A festa da aliança da esquerda na Praça da República. Mais tarde, houve cenas de violência.
A festa da aliança da esquerda na Praça da República. Mais tarde, houve cenas de violência.EMMANUEL DUNAND / AFP

Esquerda quer governar e extrema-direita denuncia "aliança de desonra"

Primeiro-ministro apresenta esta segunda-feira a demissão a Macron, que não reagiu às projeções que deram a vitória à Nova Frente Popular, diante do Ensemble e do Reunião Nacional. Mélenchon diz que a “vitória do povo deve ser estritamente respeitada”, quando à direita se fazem contas para impedir que chegue ao poder.
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A “frente republicana” funcionou melhor do que o previsto nas sondagens, com as projeções à boca das urnas a darem este domingo a vitória nas legislativas à aliança de esquerda Nova Frente Popular (NFP), diante do campo do presidente Emmanuel Macron. A extrema-direita do Reunião Nacional (RN), que tinha ganho a primeira volta com um resultado que a deixava próximo de uma possível maioria absoluta, ficou em terceiro lugar. Jean-Luc Mélenchon reivindicou a vitória e exige a Macron que deixe governar a NFP, enquanto Jordan Bardella, do RN, denunciou uma “aliança de desonra” da esquerda com o centro que “lança a França nos braços da extrema-esquerda”.

Após a contagem final do sufrágio, a NFP, que inclui a esquerda radical da França Insubmissa (LFI) de Mélenchon, elegeu 182 deputados, ficando longe da maioria absoluta de 289 na Assembleia Nacional. Em segundo lugar surgiu o Ensemble, o campo de Macron, com 168 representantes. O RN e os aliados não foram além dos 143 deputados, enquanto Os Republicanos se ficaram pelos 45 assentos parlamentares, também afastados dos 63 a 67 deputados que as sondagens à boca das urnas lhes atribuíam. Há ainda mais 39 lugares para distribuir por outros partidos.

O primeiro a reagir às projeções foi o ex-líder e candidato presidencial da LFI. “Tivemos um resultado que nos diziam ser impossível”, congratulou-se Mélenchon, lembrando que o RN “ficou longe de ter a maioria absoluta que se previa” e que isso é “um alívio para a esmagadora maioria das pessoas” que se sentiram “terrivelmente ameaçadas”. Mélenchon defendeu que “a vitória do povo deve ser estritamente respeitada”, rejeitando qualquer “subterfúgio” e exigindo que a NFP forme governo.

“A derrota do presidente e da sua coligação confirma-se. O presidente deve admitir essa derrota sem a tentar contornar de qualquer forma. O primeiro-ministro deve sair”, insistiu Mélenchon, falando num “voto de desconfiança popular” em Gabriel Attal e insistindo que o próximo chefe do governo deve vir da NFP. “As urnas decidiram entre dois projetos diametralmente opostos. A NFP está pronta para governar”, defendeu.

Dentro da aliança, a LFI será o partido mais votado, com as estimativas a darem-lhe 73 a 80 deputados, à frente dos socialistas que deviam ter 60 a 64, os ecologistas com 33 a 36 e os comunistas com 11 e 12. A aliança de esquerda foi formada há pouco mais de um mês, quando Macron surpreendeu com a decisão de antecipar as eleições após o desaire nas europeias.

O líder socialista, Olivier Faure, “respirou de alívio” com o resultado eleitoral. “Esta noite, a França disse não à chegada do RN ao poder!”, lançou à multidão de apoiantes, defendendo também ele um governo da NFP e rejeitando qualquer “coligação de contrários” com o bloco de Macron. “A NFP deve assumir o comando desta nova página da nossa história”, insistiu.

Attal demite-se

Mais de uma hora depois, Attal reagia diante do Matignon, confirmando que vai pedir esta segunda-feira a demissão, mas que ficará em funções “o tempo que for preciso” - o país prepara-se para receber milhares de pessoas para os Jogos Olímpicos de Paris. O Eliseu disse este domingo que Macron quer esperar por saber a composição final da Assembleia Nacional, apelando à “prudência”, antes de nomear um novo chefe de governo - a escolha depende apenas do presidente, que por enquanto se quer focar na cimeira da NATO que começa na terça-feira em Washington.

Para parte da direita e do campo presidencial, um governo que inclua a esquerda radical é um cenário ainda pior do que um da extrema-direita. Éric Ciotti, cuja liderança d’Os Republicanos é contestada pela maioria do partido por ter feito um pacto com o RN, criticou o que apelidou de “aliança da vergonha” que juntou o centro e a esquerda, considerando que Macron “deu o poder à extrema-esquerda numa bandeja de prata”.

E já se ouviam no domingo vozes que pediam uma aliança que afaste os extremos, seja de direita ou de esquerda. “As forças políticas centrais têm uma responsabilidade que não podem descartar”, disse o ex-primeiro-ministro Édouard Philippe, apelando a um “acordo que estabilize a situação política”, mas que “não pode ser construído nem com o RN nem com a LFI”. Também o secretário-geral do partido de Macron, Stéphane Séjourné, defendeu ser óbvio que a NFP “não pode governar a França”, já que “o bloco central republicano moderado continua de pé”.

Attal congratulou-se que “nenhuma maioria absoluta pode ser liderada pelos extremos”, felicitando-se pelo facto de o campo de Macron ter obtido “três vezes mais deputados” do que o previsto nas estimativas iniciais. O resultado dá um novo fôlego ao “macronismo”, que muitos já davam como morto. Mas admitiu que o cenário será complicado. “Sei que, à luz dos resultados desta noite, muitos franceses sentem uma espécie de incerteza quanto ao futuro, uma vez que não surgiu nenhuma maioria absoluta. O nosso país vive uma situação política sem precedentes”, afirmou. “Esta noite começa uma nova era”, insistiu. Serão necessárias negociações complicadas para garantir uma maioria que não deixe a Assembleia Nacional bloqueada. Macron não pode marcar novas eleições antes de passar um ano.

“Avanço histórico”

O líder do RN, Jordan Bardella, lembrou que o partido registou o seu “maior avanço na história”, duplicando o número de deputados, e criticou “os arranjos eleitorais” que “atiraram a França para os braços da extrema-esquerda”. Após a primeira volta, na qual o partido obteve 33% das intenções de voto e ficou à frente em quase 300 círculos eleitorais, entrou em ação a chamada “frente republicana”, com mais de 200 candidatos a desistirem nas corridas a três para não dividir o voto anti-RN e assim favorecer a extrema-direita.

“Apesar de uma campanha de segunda volta marcada por alianças contranatura, que procuraram de todas as maneiras impedir os franceses de escolher livremente uma política diferente, o RN teve hoje o avanço mais importante de toda a sua história”, reagiu. Para Bardella, “a aliança da desonra e os arranjos eleitorais perigosos negociados por Macron e Attal com as formações de extrema-esquerda impedem os franceses de uma política de recuperação nacional”. E coloca o RN como “a única alternativa perante o partido único”.

A antiga líder do partido Marine Le Pen, que espera ser candidata às presidenciais em 2027 (após três candidaturas e duas derrotas para Macron), não se mostrou derrotada após serem conhecidas as projeções. Mesmo se, na campanha para a segunda volta, disse acreditar que uma maioria absoluta era possível. “Tenho demasiada experiência para ficar desiludida com um resultado em que duplicamos o número de deputados. A maré continua a subir. A vitória só foi adiada”, afirmou à TFI.

Participação recorde

Segundo as estimativas das empresas de sondagem, a participação deverá ser superior a 67% (pode mesmo ser 67,5%), acima da primeira volta (66,7%). São mais de 20 pontos percentuais do que nas legislativas de 2022 e quase 25 pontos a mais do que nas de 2017. É a participação mais elevada desde as eleições antecipadas de 1997.

As sondagens à boca das urnas foram recebidas em festa pelos apoiantes da esquerda, com milhares de pessoas a encherem a Praça da República, em Paris. Ao final da noite, já havia confrontos com a polícia. Noutras cidades, como Rennes, Nantes ou Lyon, a tensão também chegou às ruas. Após uma campanha marcada por meia centena de agressões contra candidatos e as suas equipas, o governo francês destacou 30 mil polícias para garantir a segurança no dia das eleições, dos quais cinco mil só em Paris.

susana.f.salvador@dn.pt 

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