"Florença deve muito à última dos Medici. Anna Maria Luisa fez algo único. Deixou todo o património artístico da família ao novo grão-duque da Toscana, um Habsburgo-Lorena, mas com a condição de que ficasse em Florença", afirma Stefano Casciu, que esteve em Lisboa para uma conferência intitulada "I musei della Toscana riuniti nel Polo Museale: una assoluta eccellenza italiana"..O académico, desde 2015 responsável pela gestão do património cultural toscano, explica que através dessa decisão os Medici garantiram um lugar na história que outras grandes famílias de mecenas não alcançam, como é o caso dos Gonzaga, que viram um dos seus vender a coleção aos reis de Inglaterra, ou dos Este, que cederam às ofertas do príncipe-eleitor da Saxónia e assim pagaram dívidas. "Por isso hoje a coleção Gonzaga não está em Mântua mas sim na National Gallery de Londres e a dos Este pode ser vista em Dresden e não em Modena." Há também os Farnesi, que de duques de Parma passaram a vice-reis de Nápoles, levando a coleção familiar para os novos domínios, mas nesse caso, depois da reunificação italiana de 1861, pelo menos as obras de arte continuam património do país e não estão expostas num museu estrangeiro..A conversa decorre no Instituto Italiano de Lisboa. A diretora, Luisa Violo, fez questão de nos apresentar como anfitriã que é, e está presente também Paola d'Agostino, da embaixada italiana, que faz a tradução. Antes, o professor Casciu, um sardo (nasceu em 1959 em Cagliari) apaixonado pela Toscana, foi fotografado por Diana Quintela, que procurou como pano de fundo uma obra de arte contemporânea para fazer o contraponto com o classicismo que serviria de tema à entrevista. "A estética faz parte da alma italiana, no tempo dos Medici como hoje", sublinha o académico. Voltaremos a esta ideia..Ora, em termos de estética é quase impossível competir com o legado dos Medici. "Em Florença, ainda na Idade Média, já se produzia muita arte. Sempre se sentiu na cidade a herança greco-romana, como se houvesse uma continuidade. É certo que aconteceu isso um pouco por toda a Itália, mas uma convergência de fatores geográficos, culturais e económicos tornou especial esta cidade de ricos comerciantes. A sociedade exigia arte e patrocinava-a. E havia competição entre a sociedade civil e a eclesiástica na produção de palácios, catedrais, monumentos. Os Medici, família riquíssima de mercadores que acumulou tanto dinheiro que se tornaram banqueiros, percebeu melhor do que ninguém o valor da arte. E no final do século XV, quando assumem o governo da cidade, na época de Lourenço, o Magnífico, patrocinam grandes artistas como Botticelli e Gianbologna", contextualiza Stefano Casciu. E se Botticelli é florentino, já Gianbologna é flamengo, o que mostra a capacidade dos Médici para atrair artistas de grande qualidade..Pergunto se Miguel Ângelo, filho da Toscana, também não é outro grande nome a associar aos Medici. O professor, que é também membro do conselho de administração da famosa Galleria degli Uffizi, ri-se. "Era uma relação complicada, pois Miguel Ângelo era republicano e os Medici queriam ser nobreza", explica entre risos. Aliás, na sua ascensão a duques e depois grão-duques, os Medici vão usar a cultura, fazendo até uma espécie de diplomacia enviando artistas pela Europa fora. Miguel Ângelo, que fará algumas obras em Florença, nomeadamente na Capela dos Medici, acabará por acolher-se à proteção do Papa Leão X, "que é um Medici", relembra o académico, de novo entre risos. Ao longo do século XVI a família dará quatro papas..Sendo Botticelli e Miguel Ângelo tão geniais, porque se tornou Leonardo da Vinci, também filho da Toscana mas que fez carreira sobretudo em Milão e na França, o mais icónico dos artistas italianos do Renascimento, pergunto. "Leonardo era o verdadeiro homem do Renascimento. Fez tudo. Era um grande inventor. Um homem completo, total. Como pintor foi importante, e todos conhecemos a Gioconda, mas pintou pouco", responde o académico. Mas isto de ícones tem muito que ver também com as épocas, nota Stefano Casciu. "Caravaggio só se tornou de novo reputado no século XIX", acrescenta. Graças à sua biografia de brigão, de assassino mesmo, o artista nascido no ducado de Milão, já bem dentro do século XVI, afirmou-se assim na modernidade..Argumentando que o projeto nacional italiano tem fortíssima base cultural, assente na língua e no património artístico, Stefano Casciu destaca as leis do novo Estado para proteger a arte e como isso tem antecedentes em Roma, nos próprios papas, que em 1734 inauguraram os Museus Capitolinos, "os primeiros abertos ao público no mundo". E relembrou que na sua maioria eram papas capazes de apreciar obras profanas, nomeadamente estátuas pagãs vindas dos tempos greco-romanos..Ora, essa herança greco-romana, associada à posição central da Península Italiana, explica muito do génio artístico, admite o académico, que fala também do clima agradável, das influências várias, desde os fenícios aos árabes, da tradição artesã que na Idade Média fazia de cidades como Lucca o grande centro de produção de seda do Ocidente. "Ainda hoje os artesãos italianos são dos melhores do mundo. Nos tecidos e não só. A moda italiana impõe-se. E mesmo as grandes marcas de luxo francesas quando querem garantir a melhor qualidade buscam produção italiana", diz Stefano Casciu..Voltamos à estética, que faz parte da tal alma italiana. "Durante muitos anos fomos o único país que ensinava História da Arte ao longo dos anos escolares. E todas as cidades exibem obras de arte. Não existem só nos museus, mas nas ruas também. As crianças italianas crescem a ver arte."