À porta da liberdade estavam alguns reclusos. Miguel não queria acreditar. A informação chegou cedo ao Estabelecimento Prisional de Sintra, "logo pela manhã de segunda-feira". "Estava a trabalhar, mas assim que acabei fui ao serviço dos guardas e soube que era um deles", conta ao DN. Não sabe explicar o que sentiu, "se calhar ansiedade", apenas que "o tal dia", "aquele em que podia agarrar de novo a liberdade", estava a chegar. Mas, afinal, não. Minutos depois tinha deixado de ser um deles. Não, não queria acreditar que tinha deixado de estar à porta da liberdade: "Já o merecia. Fiz tudo para isso." Tinham sido três anos, dia a dia a mudar o pensamento, a atitude, a traçar novas metas. "Não é fácil a prisão", admite, "e eu estava a conseguir o que queria: a liberdade, é o mais importante, mas faltava-me uma morada"..O número dele estava na lista para a porta da liberdade, mas o governo tinha definido regras e em todos os mandados emitidos pelos tribunais de execução de penas teria de constar a morada que o ia receber, aquela onde, como qualquer outro cidadão, também teria de praticar o isolamento social imposto pelo estado de emergência. E essa morada Miguel não a tinha. Sabia que quando o dia chegasse provavelmente não teria ninguém da família à espera, a vida assim o determinou, mas agora, com 25 anos, estava pronto, "preparado" para começar de novo. "Depois de saber que o meu número estava na lista não queria acreditar que não ia acontecer. Foi muita ansiedade, mas o serviço de educação batalhou por mim e à tarde soube que tinham conseguido arranjar-me uma vaga na casa da Confiar", a Associação de Fraternidade Prisional, que integra o projeto Prison Fellowship International..É lá que Miguel está desde terça-feira, desde que voltou à liberdade. Deixou Sintra para se mudar para Cascais, para uma casa que faz parte do programa de reinserção da Confiar e que partilha agora com mais três ex-reclusos..Escolher entre a violência e a vida.Nestes três anos de reclusão, Miguel confessa que tudo fez para que o perdão da pena chegasse mais cedo, mas nunca imaginou que chegasse associado à pandemia que desde o início do ano amedronta o mundo. Uma situação que também o assustava. "Via sempre o Telejornal, era horrível tantos mortos e infetados, os meus colegas preocupavam-se com as famílias", conta. Mas a vontade de sair era mais forte: "Não é aquela vida que quero. Houve uma altura em que tive de escolher entre a linha vermelha ou a linha da vida, a vida com os meus valores.".Escolheu esta. Não se arrepende. Hoje está "cá fora". "Na prisão, mesmo quando não se quer problemas, há sempre alguma coisa que vem ter connosco, mas procurei sempre lidar bem de recluso para recluso, de recluso para guarda, não me meter em bate-bocas e isso conta muito lá dentro. Depois, quis começar logo a trabalhar, o que me ajudou. Consegui quando fui transferido para o EP de Sintra. Antes passei pelo estabelecimento da PJ e EPL, mas aqui somos muitos reclusos e não consegui arranjar trabalho", explica. Não desistiu da ideia, assim que chegou a Sintra voltou a fazer o pedido, passado um mês estava a trabalhar na copa, depois passou para a cozinha e, por fim, para a limpeza das áreas dos guardas..Passado um tempo, estavam a dar-lhe a primeira saída precária de três dias. Regressou, tinha de ser para começar de novo. Foi quando entregou os papéis para ficar em regime semiaberto, propuseram-lhe então integrar o RAVI (regime aberto virado para o interior), aceitou, e era neste quadro que estava a funcionar já há algum tempo..Se não fosse o coronavírus, Miguel ainda teria mais um ano de reclusão. Foi condenado a quatro anos e seis meses. "Só estava previsto sair no mês sete de 2021, mas fui fazendo o meu caminho", admite na conversa com o DN, sempre de forma pausada, sem pressas. O tempo é outro..Miguel diz que está cá fora porque os serviços de reinserção batalharam por ele, mas lá dentro ele próprio batalhou por ele. No dossiê que traz agarrado a si, "há boas referências do diretor do EP de Sintra, do vice-diretor e dos técnicos de reinserção social. Portanto, ele também fez algo de bom por ele", confirma a psicóloga da Confiar. Veronica Tiperciuc, a única pessoa que na terça-feira de manhã estava à porta do EP à sua espera. "Nem sei bem as horas a que saí. Passava pouco das 09.00. Estava lá a Dra. Veronica, que me trouxe logo para o centro da Confiar e depois para a casa. Fui muito bem recebido por todos", afirma..Em outubro fará 26 anos, mantém um certo ar de menino, mas a sua história é igual à de tantos outros que seguem o mesmo caminho e o mesmo destino. A sua pode ter nuances, acabou mais cedo, "foi o coronavírus", diz.. O vírus maldito que já infetou mais de dois milhões da população mundial e matou quase 150 mil pessoas. Foi o vírus que levou Portugal, e muitos outros países atingidos pela doença, a tomar medidas excecionais para a área da justiça, tendo em vista a sua contenção. Estas implicavam necessariamente o alívio da população presidiária através da libertação de reclusos dos 49 estabelecimentos ..Foi a própria ministra, Francisca Van Dunem, que o anunciou logo no final de março, explicando que os critérios definidos deveriam abranger entre 1700 a 2000 pessoas. Numa semana, o governo legislou e aprovou a Lei n.º 9, de 10 março de 2020, que entrou em vigor na Sexta-feira Santa, 10 de abril..No sábado começaram a sair os primeiros reclusos, alguns as famílias nem os esperavam, mas os critérios da justiça foram mais além do que era esperado e até proposto pela Provedoria de Justiça. Maria Lúcia Amaral foi a primeira a alertar para o facto de as prisões não poderem ser esquecidas. Na altura, propôs que fossem libertados os reclusos em fim de pena e com problemas graves de saúde, mas Francisca Van Dunem incluiu também os condenados com penas até três anos e com bom comportamento, e atribuiu ainda uma licença especial de 45 dias a quem já teve saídas precárias e cumpriu as regras..Faltava-lhe uma morada, mas arranjou-a.Numa semana foram libertados mais de 1100 reclusos. Todos tinham de ter uma morada para onde voltar e ficar em confinamento como o resto do país. A Confiar - que há mais de 20 anos promove o trabalho com reclusos e a reinserção social - disponibilizou as duas vagas que tem na casa de saída, um espaço cedido pela Câmara de Cascais e a funcionar desde dezembro de 2018, para receber quem estivesse nesta situação..Há um ano que a Confiar assinou um protocolo com a Direção-Geral da Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), com a Câmara de Cascais, a Associação de Apoio à Vítima (APAV) e o Instituto Superior de Ciências Políticas (ISCP), no sentido de desenvolver um trabalho de recuperação e de reinserção junto dos reclusos, pois acredita, como já afirmou ao DN o seu presidente, Luís Gagliardini Graça, que "cada homem é maior do que o seu erro"..Miguel foi o primeiro a chegar desta leva. Há mais uma vaga, mas ainda não foi solicitada. Por agora, assume que cometeu erros. "Por inconsciência minha." Ao DN contou que não gostava da escola, queria trabalhar para ajudar nas despesas da casa. Quando fez o 8.º ano desistiu, começou a trabalhar como pasteleiro, gostou, mas depois passou para a lavagem de carros, mais tarde foi vendedor. "Fui comercial. É verdade", diz, não conseguindo sequer explicar o que terá corrido mal, para seguir a vida que outros amigos e vizinhos já tinham. "Nem sei explicar, más companhias", desabafa. "Foi tudo muito depressa, vários roubos comuns na rua e depois fui detido em novembro de 2016. Levaram-me logo para a PJ, depois para o EPL e quando a sentença transitou em julgado é que fui para Sintra.".Lá dentro procurou "estar sempre bem com todos, cortei o que trazia de violência, não queria essa parte para mim. A liberdade é o mais importante, percebi isso assim que entrei". Hoje, diz, "ainda nem sei bem o que sinto verdadeiramente. O mais estranho é voltar a estar com mais pessoas, o poder andar à vontade, falar com quem queremos, mas sinto-me satisfeito de poder voltar a ter este bem na minha vida". Porque "lá dentro não se faz amigos, digamos que apenas alguns conhecidos para a vida"..Cá fora, desde terça-feira, a primeira coisa a fazer é tratar do cartão de cidadão, mudar a morada, entregar a papelada para o rendimento social de inserção (RSI). O currículo já o fez, com a ajuda da psicóloga da Confiar, e, assim que "passar o estado de emergência, começar a procurar trabalho", diz. Veronica Tiperciuc, que acompanha todos os reclusos que passam pela casa da Confiar, diz que ele "tem uma atitude positiva, mas é muito jovem para ficar só com o 8.º ano"..A ela já lhe confessou que o que gostava mesmo era de voltar à pastelaria, de fazer formação nessa área. Aconselhamento, orientação, encaminhamento, é isso que se procura fazer na casa de saída da Confiar. "Procuramos orientá-los e encaminhá-los, é como lhes dar asas para depois poderem voltar a voar." Até agora já passaram por quatro reclusos, "um voltou a trabalhar no sítio onde estava antes de ir para a prisão e arranjou o seu espaço para viver", explicou a psicóloga..Miguel é o quinto a passar por ali. "Espero pouco a pouco ir construindo a minha vida. Ter um trabalho seguro, tirar a carta e ter o meu espaço", sublinha. Pelo meio, há a família, o pai e a mãe, cada um a viver em locais diferentes. "Com quem posso vir a dar-me mais é com o meu pai, mas esta situação afastou-nos", admite. Mas há ainda "a minha avó, as minhas primas, os meus tios, gostava de voltar a estar com eles. Vamos ver"..Saiu na terça-feira, dia 14, é uma data que não esquecerá, o estado de emergência ainda não lhe permitiu, mas assim que puder o que mais quer "é ir ver mar".