Iniciativa nacional

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A loja do chinês no rés-do-chão do meu prédio está aberta todos os dias, domingos, dias santos e feriados inclusive, das nove da manhã às nove da noite. Dá imenso jeito para ir comprar uma lâmpada que se fundiu, um pacote de detergente para a máquina de lavar que, imprevidente, deixei acabar ou até - para uma emergência social como o convite inopinado para um jantar ou uma improvável festa - estrear uma toilette barata mas jeitosa, de poliéster e viscose, e, malgrado as fibras sintéticas a imitar seda, uma gravata do mais indiscutível pedigree italiano.

Em frente à loja do chinês está o estabelecimento que, apesar de anunciar no toldo e em português de lei como minimercado e frutaria, ostenta orgulhosamente a origem do seu proprietário e, ao que percebi, único funcionário. Admito que tenha outro, até pelas horas de trabalho impossíveis, mas ainda não o vi. O minimercado chama-se Bengal e, como o seu vizinho chinês da frente, está aberto todos os dias, domingos, dias santos e feriados civis. A única diferença é que está aberto das oito da manhã às onze da noite. Dá, obviamente, imenso jeito para ir comprar um pacote de açúcar ou, quando chego a casa fora de horas, o que ultimamente tem sido a regra, comprar qualquer coisa para comer e não ter que ir a esse paradigma da criatividade nacional chamado McDonald’s.

Ao fundo da rua, o que também dá imenso jeito aos domingos, dias santos e feriados, encontra-se o único café sempre aberto e com uma pequena esplanada para usufruto daqueles já poucos, como eu, para quem tomar uma bica sem puxar de um cigarro é um anátema e um desprazer igual a uma salada de tomate sem orégãos, onde a empregada guineense recebe todos os clientes com um sorriso aberto de Arouca até Bissau e cujo maior desgosto, vá-se lá saber porquê, é justamente não conhecer Arouca.

Ainda mais ao fundo da rua há um ajuntamento constante de motoretas à porta de um take-away servido por brasileiros. Debaixo dos capacetes estão indianos, paquistaneses, nepaleses, bengalis e outros de pele branca e origem incerta, que tanto podem ser portugueses, brasileiros, moldavos ou ucranianos, sentados nas soleiras das portas olhando para os telemóveis à espera de uma encomenda, com as mochilas dos Uber Eats, Glovo Eats e outros motoreats pousadas, aguardando uma oportunidade de negócio e de ganhar os fabulosos 400 euros por semana, prometem os empregadores, entregando comida pronta morna a lisboetas demasiado preguiçosos para cozinhar a sua própria comida ou demasiado constrangidos orçamentalmente para ir a um restaurante.

Tudo isto é um instantâneo, não de uma cidade, muito menos de uma sociedade, mas apenas de uma rua de Lisboa, de um bairro residencial, do que hoje se designa, vá-se lá saber porquê, pirueta sociológica por classe média, mas em cuja composição há ainda uma mistura antiga de funcionários públicos, profissionais liberais e onde, nos prédios mais velhos, de fachadas decadentes e portas de madeira apodrecida reforçada com tábuas para esconder buracos e podridão, vivem velhos pobres a quem a modernidade passou ao lado.

A modernidade não passou ao lado da antiga barbearia onde ia cortar o cabelo quando era miúdo e que agora tem um upgrade como cabeleireiro. O lugar de fruta já não é de um imigrante que há um século veio das serranias beirãs, mas de um imigrante do Hindustão, disposto às mesmas horas insanas de trabalho para sustentar a família e ter uma vida melhor. O pequeno café aberto todos os dias, domingos, dias santos e feriados, oferece um espaço de convívio e calor humano aos vizinhos, que sem ele estariam condenados a continuar a passar as tardes de pijama à janela a ouvir o relato da bola. Ou ir aos shoppings, onde multidões como eles procuram o calor do ar condicionado que não têm em casa e a ilusão de abundância das montras das lojas apresentando tudo o que não podem comprar. E o take-away dos brasileiros, com a sua trupe de motoretas ao serviço de lisboetas demasiado modernos para jantar salsichas com ovos estrelados, o que é senão um serviço público?

Que seria da minha rua sem estes imigrantes? Uma rua vazia, de portas de prédios novos ou velhos sempre fechadas, sem gente e sem alma. Onde antes havia uma oficina de automóveis, há hoje uma loja onde posso ir comprar uma lâmpada, um pacote de detergente ou uma gravata, ou o que quiser. Onde havia um barbeiro triste, há hoje um cabeleireiro, multi-sexo imagino, sempre cheio. Onde havia uma peixaria cheia de moscas, há hoje uma loja de reparação de telemóveis e computadores. Onde não havia nada, há hoje vida.

O que seria de Portugal sem os imigrantes? País envelhecido e de velhos, com os jovens a emigrar em busca de uma vida melhor, que o anquilosamento nacional lhes nega. É com imigrantes ainda mais pobres que nós vamos procurando dar vida ao que condenamos a morrer. Aos pequenos comércios, aos pequenos negócios, ao sorriso aberto de Arouca até Bissau de uma imigrante guineense cujo maior desejo, sabe-se lá porquê, é conhecer Arouca.

O discurso patético contra os imigrantes, bem expresso por certezas como as de André Ventura quando disse à SIC Notícias que 30% da população de Braga é constituída por imigrantes (desmontada numa análise de Fernando Costa no Público deste domingo), quando, segundo o INE, é de apenas 3,32% para o distrito e de 6,54% para o município, não são aleivosias fruto da ignorância. O Dr. Ventura, presume-se, será esperto demais para isso. São um apelo ao preconceito e um afago ao ressentimento naquilo que é mais fácil e de lucro mais imediato. É a culpabilização do outro pelos empregos que não temos, e que, aliás, não queremos, e pela iniciativa que não temos, e que, aliás, num país há séculos a viver à sombra do Estado e de cunhas, favores e prebendas, nunca tivemos. A não ser a de emigrar. 

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