quando se assinalariam os 30 anos da Real. "Esse será o último ato. E aí, sim, acaba uma época."